O diálogo entre culturas presente
nos filmes documentários da Caravana Farkas:
uma proposta de análise



Introdução

No campo da Comunicação, são ainda recentes os estudos sobre as relações entre a indústria cultural e a cultura popular. Os estudiosos, como regra geral, vinham adotando uma visão romântica, transmudada em crítica aos meios de comunicação, em que a cultura popular surge como a representação de uma essência nacional que, ao ser "apropriada" pelos meios de comunicação, é transfigurada, transformada em mercadoria.

Somente a partir da década de 80 passa a ser produzida uma nova linha de pesquisa, em que a produção da cultura popular não está mais limitada à condição de mera mercadoria mas é vista na relação dialética sujeito/objeto. Tal mudança de perspectiva analítica fica evidente no campo da comunicação como cultura, e, mais especificamente, no da cultura popular, como sintetiza FIGUEIREDO (2003):

Hoje, autores como Michèle e Armand Mattelart, [Néstor] Canclini, [Guillermo] Orozco, [Jesús] Martín-Barbero e [Renato] Ortiz, ao estudarem a entrada da indústria cultural nas sociedades da América Latina, apontam para a nova tendência (mesmo os dois primeiros autores que, a princípio, numa vertente marxista, compreendiam a indústria cultural segundo os parâmetros da dominação dos pólos hegemônicos sobre os mundos economicamente dependentes): os estudos sobre o sujeito, como alternativa para rever a cultura popular e sua interação com a cultura de massa; fala-se num processo de interação e não mais uma relação de dominação da segunda sobre a primeira (FIGUEIREDO, 2003).

Há 30 anos começou a tematização da heterogeneidade, ou da diversidade multicultural, como produto do intercâmbio acelerado de mensagens produzidas pelos meios de comunicação; ainda assim, a questão do como se processa o diálogo entre as diversas culturas ainda não está inteiramente resolvida.

Não nos propomos a dar uma resposta definitiva para a questão, mas apenas a apontar um possível caminho metodológico, tendo por base a proposta apresentada em nossa dissertação de mestrado (D'ALMEIDA, 2003), sobre o conjunto de filmes documentários produzidos entre 1968 e 1970 por um grupo de cineastas paulistas a que se convencionou chamar de Caravana Farkas (1).


A Caravana Farkas.

Em 1968, parte para o Nordeste um grupo de jovens cineastas, organizados em torno do empresário, fotógrafo produtor e Thomaz Farkas (2), com o intuito de realizar um projeto pioneiro na área da documentação de manifestações da cultura popular brasileira, em que havia liberdade tanto para o uso das técnicas de reportagem tradicionais quanto para as da ficção, contemplando da precisão etnográfica ao improviso.

No total, foram dezenove os documentários produzidos. Cada um deles traz a abordagem de um tema único: a literatura oral, em A Cantoria e Jornal do Sertão; a religiosidade popular, em Padre Cícero e em Frei Damião; o artesanato, em A Mão do Homem, Os Imaginários e Vitalino/Lampião; a economia, em Casa de Farinha (mandioca), Erva Bruxa (tabaco), O Engenho (rapadura), A Morte do Boi (gado) e Região: Cariri (estrutura agrária); o sertanejo, em A Beste, A Vaquejada, O Homem de Couro e O Rastejador; e o cotidiano na fazenda, em Jaramataia. As exceções ficam por conta de Visão de Juazeiro e Viva Cariri!, que apresentam uma síntese de toda a temática do projeto, relacionando economia, cultura e religiosidade popular.

Segundo os seus diretores, todas as filmagens foram voltadas para a compreensão e o debate da realidade brasileira, por meio do registro das transformações que as manifestações de cultura popular estariam sofrendo devido à substituição de comportamentos e valores "tradicionais" por outros, "modernos", fruto da urbanização e industrialização das cidades litorâneas.

O Brasil vivia, então, um período de intensas modificações em todas as áreas. Na cultural, entre outros movimentos de base, os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes espalharam-se pelo Brasil, durante os primeiros cinco anos da década, fazendo do "povo" o seu principal público e interlocutor. O Cinema Novo, a seu modo, levava esse mesmo "povo" para as telas. Nunca antes a "cultura popular" fora tão valorizada. Ao mesmo tempo, a palavra de ordem na economia era "progresso"; recuperava-se o desenvolvimentismo dos anos 50s, reforçando um caráter nacionalista presente no ambiente cultural brasileiro desde a década de 20, e promovia-se um processo de urbanização acelerado, cuja principal característica era o aumento da migração do campo para as grandes cidades. Na política, depois de uma fase de efervescência revolucionária e reformista, o regime militar instaurado em 1964 passou a perseguir opositores e a restringir a liberdade de expressão, dando início ao processo de integração nacional, com a instalação de uma infra-estrutura na área de telecomunicações em todo o País. A televisão começava a tomar o lugar do rádio como meio de comunicação de massa por excelência.

Para os cineastas, esse processo de transformação acelerado da sociedade trazia à tona algumas contradições: o progresso, representado pelos meios de comunicação de massa, ao promover um maior intercâmbio entre as culturas "moderna" e "tradicional", em vez de conduzi-las a uma síntese, provocaria a "morte" desta última.

O que se observa, no entanto, é uma interpenetração de elementos provenientes das diferentes culturas, não uma sobreposição. Mas como isso se efetiva? Que dinâmica existe entre a cultura do cineasta e a do "objeto" de registro?

Os filmes documentários da Caravana, no nosso entender, representam um olhar para dentro do Brasil, valorizando o sertanejo, o sertão e suas tradições, e, paralelamente, terminam por problematizar a questão da cultura popular e evidenciar as contradições da miséria no interior do País. Por outro lado, para os cineastas, as manifestações culturais populares, bem como todo e qualquer conhecimento popular, constituíam um bem em si, com valor de objeto de um estudo e de um registro que se quer jornalístico e, por isso mesmo, "neutro", útil para informar e embasar um discurso didático, dirigido para as classes médias urbanas. Embora se dê voz ao povo, não é ele o destinatário da mensagem.


Uma proposta metodológica de análise

Em artigo publicado no jornal Opinião, sobre o lançamento do longa-metragem Nordeste: Cordel, Repente, Canção, de Tânia Quaresma, Jean-Claude BERNARDET (1975) refere-se à produção documental sobre cultura popular brasileira e propõe uma nova abordagem analítica: a discussão da relação que os curtas estabelecem entre eles e a cultura popular, e entre eles e seu público, e não mais fazer meramente uma análise restrita ao assunto de que os curtas tratavam.

Segundo Bernardet, os filmes documentários realizados nas décadas de 60 e 70, que têm como temática a cultura popular, "não são filmes de mas filmes sobre cultura popular" (grifos do autor), pois "não possuem nenhuma característica da cultura popular, como a grande proximidade, a quase identidade entre produtores e consumidores".
Com base nessas premissas, Bernardet afirma que os filmes "configuram uma forma de desapropriação da cultura popular em favor dos produtores e dos consumidores dos filmes. Mais exatamente: uma desapropriação de imagens e sons tirados da cultura popular". A razão estaria no fato de que os grupos sociais tratados nos filmes não participam da produção e de que os filmes não se destinam a eles. Segundo Bernardet:

Registro, preservação, memória são quase sempre as palavras-chaves da argumentação que justifica os filmes. A indústria cultural faz se perderem as tradicionais formas das cantorias populares, a industrialização torna cada vez mais precário o artesanato. Trata-se, então, de registrar tais práticas culturais antes que desapareçam ou sejam totalmente deturpadas. Um registro nunca pode coincidir com a coisa registrada. Todo registro pressupõe um certo arbitrário cultural.

Um exemplo desse "arbítrio", apontado pela antropóloga Leila Coelho em um seminário sobre a cultura popular no cinema, realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1975, e citado por Bernardet, estaria no documentário Vitalino/Lampião: o filme mostraria em isolamento a atividade artesanal, em detrimento dos relacionamentos que esse artesanato mantinha com o contexto social, prejudicando a percepção das dimensões e significações desse contexto social.

Em "Cineastas e Imagem do Povo", BERNARDET (1985): discute a representação do popular na produção do cinema documentário brasileiro das décadas de 60 e 70 a partir de uma análise fílmica estrutural que, no nosso entender, não dá conta do horizonte histórico em que foram produzidos (3), não obstante o autor fazer uma breve menção ao "quadro ideológico" circundante (idem, ibidem, p.39-40).

À linha analítica definida por Bernardet, acrescentaremos a estabelecida pela análise do discurso, que não apreende nem a organização textual em si mesma nem a situação de comunicação, mas pretende associá-las intimamente, de acordo com suas condições sociais de produção (PINTO, 2002). Como destaca BARROS (1988, p.14), a construção do sentido não termina na análise interna dos mecanismos e regras que engendram o texto: "vai do texto à cultura, ao mesmo tempo em que dela depende".

Entendemos um filme como um fenômeno comunicacional complexo, pois envolve recursos discursivos variados, lingüísticos e não-lingüísticos, que se relacionam articuladamente para a produção de sentido. E, para dar conta dos objetivos propostos, buscamos integrar a análise externa do contexto sócio-histórico em que os documentários foram produzidos e que, em última instância, lhes cobra sentido, com uma abordagem interna do texto, interrogando-o em si mesmo para identificar os mecanismos que dão origem aos discursos, e as imagens e os sons que lhes dão significado. Ismail XAVIER (1983, p.11) nos lembra que "cada filme define um modo particular de organizar a experiência em discurso, sendo um produto de múltiplas determinações". Nesse sentido:

Examinar o trabalho do narrador é mergulhar dentro do filme para ver como a imagem e som se constituem, numa análise imanente que, ao caracterizar os movimentos internos da obra, oferece instrumentos para discussões de outra ordem, particularmente aquelas que nos levam ao contexto da produção do filme e sua relação com a sociedade (idem, ibidem, p.14)

A importância da análise do contexto de produção ¾ ou das condições sociais de produção ¾ dos documentários de Farkas tem por pressuposto o conceito de discurso estabelecido por Michel FOUCAULT (1972, p.59), segundo o qual

não se pode falar em qualquer época de qualquer coisa; não é fácil dizer qualquer coisa nova [...] o objeto [do discurso] não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo e permitir-lhe que se encarne em uma visível e loquaz objetividade; ele não preexiste a si mesmo, retido por alguns obstáculos aos bordos primeiros da luz. Existe sob condições positivas de um feixe complexo de relações.

Para Foucault, o discurso é uma prática social que estabelece uma relação dialética com a estrutura social ¾ instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização. Ao mesmo tempo em que se afirma como um dos seus princípios estruturadores, é por ela estruturado e condicionado. E, como prática social, não pode ser entendido separadamente das práticas que não são discursivas.

Milton José PINTO (2002, p.29), ao comparar diversas metodologias de análise do discurso e discutir os conceitos estabelecido por Foucault, resume:

Definir os discursos como práticas sociais implica que a linguagem verbal e as outras semióticas com que se constroem os textos são partes integrantes do contexto sócio-histórico e não alguma coisa de caráter puramente instrumental, externa às pressões sociais. Têm assim papel fundamental na reprodução, manutenção ou transformação das representações que as pessoas fazem e das relações e identidades com que se definem numa sociedade, pois é por meio dos textos que se travam as batalhas que, no nosso dia-a-dia, levam os participantes de um processo comunicacional a procurar "dar a última palavra", isto é, a ter reconhecido pelos receptores o aspecto hegemônico de seu discurso.

No âmbito da abordagem interna, apoiamo-nos em BERNADET (1985, p.183), para quem analisar um filme pressupõe "descobrir mecanismos de composição, de organização, de significação, de ambigüidade, estabelecer a coerência ou as contradições entre estes mecanismos", e adotamos como paradigma analítico o conceito de "dramaturgia natural" estabelecido por Sérgio SANTEIRO (1978). Segundo este, as imagens sonoras, característica do cinema direto, constituem unidades autônomas dotadas de significado pleno, colocando luz em diversos fenômenos ou aspectos que não estão exclusivamente submetidos ao que o cineasta quer ressaltar em seu discurso.

Tais unidades autônomas podem ser e são manipuladas na montagem, na ordenação e seleção do material registrado. No entanto, no momento mesmo da gravação, a fala e os sons focalizados, ruídos naturais e comentários dos circunstantes, informações explícitas e latentes, permanecem fora do controle do cineasta e se tornam mais reveladores que a mera imagem. É nesse sentido que Santeiro aproxima o documentário do drama e do filme de ficção.

A encenação que, no drama, organiza a expressão e o comportamento dos atores frente à câmera, como forma de veiculação da narrativa, é adotada pelo documentário, com a diferença de que, neste, a encenação não se coloca em referência a um modelo estético e sim a um modelo social mais amplo que é diretamente plasmado pela condição sociais de vida dos depoentes (SANTEIRO, 1978, p.81)

Nesse sentido, a maneira de o entrevistado articular o seu discurso, reagir às perguntas e se posicionar no ambiente, sua postura e suas expressões faciais, o contraponto entrevistador e entrevistado, tudo são elementos dotados de significação e compõem o quadro de comportamento cênico que Santeiro (1978, p.81-82) chama de "dramaturgia natural".

A dramaturgia natural é o conjunto de recursos expressivos de que o depoente lança mão para representar o seu próprio papel. O desempenho do ator natural visa a passar, ao invés do papel estético, como ocorre de ordinário nas encenações, o seu próprio papel social que é o modo pelo qual assume a realidade social na qualidade de sujeito. Na dramaturgia natural, as suas ações banais do cotidiano são feitas demonstrativas ou exemplares de visão de mundo. O que se deu pela contingência de inúmeros fatores e circunstâncias ganha dimensão dramática, mediatizada pela consciência do ator que, primeiro, foi sujeito de uma experiência vivida, e é agora sujeito de uma memória re-vivida, passível de seleção e crítica que a faça digna do papel que o sujeito atribui a si mesmo.

Santeiro explica que essa perspectiva de análise fica mais evidente quando a integridade tríplice da personalidade interpretativa - o sujeito real, o personagem dramático e o ator natural - é rompida. Por vezes, comportando-se como ator e com a consciência de estar "interpretando", o entrevistado é exposto e faz o personagem evoluir sem a devida maturação, podendo, por isso, ou por interferência da realidade sobre a cena, gerar a "crise de representação". Ou seja, a linearidade do sistema é, momentaneamente, quebrada para, a seguir, ser retomada.

É na emergência da crise de representação, superando a representação consciente, que SANTEIRO (1978, p.85) aponta o documentário como possibilidade de "registro do aleatório". O registro de um momento em que vêm à tona "as disposições mentais e ideológicas que se manifestam através do discurso composto espontaneamente pelos entrevistados para dar conta de sua condição de protagonista quando nem sempre é o que ocorre na vida mesma de cada um".

Antecedendo a realização da análise, primeiramente procedemos a uma transcrição literal dos roteiros, omitindo os fenômenos relativos à conversação (pausas, silêncios, hesitações etc.). Os recursos não-lingüísticos (imagens, posição e movimento da câmara) são apresentados de acordo com terminologia de uso corrente no cinema.


O diálogo entre culturas em Vitalino/Lampião

Os filmes da Caravana Farkas têm um objetivo manifesto: registrar a imagem e o som das práticas culturais das classes dominadas para divulgá-las e afirmar o seu valor, perpetuando-as temporal e espacialmente ¾ já que os filmes podem ser assistidos a qualquer tempo e lugar.

Mas vão além do mero registro. Neles, se sobressai um permanente diálogo entre o cineasta-narrador e um objeto, que também se torna sujeito de um discurso no interior da mediação fílmica. Ao mesmo tempo em que se descreve um "mundo rústico" com vistas à sua integração ao mundo moderno e desenvolvido, ou ao "sistema racional inclusivo", para usar expressão cunhada por Alfredo Bosi no prefácio de Ideologia da Cultura Brasileira (MOTA, 2000, p.IX), dá-se voz àquele mundo, ou melhor, abre-se espaço para que esse mundo também se manifeste.

Em Vitalino/Lampião, dirigido por Geraldo Sarno, é apresentado o depoimento do artesão Manuel Vitalino, filho de Mestre Vitalino, sobre seu trabalho e as mudanças provocadas pelo desenvolvimento econômico. Documenta-se a criação de uma estatueta de barro de Lampião, trazendo, ao fundo, uma canção do repentista Severino Pinto sobre as razões que levaram Virgulino Ferreira ao cangaço.

Dois saberes, dois discursos, um depois do outro, são justapostos em cena: primeiro, o do cineasta-narrador, que, com base na razão, descortina o futuro do outro; em segundo lugar, o do artesão, baseado na experiência, e que a ela atribui sua razão de ser. Um terceiro serve de contraponto: o do cantador.

O cineasta-narrador introduz o filme apresentando sua concepção de arte popular: uma arte que não cria, apenas materializa modelos propostos pela coletividade. Para ele, o artesão não é um criador, mas aquele que dá forma a temas criados pela "consciência coletiva". Artesão e cantador não participam da concepção artística; eles nada criam, apenas interpretam algo que já está dado.

Entre a arte individual e a criação coletiva do mito, entre Vitalino e Lampião, cria-se uma relação através da qual a violência trágica de Lampião dá sentido e justifica o ato solitário do artesão. [...]
Dessa forma o artista popular torna-se intérprete tradicional da sociedade a que pertence e o produto de seu artesanato reflete não apenas o mito trágico criado pela consciência coletiva mas o próprio destino trágico de toda a violência gerada pelo Nordeste tradicional.

O artista popular é apresentado como um mediador que traduz determinados tipos de conhecimentos, não-racionais, para uma outra linguagem, mais de acordo com o grupo em que está inserido. Por se situar na esfera do mito, da tragédia, esses conhecimentos são desvalorizados e não encontram lugar no mundo moderno.

De acordo com o cineasta-narrador, "o artista popular não sabe que já é tarde demais, que seu produto terá cada vez menos lugar no novo mercado". A proeminência do progresso sobre a cultura popular é, assim, total, negando a esta qualquer possibilidade de resistência.

Esse desconhecimento é fruto do isolamento, intrínseco, de acordo com o cineasta-narrador, à vida do artista popular: "Fora do tempo, desconhecendo as mudanças que se passam em volta, o artesão é hoje um símbolo de pura ação prisioneira do passado".

Manuel Vitalino aparece aqui como ele mesmo e, ao mesmo tempo, como todos os artesãos: é um "ator natural", representando uma idealização de si mesmo e da posição que ocupa naquela sociedade.
Em seu discurso, se colocará contra a concepção de arte estabelecida pelo cineasta-narrador. Vitalino define o que faz não apenas como o meio para a sua sobrevivência mas também como "arte" de valor, e estabelece uma diferença crucial entre o que faz e uma produção em série. Para ele, arte é saber-criar, saber-fazer:

Quanto a produzir mais, não podemos, não, pelo seguinte, o nosso trabalho é manual e nós temos que fazer aquela conta. Ninguém pode... sabe como é, nós não temos fôrma nem modelo pra trabalhar, é tudo manual. Com fôrma ninguém é artista e todo mundo é artista. Porque a fôrma... Quem nunca viu um boneco de barro e nem sabe o que é, pegando na fôrma e pegando no barro pode fazer. A fôrma desenhada, vamos dizer, feita a cabeça do boneco. Forma o corpo e faz as cabeça tudo de fôrma. Então é de fabricar, vamos dizer, 50 e mesmo um cento de bonecos, de peças. Você olhar assim é tudo um só. Quer dizer que aí não é arte. É uma fôrma e tudo o que fizer fica igual.

De certa forma, o artesão compartilha das idéias de Walter BENJAMIN (1990, p.167):

Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra [...] O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo.

O artesão sabe, portanto, que as mudanças na sociedade afetam seu trabalho e até a maneira de o "povo", seu cliente, percebê-lo. Essa ciência, mostrada pelo filme, não é considerada no discurso do cineasta-narrador, ele mesmo detentor de um outro saber, representado na metáfora que encerra o filme: o fogo da modernidade consumindo a cultura popular; desta, só restarão as cinzas.

O discurso do cantador, se, por um lado, é uma tentativa de corroborar a tese de que os temas da cultura popular, no caso a lenda derivada da história de Lampião, são criados por uma "consciência coletiva" e "justificam o ato do artesão", por outro, acaba por desvelar aquilo que denominamos "lucidez trágica" da cultura popular. A canção reelabora a história, dando-lhes contornos trágicos - o herói não é dono de seu destino, e, por este, é conduzido até a morte -; ao mesmo tempo, questiona o presente e as relações de poder na sociedade:

Quem estava no poder
para ele não olhou.
Deu direito a quem não tinha
e a Lampião desprezou.
Eis o motivo por quê
tudo o que quis praticou.

A canção reforça a o ritmo e a dramaticidade do filme, sobrepondo-se, às vezes, à própria narração.
No diálogo entre culturas diferentes, a do cineasta e a popular, há a busca incessante, pela primeira, do "homem brasileiro" em suas diversas matizes; um projeto inacabado, que perpassa todo o cinema da década de 60. Um diálogo que, de maneira geral, se manifesta como conflito entre dois saberes.

Se entendermos a cultura como a maneira pela qual os homens exprimem simbolicamente suas relações com a natureza, entre si e com o poder, bem como a maneira pela qual interpretam essa relação, poderemos perceber, neste documentário e nos demais produzidos pela Caravana Farkas, o embate permanente entre as duas culturas.
Nesse conflito, diversas realidades vêm à tona, tornando os filmes da Caravana, em virtude do contexto sociopolítico em que foram produzidos, "revolucionários". As imagens, ao expor as marcas do subdesenvolvimento, colocam em evidência uma realidade pouco conhecida, em contraposição à idéia de progresso que permeava o discurso oficial da época; só por isso, os filmes já denunciavam a parcialidade desse discurso que se queria único e inconteste.

No âmbito da cultura, os filmes reafirmam, por contraste, a própria identidade "cosmopolita" dos cineastas e ressaltam as suas diferenças com a identidade do outro, o homem do sertão, detentor de uma cultura própria, em "vias de extinção".


Considerações finais

Se entendermos as culturas, quer seja a da classe dominante quer seja a das dominadas, como produtos de sujeitos da História, não há como deixar de lado na análise dos discursos produzidos e do contexto que lhes dá origem e que lhes cobra sentido.

Partimos do pressuposto de que todo discurso é social, ou seja, é a materialização da cultura, da concepção de mundo de uma dada classe social, que, dependendo das condições sócio-históricas e da posição dessa classe nas relações de produção, pode tornar-se hegemônico ou não (4).

Nesse sentido, no estudo que realizamos sobre os filmes da Caravana Farkas, abordamos internamente o texto, interrogando-o em si mesmo, para identificar os mecanismos e as ferramentas que forjam o discurso, integrando essa análise interna a um olhar par o seu exterior, numa análise do contexto sócio-histórico em que foi produzido e o qual, em última instância, lhe cobra sentido.

Na análise interna, procuramos identificar como os recursos lingüísticos e não-lingüísticos, isoladamente e combinados, produzem significados. Também verificamos que, alheio aos controles e às intenções, para além dos efeitos almejados pelo cineasta, esse conjunto ganha corpo e concretamente pode revelar novos sentidos, não programados nem previstos pelo plano da obra. Assim constatamos que, desejando retratar o conflito entre a cultura popular, encapsulada nos bolsões de pobreza do sertão, e a cultura de massa, que avançava célere sobre todo o território nacional, aniquilando as manifestações regionais, os filmes foram além e registraram, também, a concepção que o artista popular nutria de si mesmo e do seu fazer artístico, concepção esta que pode justificar a sobrevivência das artes populares até os nossos dias. Esse fato contraria a visão apocalíptica dos diretores, os quais, impressionados com a força de arranque da cultura de massa sobre o território nacional, previam em seu discurso a aniquilação das manifestações populares.

A construção do sentido, no entanto, não termina na análise interna dos mecanismos e regras que engendram o discurso. Este se estrutura em um lugar determinado no tempo e no espaço: dele faz parte e a ele está condicionado.

Daí a importância de se verificar a relação que estabelece com o contexto sócio-histórico em que é produzido. Só em comparação com as diversas concepções de cultura popular em voga à época da filmagem podemos localizar o que é peculiar na visão desses cineastas:

1) Como nenhum outro movimento da época, eles perceberam que a cultura de massa estava em vias de cobrir todo o território nacional, unificando-o, a despeito da diversidade cultural, social e econômica característica do Brasil; isso quando o CPC ainda achava que competia aos intelectuais a produção de uma "cultura popular" revolucionária que serviria de instrumento para conscientizar politicamente o "povo";

2) Diferentemente da valorização que o Governo Militar fazia do homem brasileiro, folclorizando e pausterizando o sertanejo para mostrar que o progresso atingia todos os rincões do País, com iguais vantagens para a zonas rural e urbana e para todas as classes sociais, a Caravana retratou as descompensações nacionais, ao mostrar a dificuldade de sobrevivência e a real precariedade da vida de tantas personagens até então desconhecidas pela classe média urbana;

3) Diferentemente do Cinema Novo, que denunciava a desigualdade patronalizando o nordestino, a Caravana confronta os religiosos, artesãos e repentistas com o saber do intelectual urbano, fazendo saltar aos olhos do espectador um saber inusitado, diverso, próprio de uma cultura que não é transmitida pela escola, pelo livro e pelo jornal, mas que tem outras fontes, como a tradição e a prática de vida.


Notas

(1) De acordo com Thomaz Farkas (apud MARANHÃO, 1998), o nome "Caravana Farkas", que passou a designar o conjunto de documentários, foi criado por Eduardo Escorel, um dos diretores participantes do projeto, na segunda metade da década de 90.

(2) Thomaz Farkas, à época, era proprietário da Fotóptica, loja de artigos ópticos e fotográficos, em São Paulo. Em fins de 1968, passou a lecionar na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Em 1972, concluiu sua tese de doutorado, Método do cinema-documentário. Sumariamente afastado dos quadros da Universidade pelo regime militar, só veio a defendê-la em 1977. Sobre Thomaz Farkas, ver FARKAS, 1997; DOIS TEMPOS, 2000; ENCICLOPÉDIA, 2002; D'ALMEIDA, 2002.

(3) De acordo com Fernão Pessoa RAMOS (2003), "[...] parece faltar ao livro o ar da história do documentário, dos movimentos cinematográficos, do Cinema Novo, dos autores e sua obra, da história do Brasil."

(4) Buscamos em Gramsci, em seu conceito de hegemonia, o referencial para entender essas diferenças. É como concepção de mundo, como produto do movimento histórico-social da sociedade e como conjunto de práticas, representações e formas de consciência, que a cultura de um determinado grupo social se distingue da de um outro (GRAMSCI, 1968). Para uma discussão aprofundada desse conceito no âmbito da cultura, v. CHAUÍ (1983; 1994) e MARTÍN-BARBERO. (1997).



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* Professor da Faculdade de Comunicação Multimídia da UMESP
e da Faculdade Montessori de Comunicação e Cultura