EDUARDO COUTINHO FALA DE SEU TRABALHO


O documentarista Eduardo Coutinho foi o protagonista do debate de mais de duas horas que aconteceu no dia 03/10/01), no auditório do Institudo de Estudos da Linguagem, na Unicamp, na cidade de Campinas. O encontro fez parte da "Mostra Eduardo Coutinho de Vídeo Documentário", que aconteceu dos dia 01 a 05 de outubro na universidade. Durante os cinco dias foram exibidos os filmes "Fio da Memória", "Santa Marta, 2 semanas no Morro", "Boca de Lixo", "Teodorico, Imperador do Sertão", "Santo Forte", "Babilônia 2000", e o clássico "Cabra Marcado para Morrer", todos com a direção de Coutinho. A mostra foi uma iniciativa dos alunos do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) que desde março já vinham exibindo uma vez por mês produções do cineasta brasileiro.

por Angélica Valente


Direto e preciso, Coutinho não quis fazer qualquer exposição introdutória. Pediu aos participantes que lhe fizessem perguntas e nas respostas falou dos tempos do CPC, de (não)teoria do documentário, de processos de produção, sua relação com os entrevistados, indústria audiovisual, de ilusões e ausência delas, das produções concluídas e do projeto em andamento, ainda sem nome e sem data para lançamento.

Confira abaixo os principais trechos do debate:

CPC
"Cheguei da França no final de 1960, fui pro Rio de Janeiro e lá acabei conhecendo o pessoal do CPC. Eles estavam com o projeto do "Cinco vezes favela", eu queria trabalhar, filmar, eles precisavam de uma espécie de produtor-gerente, eu não sei lidar com dinheiro mas era a única forma de entrar no projeto, então eu entrei e fiz. O CPC era muito sectário, eram todos membros do PC, menos eu. Eles eram fechados. Mas foi uma experiência fascinante porque juntava aquela garotada que queria produzir, fazer alguma coisa, e fazia. Foi muito marcado pelo autoritarismo, mexia com a arte popular revolucionária, eles queriam mesmo mudar o mundo com aquilo alí do jeito deles. E veio o golpe. Talvez se não tivesse vindo o golpe eles começariam a ouvir o outro, porque eles não fizeram isto".

INDÚSTRIA?
"Lei de audiovisual eu não entendo, não quero falar sobre isso, é muito genérico, não entendo a China como eu vou querer falar sobre a China? Eu não acredito que o cinema possa virar indústria aqui, tem gente que acha que vai ganhar dinheiro com isso, eu não tenho a pretensão de ganhar dinheiro com isso. Eu quero que as pessoas vejam meus filmes, quero isso de estar aqui hoje discutindo e pra mim basta. A gente não sabe porque faz cinema".

O FIO DA MEMÓRIA
"Foram três anos de trabalho, foi um processo muito doloroso pra mim porque existia um tema e eu não gosto disso. Ter de corresponder a uma expectativa. Eu escolho um lugar vou lá e filmo a vida das pessoas, o que fez, casa, família, amor, vida, morte, simples assim. Eu gosto de fazer filme sobre o que ninguém tá querendo ver e falar, porque assim eu posso trabalhar do meu jeito sem ter que corresponder a nenhuma expectativa externa. Eu queria fazer um filme que fosse um fracasso, que não dê certo".

BOCA DE LIXO
"Acontece que o lixo no final das contas é mais uma estratégia de sobrevivência. Saber as representações daquelas pessoas que vivem alí é o que me interessa. Eu queria eliminar a figura da pesquisa que me enche o saco, fazer um filme em que a pesquisa fosse o filme e o lixo possibilitou isso. "Boca de Lixo" não tem pesquisa nenhuma. Eu já cheguei com a câmera e fui ver o que acontecia. Tudo era surpresa. Por exemplo, tinha um cara barbudo, de 70 anos, o pessoal de lá chamava ele de Papai Noel, eu queria falar com ele mas podia, não sei, levar um esporro. E fui falar com ele, entregar a fotografia dele, ele me disse que se eu tivesse tempo ele me contava 60 histórias de tudo, do Brasil de norte à sul. Outra surpresa foi a personagem que fugiu de mim todos os dias, mandou que eu desligasse a câmera depois me chamou pra filmar na casa dela. Foram vinte minutos de filmagem que deram um resultado incrível. Não tem que ficar dias, e horas".

"EU NÃO SOU UM TEÓRICO"
"Eu busco o espontaneo e forte, mas não vou querer discutir teoricamente o que é isso, eu vejo no momento da gravação se aquilo tem força ou não. Como em "Babilônia 2000" aquela menina que diz que queria arrumar aas coisas, pentear cabelo e dissemos a ela que não precisava, e ela vira e fala 'cês querem a pobreza mesmo. É isso?' Isso tem força. Tem menino de rua por exemplo que já tá tão acostumado com a presença de câmera, com abordagem de jornalista e cineasta, que sabe de longe se aquele um vai querer o tipo sofrido ou o tipo feroz e violento, e aí dá o seu depoimento: 'eu fui abandonado, não tenho pai nem mãe' ou 'é, eu matei meus dois irmãos e minha tia'. Mas comigo isso não acontece tanto porque já digo de cara que não sou da televisão, é cinema e é documentário, eles mal sabem o que é isso. Perde a magia que eles esperam, mas ao mesmo tempo agrada ter uma câmera pra ouví-los. E então as pessoas falam para a câmera, elas gostam e sai cada coisa maravilhosa".

FICÇÃO REAL
"As pessoas vão ao cinema para sonhar. O documentário é minoritário no cinema, e aí as pessoas querem fazer o 'docudrama', manter o esquema.
O documentário é inacabado, imperfeito, tem que deixar lacuna.
O filmar está presente nos meus trabalhos, o processo sempre está presente. A câmera, a equipe, minhas perguntas. Não tenho roteiro, tento fazer uma montagem, que é o meu roteiro, que não seja ficcionalizante. O filme é construído sim. É a minha interpretação daquilo lá. Quando termiana o trabalho eu volto às comunidades, faço exibição do filme, dou uma cópia para quem participou".
"Não quero fazer isso só pra mim, eu quero construir algo que possa ter interesse pra alguém".
"Ao se aproximar mais do real o documentário vira ficção".

FABULAÇÕES
"Não é 'a verdade' ou 'a mentira' que interessam, o imaginário é o que me interessa, quando a pessoa fala que incorpora um santo e incorpora, se conta bem contado, se sabe contar, me interessa. Vira verdade. Se a gente não conhece o imaginário do povo como vai querer mudar alguma coisa? Eu cito Deleuze, quero 'pegar o outro em flagrante delito de fabulação'".


ANTROPOLOGIAS
"Eu não filmo o índio porque não entendo o índio e ele não me entende, não pego monomotor pra chegar em lugares de difícil acesso. E o cineasta assume uma postura ridícula de 'índio, você que é puro e bom me responda'. A idealização é mortal no documentário. O filmar o outro tem que levar em conta o olhar na mesma altura e a diferença em relação ao outro. Não tenho que fingir que sou igual à ele. O grave de querer mudar o mundo no documentário é que o cara vai querer mudar aquele com quem ele vai filmar. Há que se dar conta que a neurose do intelectual é tão mágica quanto a religiosidade do 'popular'".

PRÓXIMO TRABALHO
"Eu vou fazer esse filme porque ninguém mais vai querer fazer.
Filmei um prédio, aluguei um apartamento alí e o trabalho que eu tinha de transporte era por tudo no elevador e subir alguns andares. Uma maravilha, eu eliminei o problema da produção! A idéia era de uma pessoa que trabalha comigo e tem um escritório de edição num prédio, ela queria filmar um documentário no prédio. Eu me interessei por aquilo. Fomos visitar prédios, escolher, falar com síndicos. E eu vou tentar descobrir a vida dessas pessoas que vivem num prédio em Copacabana de 276 apartamentos conjugados, que era um prostíbulo e o síndico re-transformou com umas re-formas. Não sei se por uma proximidade de classes, identificação maior, alí não era mais a favela, é a classe média baixa mesmo, foi uma experiência mais gratificante que as outras, sem dúvida. O trabalho é o horror e o não-horror de viver num lugar assim. Alí saiu um confessionário, divã do analista, 'programa do ratinho', melodrama de telenovela, fofoca".


(publicado em outubro de 2001)

Filmografia do diretor e bibliografia indicada