1968 - Conheço
Aruanda.
Desvendamento, Revelação.
Aruanda e a imagem dele.
Uma lembrança constante, reiterada.
Fragmentos de cenas revelados pela memória.
Foto-memórias.
Som-memórias.
Os pífanos ficaram em meus ouvidos.
A melancolia traçada no som do filme deixou
seu gosto.
Gosto-memória.
1982
- Revejo Aruanda. A coisa mesma.
Anoto, Penso.
Leio a imagem dele em outras memórias.
...
"O documentário não se limita a mostrar flagrantes
de uma vida atrasada, mas pretende apresentar o mecanismo dessa vida".
Mas, "Noronha ultrapassa poeticamente a exposição
de um mecanismo econômico. Ele tem a intuição do
deserto: a terra seca é a personagem principal da fita"...
..."Embora preocupado em realizar um trabalho de cunho sociológico
e antropológico antes de mais nada, Noronha fez também
um filme poético em torno de uma libertação, a
fuga dos escravos e a criação de Palmares, acontecimento
que seria várias vezes retomado", na cultura brasileira,
"como símbolo discutível, de liberdade". (Jean
Claude Bernardet - Brasil em tempo de cinema).
1982
- O foco. Olho-memória.
Sobrepor a coisa mesma, as imagens dela e conferir o foco. Aruanda me
parece maior, mais nítido que as imagens dele.
Glauber
explicita o papel inaugural do filme e o trecho exclusivo que Jean-Claude
lhe dedica em seu livro atestam sua importância, reconhecida no
momento mesmo em que foi divulgado.
Refazendo hoje, pela leitura, a trajetória do Cinema Novo, relendo
seus postulados, suas dúvidas e certezas, inventariando certos
termos e temas, vejo em Aruanda uma dupla função deflagradora:
- no
nível temático - a busca da libertação e
o exercício da liberdade.
- no
nível da linguagem - o subdesenvolvimento técnico não
impedindo o alcance pleno da poesia e, mesmo, ampliando-lhe a dimensão.
Só
vejo sentido em rever o passado quando seja para esclarecer uma ansiedade
presente e melhor informar os caminhos do futuro. Do Cinema Novo ficaram,
martelando nas memórias, certos temas-choque.
"idéia
na cabeça, câmera na mão".
O repisar
fora do contexto distanciou a coisa mesma da imagem dela. E o que era
conclusão brilhante de um raciocínio tornou-se uma bandeira
ideológica balançando ao sabor de ventos muitas vezes
contrários às idéias que a teceram.
Aruanda, Rio 40°, Humberto Mauro. Ancestrais genealogias. A própria
origem do termo Cinema Novo carrega em si a contradição.
Aquele que nomeou o movimento foi seu maior inimigo. Ely Azeredo.
Rebento promissor, filho rebelde, fruto da inédita união
de consciência e ação no seio da classe cinematográfica,
faz da pluralidade de tendências e paixões a seiva do seu
desenvolvimento. Mastiga o que lhe cai no prato - neo-realismo, "nouvelle-vague",
política autoral francesa, "Cahiers du Cinéma",
chanchada,
Vera Cruz, Eisenstein.
Lauto repasto a alimentar ávidas criatividades, adolescentes
rebeldias. Saudáveis irresponsabilidade culturais que desconhecem
o sagrado e intocável. A face da cultura brasileira não
estava perdida em nenhum espelho alienígena.
Chiclete
com banana
Fondue com feijoada
Tacacá e macarronada
O franzino
cinema subdesenvolvido deglute gordas e saudáveis teorias no
prato de louça ordinária de nossos parcos recursos técnicos.
Shazam! A Câmera na mão, voa.
O olhar de Raio X radiografa e expõe a entranha da pobreza sem
solução.
Como
a fome pode ser poética?
Estética? Da fome?!!!
Aruanda é a contradição.
Contido e apaixonado.
Distancia e toma partido.
Marginal - porque cinema, porque paraibano.
A marginalidade
denunciada de seus personagens torna-o a metáfora de si mesmo.
Aruanda.
Ele mesmo - o filme - A imagem dele - o cinema.
Aruanda é a metáfora prévia dos rumos do Cinema
Novo.
Sair
do estúdio, largar a câmera pesada, misturar ludicamente
regras, estilos, postulados. Duvidar e afirmar. A realidade é
o tema.
Por
que um documentário começa com a reconstituição
de um fato histórico? Quase metade do filme é a caminhada
de Zé Bento e a família pelas áridas plagas nordestinas.
Nada mudou de lá até aqui nesse cenário. O sol
continua forte, o vento levando a farinha, os galhos ressecados, o menino
barrigudo e nu. Reconstituição? Presente o passado.
"Zé
Bento resolveu partir com a família à procura da terra
onde pudesse viver. Fugir da servidão. Da antiga escravatura".
(Texto do filme)
- Oh!
mana deixa eu ir.
- Oh! mana eu vou só...
A busca
da libertação é penosa.
Todos os percursos, no filme, são acompanhados de uma música
lenta, triste.
... Oh! mana, deixa eu ir.
O exercício
da liberdade.
O som do atabaque é vigoroso.
O som do pífano é atrevido, agitado
É a mão cavando a terra.
O pé
socando o barro.
A rústica parede de galhos trançados recheados de barro.
A casa,
Tosca, precária.
O algodão.
Mirrado, minguado.
A seca.
A água,
pouca pra fazer brotar o algodão, é suficiente pra misturar
no pó e fazer o barro. E a mão da mulher, feita de barro
do barro do homem, redime o pecado original da pobreza e molda o jarro-pão,
a tigela-farinha, o vaso-fumo, a panela-jabá.
Oh,
mana deixa eu ir pra feira vender a cerâmica. E daquelas peças
simples, primitivas, a população do povoado inaugurado
por Zé Bento, tira seu sustento.
"As estiagens prolongadas, o analfabetismo, a fome, o isolamento
obriga-os a uma vida primitiva. A um sistema econômico improdutivo.
Formam o inevitável círculo vicioso. Da pedra calcinada
à feira livre e desta ao convívio isolado e pobre da região,
ao trabalho da cerâmica. Talhado é um extrato social à
parte do país. Existe fisiograficamente. Inexiste no âmbito
das instituições".
Esse
é o texto que conclui o filme.
Num
país subdesenvolvido e dependente o exercício possível
da liberdade - de morar, de produzir - é a marginalidade.
Num debate entre Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha,
sobre as origens do Cinema Novo, publicado no n.º 1 da Revista
Civilização Brasileira, Nelson vai resumir assim a liberdade
exercida pelo diretor/autor, no Cinema Novo:
"Na
verdade o diretor brasileiro é o homem que inventa o produtor,
inventa os autores, inventa a história, e vai ser também
o distribuidor, o publicista de seu próprio filme, em toda a
trajetória, é que ele conquista sua liberdade como realizador".
Glauber
Rocha define com precisão a dor dessa liberdade:
"No cinema, o autor não pode produzir porque sua criação
depende dos meios técnicos - ele necessita de uma máquina
que transforme suas idéias em expressão. Esta máquina
lhe é negada; o autor na renúncia mística, despe-se
e se lança à conquista dos meios e do filme - ele cria
com a fome e com o sangue e raramente não é vencido -
mas o que escapa, o que vive desta luta é o que resta de eterno
para o cinema - como "L'Atalante" ou "Roma, cidade aberta"
(A Revolução do Cinema Novo).
Ou
"Rio, 40 graus", "Deus e o diabo na terra do sol",
"Aruanda". Tesouros quase perdidos no anonimato de uma cultura
sem sobrenome.
Cinema
Novo - filmes que fizeram o delírio de poucos, a incomodidade
de alguns, até serem resgatados da mesquinha incompreensão
pelo aplauso da Europa. Nossa pátria-mãe - cultural acarinha
compreensiva a cabeça do filho rebelde. Nutre suas flácidas
pelancas culturais com a energia saudável do adolescente em busca
da identidade. Saboreia o gosto novo de seu próprio cardápio
enriquecido com as especiarias do Terceiro Mundo.
Aruanda,
em Rio e São Paulo, é primitivo, puro. Bebe-se-o com cerveja
nos bares da "inteligentzia". Precursor doméstico do
destino internacional de seus herdeiros.
Síntese
do grande banquete de entredevorações dialéticas
das culturas centrais e periféricas de um mesmo sistema.
Aruanda - obra síntese do anseio e da situação
do cineasta brasileiro. Anseio de liberdade, situação
de subdesenvolvimento. Marginalidade.
Aruanda hoje já não deflagra, mas retrata.
Ainda a busca da liberdade. Ainda o subdesenvolvimento. Ainda a marginalidade
do cineasta, do cinema, da cultura.
Aruanda é uma perplexidade.
Como o recorte desse ínfimo pedaço de terra seca, perpetuado
numa película vencida pode perpassar vinte anos sem perder o
viço e o vigor?
Na modéstia de sua poesia Linduarte Noronha alcançou o
universal. Na aplicação discreta de seus conhecimentos
cinematográficos, na sua antropologia amorosa, recusou a acusação,
o panfleto, a solução. Isso não pertence às
funções do cinema-poema. O retrato. Puro e simples. Quem
melhor para falar de si que a coisa mesma?
1982
- O conhecimento
Hoje conheço Aruanda. Revi. Anotei. Pensei. Li.
Escrevi sobre ele. O filme.
Aruanda e a imagem dele.
Aruanda e a imagem dela. A liberdade.
Não
podia falar dela sem libertar-me. Dos cânones de um trabalho acadêmico.
Do número de páginas, do raciocínio lógico
frio. Começo, meio, fim. Tese. Antítese, síntese?!
As citações vieram naturalmente. A gestação
deste texto foi longa. O parto suave, prazeroso.
Aruanda/liberdade penetrou-me e me modificou. Deixar seu tema fluir
pelos espaços da minha cabeça organizou a inquietação
deixada pelo curso e ampliou o alcance de suas discussões.
Agora a identidade, a dependência, a antropofagia, o particular
e o universal, a contradição, são idéias
que encontraram seu lugar na minha cabeça.
O cerimonial mítico da devoração de Aruanda deu-me
novas energias intelectuais. Todo o curso fez parte do rito.
Aruanda
ainda é deflagrador.
Este texto é testemunho disso.
Eu nunca tinha sido poeta antes.
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