1 HITLER, POLÍTICO FASCISTA, 'ARTISTA MULTIMÍDIA'
Simone Beauvoir resumiu, de forma impagável, um dos dogmas do
pensamento de direita: "deve-se preferir a beleza aos homens"(1991:73-4).
Esta máxima bem poderia ser atribuída à Adolf Hitler
e sua concepção estética do mundo - que projetou
embelezar, enquanto um novo homem estava sendo gestado em solo germânico.
O Führer de fato admitiria, cândido, pouco antes de dar início
à II Guerra Mundial e ao mais bárbaro projeto de extermínio
da história humana: "Oh, como gostaria de trabalhar em arte".
Desejo acalentado por um artista frustrado, em meio a uma estrutura
de poder - o III Reich - repleta de virtuais candidatos fracassados
no mundo das Belas Artes. O nazismo como um megalomaníaco e descomunal
projeto estético e artístico, fortemente influenciado
pela fixação do Führer na Antigüidade clássica,
é a tese do documentário Arquitetura da Destruição,
de Peter Cohen (Architektur des Untergangs - Suécia/1989).
O cinema, medium largamente usado pela propaganda nazista, ilumina inusitadas
facetas do 'criador' que transferiu para o campo da política
e da guerra (bem como da moderna forma do genocídio) seus sonhos
abortados de arquiteto, pintor, compositor, cenógrafo, diretor,
ator, propagandista e publicitário, além de crítico
de arte e mecenas. Hitler, o onipotente artista e curador de uma exposição
planetária a céu aberto, a um só tempo expressionista
e surreal, na qual se transformou a Europa e o mundo dos anos 30 e 40.
Hitler, o homem da ciência, o sanitarista à frente de uma
potência industrial e militar: "Sinto-me como o Robert Koch
da política. Ele descobriu um micróbio e mudou a medicina.
Eu expus o judeu como o micróbio que destrói a sociedade",
diria o Führer.
Segundo o documentário, Richard Wagner será uma das três
grandes fixações do futuro ditador da Alemanha (não
por acaso, as outras duas concentram-se num espaço e num tempo
distante - Linz e a Antigüidade). "Só entende o Nacional-Socialismo
quem conhece Wagner", resumiria o próprio Führer, que
aos 15 anos tivera uma experiência decisiva em sua cidade natal,
a pequena Linz: a ópera Rienzi. Profundamente impressionado com
a estética wagneriana, Hitler começa a traçar os
primeiros planos "para seu futuro e para o futuro da Alemanha".
Pois, segundo sua palavras, "foi naquela hora que tudo começou".
As pretensões de Adolf Hitler oscilam da pintura à arquitetura.
Aos 18 anos, candidata-se a uma vaga na Academia de Arte de Viena, para
a qual é recusado. Mas a encenação da ópera,
que tanto fascinava Hitler, será utilizada nos 'comícios
de pseudo-arte', nos quais o Führer "era cenógrafo,
diretor e ator principal", dispara o locutor de Arquitetura. A
plenitude estética destes espetáculos de poder e força
será alcançada com o filme/evento Triumph des Willens
(1936), encenação perfeita do Congresso de Nuremberg de
1934, sob o comando da cineasta Leni Riefenstahl. A arte fascista, diz
Susan Sontag, "glorifica a capitulação, exalta a
irracionalidade e torna a morte fascinante" (1986:72-73).
A formação teórica e literária de Adolf
Hitler cristaliza-se entre o insólito e o caricato. O Protocolo
do Povo Israelita, um documento falso que sugere uma conspiração
dos judeus para controlar o mundo teve um grande impacto sobre suas
crenças político-ideológicas. Seu autor preferido
é Karl May, típico criador de best-sellers infanto-juvenis.
Mas o ditador se acreditava um especialista em artes: a capital francesa
é poupada da destruição graças aos seus
caprichos estéticos. "Paris não é linda?"
pergunta, embevecido, ao seu 'arquiteto das ruínas', Albert Speer
numa patética tour na madrugada de meados de junho de 1940, pelas
ruas da cidade recém tombada. "Pensei muito se devia ou
não destruir Paris. Mas quando Berlim estiver pronta, Paris será
uma sombra. Então porque destruí-la?" diria ainda
à Speer.
A pequena Linz merece um lugar de destaque nestes delírios "estéticos".
Sua cidade natal é visualizada como a futura metrópole
cultural do mundo, perto da qual Viena pareceria ofuscada. Um funcionário
é incumbido de reunir as obras da virtual "Galeria de Arte
Alemã": elas começam a ser literalmente caçadas
na Europa subjugada; Hitler as escolhe pelo catálogo. Entre os
anos 1942-1943, a rapina artística chega a três mil peças,
incluindo Da Vinci e Rembrandt.
A partir de 1933 o público alemão passaria a freqüentar
o mais célebre evento das artes plásticas sob o III Reich:
a série de exposições da Entartete Kunst - Arte
Degenerada. A arte assumira "um papel quase policial da discriminação
dos judeus" (Nazário, 1996:33). Somente no auge da guerra,
Hitler deixará de prestigiar as inaugurações de
seus eventos artísticos. A valorização das Belas
Artes da nova Alemanha é sempre um incisivo discurso de reforço
ao programa nazista. A pintura e a escultura - como o cinema - apoiam,
com a mesma disposição, campanhas de higiene nos escritórios
e fábricas, como o Bureau de Beleza do Trabalho e programas eliminacionistas.
2 A INSANIDADE NAZISTA NAS TELAS
O cinema também é mobilizado para familiarizar a população
com o Programa de Eutanásia (T4). "Confie em seu médico",
encoraja o Kulturfilm Desafio do Câncer: Nada menos de 45% da
categoria integra o NSDAP. Eles terão participação
decisiva nas atividades de extermínio. Já o "documentário"
Vítimas do Passado (1937) explora imagens de doentes mentais;
culpa os 'imbecis' por ocuparem 'palacetes', enquanto 'pessoas saudáveis'
vivem em guetos e apela para o darwinismo: "Nós humanos
pecamos contra a lei de seleção natural... Não
só aprovamos formas de vida inferiores, como encorajamos sua
propagação". O pecado seria redimido: em 1941, cerca
de 70 mil doentes mentais foram mortos. Obras 'ficcionais' como Eu acuso
(1941) são criadas para a legitimação do assassínio
de arianos não integrados à exigência da 'raça
pura': o filme romantiza a eutanásia praticada numa portadora
de esclerose múltipla, com o apoio de seu marido.
O ano de 1941 também seria decisivo para o encaminhamento da
'Solução Final', abjeção inominável
depois da qual, como apontou Adorno, "a morte significa ter medo
de qualquer coisa pior que a morte". Ocorre que na quase totalidade
das expressões da 'nova arte alemã' e desde os primeiros
eventos 'culturais' nazistas, a Shoah ganhava contornos cada vez mais
definidos. Ao contrário do cinema concebido por Riefenstahl,
com suas cenas grandiosas e ávidas pelo registro da beleza (como
em Triunfo da Vontade) clássicos da propaganda anti-semita como
O Judeu Süss e O Eterno Judeu (1940) justificavam abertamente o
gaseamento em massa.
Mas o andamento inesperado da chamada operação Barbarossa
decreta o fim das avassaladoras conquistas alemãs. Goebbels tinha
a convicção de que "o bolchevismo cairia como um
castelo de cartas", em menos de quatro meses. O "bolchevismo"
não apenas resistiu: ele determinará a derrocada do III
Reich. Se a visão hitlerista de domínio do mundo cai por
terra em 1941, a eliminação dos judeus passará
a ser prioritária, uma "missão sagrada". Estava
selado o destino de 11 milhões de judeus em toda a Europa. Perder
a guerra não significaria o fim do ideal nazista: a queda da
Alemanha poderia inspirar futuras gerações. O país
se ergueria uma vez mais das ruínas. Esta era a certeza de seu
arquiteto - o arquiteto da destruição total.
Para seis milhões de homens, mulheres e crianças - judeus
- a destruição total chamou-se Holocausto. Na parede da
cela 8 - bloco 11 de Auschwitz, uma das anônimas vítimas
reproduziu uma frase de O Inferno de Dante: "Ó vós,
que entrais, dizei adeus à esperança". "O Holocausto
não foi operado com paixão (...) A violência, a
tortura, tornaram-se na modernidade, instrumentos da racionalidade política.
A violência é hoje uma técnica" (Novinsky,
1995:17). Pois as técnicas do Programa de Eutanásia se
revelariam amadorísticas diante do rigor "científico"
e da funcionalidade operacional ostentados pelos campos da morte. Trata-se,
de fato, de uma "evolução" macabra, marcada
pela combinação letal de racionalidade e tecnologia (e
burocracia).
Por volta de 1941, na esteira do avanço das tropas ao leste,
os 'Einsatzgruppen', unidades especiais da SS, ocupavam-se com o assassinato
de judeus, ciganos e inimigos políticos; todos baleados na cabeça.
O ano seguinte marcaria a construção da primeira câmara
de gás no leste - um "avanço" vistoso em relação
aos terríveis caminhões nos quais as vítimas eram
asfixiadas durante o transporte. Em março de 1942, o campo de
Belzec recebe as primeiras vítimas. A seguir viriam Sobibor e
Treblinka. E uma nova alternativa passa a ser testada em Auschwitz:
um inseticida a base de cianeto.
Em 1938, um Kulturfilm sugestivamente intitulado Guerra em Miniatura
divulgava 'uma arma' efetiva de 'matar pragas'. Vemos imagens da fabricação,
acondicionamento e uma detalhada simulação do uso do produto,
"sem risco para as pessoas e equipamentos". Dois anos após
a exibição de Guerra em Miniatura, o monóxido de
carbono era usado na "eutanásia" de doentes mentais.
Três anos depois, o cianeto, ou Zyklon B, inicia uma nova etapa
na matança, em Auschwitz. Os médicos continuarão
a ter um papel central: selecionar vítimas, supervisionar o uso
do Zyklon e checar o óbito das pessoas gaseadas, numa forma organizacional
em que estes últimos operavam o equipamento, aliviando aos matadores
o horror de sua tarefa diária.
No início de 1943, o exército soviético começa
a avançar e a SS recebe uma nova missão: eliminar os traços
do assassinato em massa tão arrogantemente justificado. Em janeiro
de 1945, as tropas russas chegam a Auschwitz. Registros famosos são
feitos no campo da morte. Montanhas de óculos, cabelos, dentes,
sapatos, galpões lotados com roupas, latas de gás; pilhas
de cadáveres; provas de que o inconcebível de fato ocorrera.
O derradeiro fato da II Grande Guerra não deixa de ter um caráter
"cinematográfico", segundo Virilio: "No dia 30
de abril, Hitler deixa seu inferno das imagens suicidando-se em sua
câmara escura no bunker da Chancelaria de Berlim" (1993:134).
3 DOCUMENTOS FINAIS DO ARQUITETO DA DESTRUIÇÃO
Já a partir de 1942, consciente que a derrota é inevitável,
Hitler submergiria em seu fantasioso universo estético privado,
enquanto a Alemanha vive o inferno "fílmico" dos bombardeios
aliados. No ano seguinte, Goebbels decretaria a guerra total. Entretanto,
a insanidade política é superada por sua, digamos, "versão
estética". Hitler planeja compensar o jejum de vitórias
oferecendo aos alemães uma retrospectiva cinematográfica
do passado. Veidt Harlan, diretor de O Judeu Süss deveria reconstituir
o êxito naval contra os ingleses em Narvik. Navios de guerra,
aviões e pára-quedistas seriam mobilizados para a filmagem,
que acabou cancelada. O Führer ordena, então, a realização
da "narrativa histórica" Kolberg. Tropas de um exército
mal equipado e que recua em todos os fronts são colocadas à
disposição do cinema: seis mil cavalos e 200 mil homens
tornam-se figurantes desta que foi a última grande obra "cultural"
nazista. Em janeiro de 1945, o filme de nove milhões de marcos
está finalizado, mas as salas de cinema de Berlim não
passam de ruínas.
Uma encenação do Juízo Final foi deflagrada entre
o início dos anos 30 e a metade dos anos 40 na Europa nazi-fascista..
Dos ideais de beleza, pureza e eternidade do arquiteto da destruição
restaram algumas obras e uma extensão sem fronteiras de ruínas
e devastação. Resta a dificuldade de abordar dignamente
a questão das vítimas, tais como Primo Levi que, sob o
terror de Auschwitz, tinha um humilde sonho: "poder chorar, poder
enfrentar o vento como antigamente, de igual para igual, não
como vermes ocos sem alma".
A última cena de Arquitetura desvela, numa sala semi-escura,
inúmeras telas que estampam os líderes nazistas e seus
asseclas. Os quadros foram achados "nos porões dos vencedores",
décadas após o fim da II GG. Enquanto a locução
repisa a tese de uma força motora "em grande extensão
estética" para a definição do nazismo, a câmara
enfoca um último retrato: Adolf Hitler, em uma armadura branca
medieval, ostenta uma bandeira com a suástica. Provavelmente,
estamos diante de sua fantasia adolescente: Rienzi.
Investigar um artista frustrado por trás do ditador não
pressupõem desviar o centro de uma questão que permanece
política. Da mesma forma, sublinhar o fantástico poder
que emanava do Führer não tem a intenção de
abstrair a responsabilidade de toda uma nação, sem a qual
Hitler, em última instância, não seria 'o tema por
excelência do século XX'. Talentosos artistas, de diversas
áreas, deram forma, luzes, cores, textos, imagens, sonoridades
e rimas aos ideais de uma Beleza inumana, cuja afirmação
de existência representou para milhões de judeus um veredicto
mortal.
Se as artes foram convocadas para expressar o poderio e as razões
de um regime eliminacionista e totalitário, foi a política
que, em primeira e última instância, propiciou a insanidade
nazista, oriunda de um partido eleito livremente pela sociedade alemã,
que lhe outorgou apoio e participação incondicional. O
Nacional-Socialismo mostra o alcance incomparável de um projeto
total de estetização da vida política, 'encenada'
pela Alemanha de Adolf Hitler, supremo líder político
e eventual arquiteto da destruição. Cinqüenta milhões
de mortos deram testemunho desta versão populista de um regime
anti-semita, racista, xenófobo, belicoso e expansionista. Na
falácia nazista de vida como arte, a verdadeira arte se despede.
Seu desaparecimento perdurou até a destruição final
da Alemanha.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone. O Pensamento de Direita, Hoje. Rio de Janeiro Paz
e Terrra, 1991.
NAZÁRIO, Luiz. Reflexões Sobre a Estética Nazista.
In: Revista Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes, n. 3, ano 90, 1996.
p.33-51.
NOVINSKY, Anita. Reflexões sobre o Holocausto. In: Revista Cultura
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SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Porto Alegre: LP&M Editores,
1986.
VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema. São Paulo : Página Aberta,
1993.
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