No início
do século XX o cineasta Alberto Cavalcanti fez a seguinte observação:
'se não fossem os monumentos as cidades seriam todas iguais'.
Talvez tenha razão. Mais de setenta anos nos separam de Rien
que les Heures, filme que enuncia a constatação do
cineasta, e de lá para cá muita água rolou. Talvez,
Cavalcanti, seja realmente um estilo de vida sem distinção
esse impulsionado pela metrópole. Sobretudo se olharmos para
as ruas do centro de toda cidade grande e perscrutarmos os seres humanos
que nelas, afoitamente, passam. Passam. Passam como por eles passamos:
velozes e sibilinos, sem contato algum além do físico.
Parecem todos idênticos. Parecem todos sem vida... .
Copacabana, Cavalcanti.
Copacabana e suas putas. Copacabana e seus turistas. Copacabana e suas
calçadas - monumentais! Não vemos sequer uma cena dela
no último filme de Eduardo Coutinho. Distinta e discretamente,
Edifício Master muda a nossa forma de olhar Copacabana.
Por cerca de duas horas espreitamos um dos cartões postais do
Rio de Janeiro a partir de seus indivíduos comuns. A amplidão
da vista para o mar é diretamente contraposta à solidão
dos apartamentos. Ao sairmos do cinema, temos a sensação
de realmente conhecermos alguns dos transeuntes do famigerado bairro.
Todavia, não deixa de ser estranho precisarmos de antolhos para
nos comunicarmos. O cinema nos redime de nossa perpétua insensatez,
pois Edifício Master mostra a pluralidade de vida que,
calados, levam consigo todos os transeuntes.
O último
filme de Coutinho é um exemplo vivo da relação
existente entre metrópole, cinema e anonimato. Principalmente
por potencializar uma rede infinita de encontros latentes. O encontro
- eis o anseio de Eduardo Coutinho. O mestre realiza, filma e mostra
a arte do (des)encontro. O encontro (filtrado) dos personagens e da
equipe de filmagem. O encontro (explicitado) do diretor com os seus
personagens. O encontro, enfim, o tácito e misterioso encontro
que ocorre entre os personagens e o espectador. Isso, pode-se objetar,
já havia sido realizado na obra de Coutinho. Não há
dúvida. O ponto é que Edifício Master, ao
contrário dos demais filmes, muda o foco da alteridade - ele
insere o anonimato no bojo dessa poderosa fórmula.
Não se trata
de camponeses, moradores de favela, ou religiosos. Também não
há uma classificação coerente que sirva de identidade
aos habitantes do edifício Master. São indivíduos
desconhecidos, e isso basta. Até mesmo a alcunha de classe média
torna-se vaga, pois não há a pretensão de retratar
uma condição econômica ou social. Aqueles indivíduos
estão nus para o espectador. A este, portanto, cabe a classificação,
o contato, a aprovação, a rejeição ou a
identificação. O anonimato é um vazio conceitual:
urge preenchê-lo. Com isso temos uma diminuição
das distâncias sociais que separavam o espectador dos personagens
- distância essa que era uma das características dos últimos
filmes de Coutinho. Edifício Master, enfim, exercita o
estranhamento da nossa própria realidade - a vida metropolitana.
Contudo, a ética da metrópole está às avessas
em Edifício Master. Desde o início do século,
as grandes cidades exibiam um estilo peculiar de comportamento. Ao contrário
das províncias, aqui, os indivíduos tendem à indiferença
e à reserva frente a qualquer tipo de socialização.
Compreensível, já que são infinitas as informações
forçosamente oferecidas ao indivíduo no seu cotidiano
metropolitano . A atitude blasé é o própria consequência
desse modo de vida. E Daniela, a personagem "sociofóbica",
a traduz com rara sinceridade: o desejo de não ver e de não
ser visto.
A poluição
visual, típica das metrópoles modernas, leva a um estado
psico-fisiológico que prima pela indiferença. Inevitável:
ficamos um tanto cegos e filtramos, aleatoriamente, as informações
exteriores que julgamos mais interessantes. Todavia não focamos
a nossa atenção. Coutinho estilhaça a raiz desse
padrão psicológico. Chegam, todos os personagens, ao primeiro
plano de sua câmera e ficam, ali, o tempo todo parados. Todo depoimento
é minuciosamente ouvido e respeitado, e atenção
é direcionada ao tempo do contato, ao tempo do encontro. Desse
modo, a narração de estórias, atenuada no modo
de vida contemporâneo, torna-se o elemento central. Pode-se observar,
mais uma vez, que esse procedimento sempre esteve presente no trabalho
de Coutinho. Concordo. Entretanto, suponho que nunca o método
esteve tão intimamente próximo ao objeto. É essa
relação que ensaio salientar.
Coutinho também
cria a antítese da sociabilidade característica dos edifícios
ao conversar calmamente e sobre assuntos íntimos com cada um
dos seus moradores. Temos aí o contrário do paradigma
do elevador. Quem já morou em prédios de grande porte
sabe do constrangimento causado por essa tecnologia. Nele, costuma-se
conversar (nas raras ocasiões em que há diálogo)
sobre generalidades relacionando-se de modo fugaz e descomprometido
com o interlocutor. Há um contato fisicamente próximo
com pessoas socialmente estranhas, esquisitas, distantes, enfim. Embora
acentuadas nos edifícios essas são características
que permeiam o cotidiano metropolitano. Analogamente a atitude de reserva
seria uma preponderância da esfera privada frente à pública.
Há, com ela, uma eterna desconfiança do outro, e evita-se
o contato a qualquer custo.
Pois bem. Desde
o início do filme ocorrem invasões, com câmeras
e equipe de filmagem, aos apartamentos. Essas invasões são
a metáfora e a própria realização da quebra
da atitude de reserva. Coutinho sempre as realizou, mas elas ganham
uma outra dimensão quando ocorrem dentro de corredores de um
edifício qualquer. Não há mais campainha ou olho
mágico que possam reinstalar a distância característica
da atitude de reserva. A lição é clara: qualquer
um daqueles indivíduos poderia ser um dos nossos vizinhos.
A quebra dessas
regras comportamentais também ocorre em outra dimensão.
Edifício Master suscita imagens do mundo a partir do claustro
que é o apartamento. Isso se reforça pela ausência
de cenas exteriores ou pelo foco nas narrações e nas estórias,
que propiciam inúmeras imagens subjetivas. Com essa mágica
tão sóbria Coutinho desloca o tipo de olhar comum aos
moradores do edifício de dentro para fora e o olhar exterior
do espectador penetra no mais íntimo de cada um daqueles indivíduos.
A magia está na comunicação estabelecida. Um exemplo
desse procedimento ocorre com a narração do assalto sofrido
por Esther. Acompanhamos um pouco do seu cotidiano e, inevitavelmente,
a imaginamos ajoelhada em frente a um homem branco, bem vestido e 'gatinho'
pedindo para ele não puxar o gatilho. Ela lembra, ela chora.
Nós a vemos chorar e imaginamos a própria sensação
do assalto. É o tempo do encontro entre anônimos, uma lógica
completamente diferente da reportagem sensacionalista. Essas imagens,
portanto, tendem a repercutir emocionalmente no espectador pelo temor
atual que se tem da violência nas metrópoles. Todos estão
cotidianamente sujeitos a esse tipo de acontecimento.
O exemplo de Esther
elucida a identificação entre anônimos. São
os sofrimentos do indivíduo comum que ganham importância.
O choro de Henrique depois de cantar My Way também pode
desencadear essa identificação. Dignidade e luta à
la self-made-man são valores escancarados nas suas lágrimas.
Fica evidente também o preço da solidão de acordo
com o caminho escolhido.
As relações
entre metrópole, nação, meios de comunicação
e anonimato podem receber diversos formatos. O 'reality show', principalmente
o estilo Big Brother, é um exemplo. Entretanto, há
nele um extremo moralismo, uma competição exacerbada,
um acompanhamento cotidiano e, entre diversas outras características,
uma reificação do anonimato. Este torna-se mercadoria,
e claramente o 'reality show' tem a fama, antítese do anonimato,
como finalidade intrínseca. Isso não ocorre em Edifício
Master. É com distinção que Coutinho poetiza
o anonimato.
Em determinado momento
de Santo Forte um personagem diz que ali, no ambiente da entrevista,
pairavam diversos fantasmas e espíritos. Temos um corte e, em
seguida, vemos o mesmo lugar vazio e ouvimos um delicado som de vento.
Com esse procedimento Coutinho metaforiza o dilema entre razão
e fé. Em Edifício Master, depois de mais de uma
dezena de depoimentos, vemos alguns cômodos ausentes, fisicamente,
de qualquer presença humana. Uma cama desarrumada, uma sala,
um quarto... . Não sabemos a quais dos indivíduos entrevistados
eles pertencem. Tampouco temos alguma informação adicional.
Subitamente tudo se transforma em desconhecimento. Não seriam
esses cômodos a própria metáfora do anonimato? Talvez.
O interessante é que nos dois casos Coutinho se utiliza de imagens
literalmente vazias de conteúdo. O significado, aliás,
é livre. É um convite aberto, entre os espaços
do vazio ali presente, à projeção, à provocação
ou à reflexão do espectador.
O anonimato só
faz sentido pleno no interior da metrópole. Esta é ao
mesmo tempo o seu espaço de liberdade e de reificação.
O cinema, por sua vez, é um antro próprio aos anônimos.
Tornamo-nos, nós espectadores, todos anônimos depois que
as luzes se apagam e nos projetamos na tela. Cinema e metrópole,
deve-se salientar, são ontologicamente indissociáveis.
Esses três elementos tecem boa parte da comoção
causada por Edifício Master
Em 1926, Alberto Cavalcanti tentou captar a partir do filme Rien
que Les Heures um pouco da pulsação de Paris. Ele
se pautou no tempo abstrato, no ritmo alucinado e espalhado da cidade.
O cinema possibilitava um retrato holístico. Cavalcanti filma
diversas ruas e diversos indivíduos solitários. Ele os
une, a um só tempo, a partir da montagem paralela. Nesse, e em
diversos outros filmes da época, percebe-se a crença no
cinema como uma forma de ampliação da percepção
humana do mundo. A cidade, por exemplo, seria captável pelo cinema,
jamais pelo olhar de um indivíduo isolado.
De lá para
cá, Cavalcanti, muita coisa mudou. Os terrenos dos pequenos prédios
de antanho padeceram os males da especulação imobiliária.
Conseqüência: os edifícios se acentuaram como as antípodas
dos monumentos. A imagem banalizou-se. A imagem multiplicou-se: ela
não serve mais como libertação, mas, contrariamente,
como forma de vigilância e dominação. Edifício
Master tem consciência dessas mudanças, por isso, sua
poesia emerge a partir de imagens vazias, por isso, também, o
seu microcosmo reflete uma realidade mundial. Coutinho soube reinserir
o homem na feitoria dessa forma de expressão. Com ele, o cinema
torna-se antolho: o espectador é obrigado a olhar. Olhar. Olhar
onde reina a ética do não ver e do não ser visto.
É com uma constatação ambígua que saímos
de Edifício Master: o indivíduo metropolitano precisa
de antolhos para conseguir olhar.
(1) A Metrópole
e a Vida Mental de Georg Simmel IN: O Fenômeno Urbano (org) Otávio
Velho. Nesse texto temos a conceituação da atitude blasé
e a atitude de reserva.
* Pablo Martins é graduado em Ciências Sociais pela USP.
|