À primeira
vista, O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), filme vencedor
dos principais prêmios do último Festival Internacional
de Documentários É Tudo Verdade, teria sua temática
(o dia-a-dia dos presidiários do Carandiru, antes da implosão),
recentemente superexposta nos meios midiáticos, como aliada para
uma boa recepção de crítica e público.
Trata-se de um equívoco:
o tema, aqui, configura-se como uma ameaça, justamente por ter
sido servido repetidas vezes como "prato do dia" pelos meios
de comunicação de massa. Afinal, o que haveria de novo
a se dizer sobre a "famigerada" casa de detenção
de São Paulo sem causar inapetência?
Acrescentaria algo
um documentário cuja estréia coincide com a do filme Carandiru,
dirigido pelo aclamado cineasta argentino Hector Babenco, baseado no
best seller do médico Drauzio Varella?
O primeiro longa-metragem
de Paulo Sacramento responde a essas perguntas de maneira contundente,
refletindo a natureza do fazer documentário de uma maneira geral
(ou, por que não dizer, de variadas expressões artísticas?):
em alguns casos, a forma chega a superar o conteúdo. Ou, quem
sabe, um e outro fundam-se em simbiose. Cinema - seja de ficção
ou não - é exatamente isso: "como contar" é
tão (ou mais) importante do que "o quê" se conta.
É comum, pois, testemunhar crimes cinematográficos quando
no desperdício de argumentos e roteiros preciosos.
Mas Sacramento vai
na direção oposta, quem sabe no rastro do caminho já
trilhado pelo mestre do documentário brasileiro Eduardo Coutinho
(diretor de Cabra Marcado para Morrer e Edifício Máster,
entre outros): ele trata uma temática aparentemente simples (apesar
de árida) com um olhar um tanto inusitado. A tragédia
do massacre, as condições precárias do sistema
carcerário brasileiro (mote do livro do jornalista Percival de
Souza, de 1983, que "emprestou" seu título ao filme)
e a demolição da casa de detenção são
coadjuvantes - o malabarismo dos detentos em preservarem o que lhes
resta de dignidade atua como protagonista.
O objeto, aqui,
vira sujeito. E é esse o principal mérito do filme que,
por essa razão, trava um importante (e oculto) diálogo
com o cinema de Coutinho, recentemente explicitado em Edifício
Master. Trata-se de um documentário sobre o cotidiano dos moradores
de um prédio no Rio de Janeiro, lançado ano passado. Mas
é talvez em Boca do Lixo, vídeo também de Coutinho
sobre catadores de lixão, que vemos O Prisioneiro... ressoar.
Dignamente.
Paulo Sacramento
e equipe levam a sério a transmutação do objeto
em sujeito e o filme se constrói no compartilhamento do espaço
de sua autoria. E nisso é autêntico. Não se dá
apenas voz aos considerados parias sociais, também se dá
a câmera. Dá-se vez a quem é comum o tratamento
concedido a ratos, assumidos como intrusos. Essa, aliás, pode
ser tida como uma metáfora (não se sabe se intencional)
do filme, em uma das cenas mais impressionantes do documentário.
Nela, mostram-se os hábitos noturnos dos ratos que co-habitavam
o presídio. Isso só é possível graças
à colaboração de alguns detentos, com os quais
foram realizados workshops de cinema e vídeo. Assim, a câmera
tem acesso aonde a equipe (formal) não teria: a noite dentro
das grades de ferro, só para citar um exemplo.
Esse método,
aliás, nada tem de inédito, mas isso não invalida
a sua legitimidade. Ao contrário. Sua releitura mostra que é
vã (e geralmente frustrada) a busca pelo ineditismo. Assim, dosa-se,
de maneira apropriada, primazia técnica e liberdade dos detentos/co-autores.
Não é jogo de marionetes, quando se ouve apenas o diretor.
Há outras vozes fazendo o discurso tender à polifonia,
um desafio para qualquer documentarista.Nessa seara, o filme tende a
seu ponto mais frágil.
Talvez devido à
tentativa de cercar o tema nos seus diversos desdobramentos, há
geração de um problema: a falta de coerência ética.
Escorrega-se na questão da dignidade e aproxima-se da "coisificação"
do objeto que, por alguns instantes, deixa de ser sujeito. As fotografias
chocantes dos corpos mutilados e cadáveres não precisavam
estar ali. Assim como jornalismo policial não precisa ser sanguinolento
para denunciar o que quer que seja.
Essas passagens,
no entanto, não diminuem a força da obra. Sua seqüência
inicial, na qual a implosão do presídio é mostrada
de trás pra frente e se transforma em construção,
já virou antológica. O filme nasce como célula
fundamental da história do documentário nacional. E, apesar
das referências (quase inevitáveis), é liberto de
qualquer comparação com cineastas, escolas e linguagens
anteriores a ele.
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