Há algo de errado na América. Pelo menos é o que
sugerem fatos, editoriais e noticiários em todo o mundo. Como
essas parecessem ser vozes ainda fracas, duas produções
documentais recentes daquele país se juntaram ao coro, em gritos
desesperados. Elas parecem indignadas. Parecem querer entender o que
está se passando por lá - e escolheram o cinema documentário
como suporte para isso.
Pouco meses separam os dois filmes. Farenheit 9.11, de Michael Moore
mal estreou nos Estados Unidos e de cara venceu Cannes, deixando para
trás a sutileza de Salles e seu Diários. Super Size Me,
de Morgan Spurlock, não ficou por baixo e levou o prêmio
de melhor diretor no Sundance Festival 2004.
Em Farenheit, o diretor e performer faz o que pode para ridicularizar
a imagem do presidente de seu país (como se ainda fosse preciso),
numa tentativa desesperada de impedir que ele seja reeleito. Para isso,
utiliza recursos hilários como colocar parlamentares em situações
constrangedoras, ao questioná-los se mandariam seus filhos para
o Iraque. Mas também tira cartas preciosas da manga, como a reação
conivente da mídia em relação à suposta
fraude nas eleições presidenciais do país, as imagens
de combatentes americanos completamente perdidos em meio ao país
invadido e as famigeradas gravações de prisioneiros iraquianos
sendo humilhados pelos militares.
No caso de Super Size Me, o diretor e objeto de si mesmo passa um mês
se alimentando apenas de lanches do Mc Donald's para ver o que acontece.
O filme mostra o resultado desastroso da dieta adotada e chama a atenção
para a questão da obesidade nos Estados Unidos, onde 2/3 da população
é formado por pessoas obesas ou acima do peso.
Apesar de tratarem de duas coisas diferentes, o diálogo entre
ambos é inegável. A começar pelo fato de que os
dois filmes têm um alvo determinado de ataque: o primeiro, não
agüenta mais as peripécias de Bush Boy.
O segundo, quer acabar com a alegria do palhaço vermelho e amarelo
que arrebata corações, mentes e a saúde de crianças
e adultos. Ambos estão de olho em um público alvo muito
claro: seus conterrâneos, compatriotas, os americanos (ainda que
Moore pareça mais interessado especificamente naqueles que ainda
se dão ao trabalho de ir às urnas. Ainda que os dois diretores
dizem faça todo sentido para qualquer outra platéia).
Ambos são diretores-personagens de suas obras.
As semelhanças continuam e tanto Michael Moore quanto Morgan
Spurlock, mesmo que recorram a alguns recursos de investigação,
não vão muito além da superfície dos fatos.
Spurlock recruta profissionais da saúde para acompanhar sua saga,
enquanto outros intelectuais pincelam teorias e fatos ao longo da narrativa.
Não quer discutir o assunto: prefere mostrar os efeitos da alimentação
precária oferecida pela maior rede de fast food do mundo na própria
pele. Prefere a metonímia, a parte pelo todo, e mira no Mc Donalds
para atirar nas redes de fast food que se alastram como pragas nos Estados
Unidos e cada vez mais mundo afora. Farenheit tampouco vai muito além
das elucubrações e performances de seu próprio
diretor acerca da mídia, das loucuras de seus governantes e de
supostas relações íntimas das "Arabias"
com os "Isteites".
Dizem as más línguas, Moore beira a teoria da conspiração.
Bobagem. Nem ele, nem Spurlock optaram pelos caminhos tortuosos das
profundezas, mas simplesmente assumiram o panfleto, e produziram documentários-panfletos
(ok, não queremos aqui criar um novo gênero para o gênero).
Desses que se não servem tanto para esclarecer, mas para serem
ouvidos. Que gritam aos olhos de um povo, na esperança de acorda-los
de um quase transe: "ei, você! há algo de errado por
aqui, não? Estamos nos tornando gordos e apáticos! Vamos
aceitar que isso continue a ser assim? Parece que está na hora
de reagir!" Eles não querem dizer como reagir, quando reagir
ou onde, mas tentam mostrar alguns porquês. Apenas alguns.
Se o grito é forte? Se funciona? Não importa. Como bons
panfletos, com os milhões de espectadores que juntos os dois
filmes já alcançaram, basta que sejam altos o bastante
para ecoar na sala escura.
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