O ANONIMATO EM PRIMEIRO PLANO


Edifício Master de Eduardo Coutinho


por Pablo Martins *


No início do século XX o cineasta Alberto Cavalcanti fez a seguinte observação: 'se não fossem os monumentos as cidades seriam todas iguais'. Talvez tenha razão. Mais de setenta anos nos separam de Rien que les Heures, filme que enuncia a constatação do cineasta, e de lá para cá muita água rolou. Talvez, Cavalcanti, seja realmente um estilo de vida sem distinção esse impulsionado pela metrópole. Sobretudo se olharmos para as ruas do centro de toda cidade grande e perscrutarmos os seres humanos que nelas, afoitamente, passam. Passam. Passam como por eles passamos: velozes e sibilinos, sem contato algum além do físico. Parecem todos idênticos. Parecem todos sem vida... .

Copacabana, Cavalcanti. Copacabana e suas putas. Copacabana e seus turistas. Copacabana e suas calçadas - monumentais! Não vemos sequer uma cena dela no último filme de Eduardo Coutinho. Distinta e discretamente, Edifício Master muda a nossa forma de olhar Copacabana. Por cerca de duas horas espreitamos um dos cartões postais do Rio de Janeiro a partir de seus indivíduos comuns. A amplidão da vista para o mar é diretamente contraposta à solidão dos apartamentos. Ao sairmos do cinema, temos a sensação de realmente conhecermos alguns dos transeuntes do famigerado bairro. Todavia, não deixa de ser estranho precisarmos de antolhos para nos comunicarmos. O cinema nos redime de nossa perpétua insensatez, pois Edifício Master mostra a pluralidade de vida que, calados, levam consigo todos os transeuntes.

O último filme de Coutinho é um exemplo vivo da relação existente entre metrópole, cinema e anonimato. Principalmente por potencializar uma rede infinita de encontros latentes. O encontro - eis o anseio de Eduardo Coutinho. O mestre realiza, filma e mostra a arte do (des)encontro. O encontro (filtrado) dos personagens e da equipe de filmagem. O encontro (explicitado) do diretor com os seus personagens. O encontro, enfim, o tácito e misterioso encontro que ocorre entre os personagens e o espectador. Isso, pode-se objetar, já havia sido realizado na obra de Coutinho. Não há dúvida. O ponto é que Edifício Master, ao contrário dos demais filmes, muda o foco da alteridade - ele insere o anonimato no bojo dessa poderosa fórmula.

Não se trata de camponeses, moradores de favela, ou religiosos. Também não há uma classificação coerente que sirva de identidade aos habitantes do edifício Master. São indivíduos desconhecidos, e isso basta. Até mesmo a alcunha de classe média torna-se vaga, pois não há a pretensão de retratar uma condição econômica ou social. Aqueles indivíduos estão nus para o espectador. A este, portanto, cabe a classificação, o contato, a aprovação, a rejeição ou a identificação. O anonimato é um vazio conceitual: urge preenchê-lo. Com isso temos uma diminuição das distâncias sociais que separavam o espectador dos personagens - distância essa que era uma das características dos últimos filmes de Coutinho. Edifício Master, enfim, exercita o estranhamento da nossa própria realidade - a vida metropolitana.
Contudo, a ética da metrópole está às avessas em Edifício Master. Desde o início do século, as grandes cidades exibiam um estilo peculiar de comportamento. Ao contrário das províncias, aqui, os indivíduos tendem à indiferença e à reserva frente a qualquer tipo de socialização. Compreensível, já que são infinitas as informações forçosamente oferecidas ao indivíduo no seu cotidiano metropolitano . A atitude blasé é o própria consequência desse modo de vida. E Daniela, a personagem "sociofóbica", a traduz com rara sinceridade: o desejo de não ver e de não ser visto.

A poluição visual, típica das metrópoles modernas, leva a um estado psico-fisiológico que prima pela indiferença. Inevitável: ficamos um tanto cegos e filtramos, aleatoriamente, as informações exteriores que julgamos mais interessantes. Todavia não focamos a nossa atenção. Coutinho estilhaça a raiz desse padrão psicológico. Chegam, todos os personagens, ao primeiro plano de sua câmera e ficam, ali, o tempo todo parados. Todo depoimento é minuciosamente ouvido e respeitado, e atenção é direcionada ao tempo do contato, ao tempo do encontro. Desse modo, a narração de estórias, atenuada no modo de vida contemporâneo, torna-se o elemento central. Pode-se observar, mais uma vez, que esse procedimento sempre esteve presente no trabalho de Coutinho. Concordo. Entretanto, suponho que nunca o método esteve tão intimamente próximo ao objeto. É essa relação que ensaio salientar.

Coutinho também cria a antítese da sociabilidade característica dos edifícios ao conversar calmamente e sobre assuntos íntimos com cada um dos seus moradores. Temos aí o contrário do paradigma do elevador. Quem já morou em prédios de grande porte sabe do constrangimento causado por essa tecnologia. Nele, costuma-se conversar (nas raras ocasiões em que há diálogo) sobre generalidades relacionando-se de modo fugaz e descomprometido com o interlocutor. Há um contato fisicamente próximo com pessoas socialmente estranhas, esquisitas, distantes, enfim. Embora acentuadas nos edifícios essas são características que permeiam o cotidiano metropolitano. Analogamente a atitude de reserva seria uma preponderância da esfera privada frente à pública. Há, com ela, uma eterna desconfiança do outro, e evita-se o contato a qualquer custo.

Pois bem. Desde o início do filme ocorrem invasões, com câmeras e equipe de filmagem, aos apartamentos. Essas invasões são a metáfora e a própria realização da quebra da atitude de reserva. Coutinho sempre as realizou, mas elas ganham uma outra dimensão quando ocorrem dentro de corredores de um edifício qualquer. Não há mais campainha ou olho mágico que possam reinstalar a distância característica da atitude de reserva. A lição é clara: qualquer um daqueles indivíduos poderia ser um dos nossos vizinhos.

A quebra dessas regras comportamentais também ocorre em outra dimensão. Edifício Master suscita imagens do mundo a partir do claustro que é o apartamento. Isso se reforça pela ausência de cenas exteriores ou pelo foco nas narrações e nas estórias, que propiciam inúmeras imagens subjetivas. Com essa mágica tão sóbria Coutinho desloca o tipo de olhar comum aos moradores do edifício de dentro para fora e o olhar exterior do espectador penetra no mais íntimo de cada um daqueles indivíduos. A magia está na comunicação estabelecida. Um exemplo desse procedimento ocorre com a narração do assalto sofrido por Esther. Acompanhamos um pouco do seu cotidiano e, inevitavelmente, a imaginamos ajoelhada em frente a um homem branco, bem vestido e 'gatinho' pedindo para ele não puxar o gatilho. Ela lembra, ela chora. Nós a vemos chorar e imaginamos a própria sensação do assalto. É o tempo do encontro entre anônimos, uma lógica completamente diferente da reportagem sensacionalista. Essas imagens, portanto, tendem a repercutir emocionalmente no espectador pelo temor atual que se tem da violência nas metrópoles. Todos estão cotidianamente sujeitos a esse tipo de acontecimento.

O exemplo de Esther elucida a identificação entre anônimos. São os sofrimentos do indivíduo comum que ganham importância. O choro de Henrique depois de cantar My Way também pode desencadear essa identificação. Dignidade e luta à la self-made-man são valores escancarados nas suas lágrimas. Fica evidente também o preço da solidão de acordo com o caminho escolhido.

As relações entre metrópole, nação, meios de comunicação e anonimato podem receber diversos formatos. O 'reality show', principalmente o estilo Big Brother, é um exemplo. Entretanto, há nele um extremo moralismo, uma competição exacerbada, um acompanhamento cotidiano e, entre diversas outras características, uma reificação do anonimato. Este torna-se mercadoria, e claramente o 'reality show' tem a fama, antítese do anonimato, como finalidade intrínseca. Isso não ocorre em Edifício Master. É com distinção que Coutinho poetiza o anonimato.

Em determinado momento de Santo Forte um personagem diz que ali, no ambiente da entrevista, pairavam diversos fantasmas e espíritos. Temos um corte e, em seguida, vemos o mesmo lugar vazio e ouvimos um delicado som de vento. Com esse procedimento Coutinho metaforiza o dilema entre razão e fé. Em Edifício Master, depois de mais de uma dezena de depoimentos, vemos alguns cômodos ausentes, fisicamente, de qualquer presença humana. Uma cama desarrumada, uma sala, um quarto... . Não sabemos a quais dos indivíduos entrevistados eles pertencem. Tampouco temos alguma informação adicional. Subitamente tudo se transforma em desconhecimento. Não seriam esses cômodos a própria metáfora do anonimato? Talvez. O interessante é que nos dois casos Coutinho se utiliza de imagens literalmente vazias de conteúdo. O significado, aliás, é livre. É um convite aberto, entre os espaços do vazio ali presente, à projeção, à provocação ou à reflexão do espectador.

O anonimato só faz sentido pleno no interior da metrópole. Esta é ao mesmo tempo o seu espaço de liberdade e de reificação. O cinema, por sua vez, é um antro próprio aos anônimos. Tornamo-nos, nós espectadores, todos anônimos depois que as luzes se apagam e nos projetamos na tela. Cinema e metrópole, deve-se salientar, são ontologicamente indissociáveis. Esses três elementos tecem boa parte da comoção causada por Edifício Master
Em 1926, Alberto Cavalcanti tentou captar a partir do filme Rien que Les Heures um pouco da pulsação de Paris. Ele se pautou no tempo abstrato, no ritmo alucinado e espalhado da cidade. O cinema possibilitava um retrato holístico. Cavalcanti filma diversas ruas e diversos indivíduos solitários. Ele os une, a um só tempo, a partir da montagem paralela. Nesse, e em diversos outros filmes da época, percebe-se a crença no cinema como uma forma de ampliação da percepção humana do mundo. A cidade, por exemplo, seria captável pelo cinema, jamais pelo olhar de um indivíduo isolado.

De lá para cá, Cavalcanti, muita coisa mudou. Os terrenos dos pequenos prédios de antanho padeceram os males da especulação imobiliária. Conseqüência: os edifícios se acentuaram como as antípodas dos monumentos. A imagem banalizou-se. A imagem multiplicou-se: ela não serve mais como libertação, mas, contrariamente, como forma de vigilância e dominação. Edifício Master tem consciência dessas mudanças, por isso, sua poesia emerge a partir de imagens vazias, por isso, também, o seu microcosmo reflete uma realidade mundial. Coutinho soube reinserir o homem na feitoria dessa forma de expressão. Com ele, o cinema torna-se antolho: o espectador é obrigado a olhar. Olhar. Olhar onde reina a ética do não ver e do não ser visto. É com uma constatação ambígua que saímos de Edifício Master: o indivíduo metropolitano precisa de antolhos para conseguir olhar.


(1) A Metrópole e a Vida Mental de Georg Simmel IN: O Fenômeno Urbano (org) Otávio Velho. Nesse texto temos a conceituação da atitude blasé e a atitude de reserva.

* Pablo Martins é graduado em Ciências Sociais pela USP.