Um encontro com o passado:
Documentário brasileiro discute polêmica envolvendo
filme cubano-soviético da década de 1960



Em 1962 o diretor russo Mikhail Kalatozov chegou à Cuba para fazer um filme sobre a revolução que três anos antes modificara o panorama político daquele país até então governado pelo modelo clássico das oligarquias latino-americanas. Durante, aproximadamente, dois anos o cineasta e sua equipe percorreram a ilha em busca de imagens que expressassem o sentido do movimento revolucionário e a alma do povo cubano. O filme, porém, frustrou as expectativas, decepcionando tanto os idealizadores soviéticos quanto seus colaboradores cubanos. O público também o rejeitou. Na URSS foi mal recebido e em Cuba ficou apenas uma semana em cartaz. Depois disso foi recolhido aos arquivos do ICAIC onde permaneceu esquecido até o início dos anos 90 quando foi resgatado por Martin Scorsese e Francis Ford Coppola que viram no filme uma verdadeira relíquia cinematográfica.

O que aconteceu nesse período?

O que explica que um filme considerado ruim tenha se transformado, tempos depois, em um clássico?
Partindo desses questionamentos, o diretor Vicente Ferraz, brasileiro, profundo conhecedor do cinema e do povo cubano, inicia uma série de pesquisas com o objetivo de discutir o destino do filme de Kalatozov quatro décadas após o seu lançamento. Trata-se de “Soy Cuba: o mamute siberiano”, documentário histórico cujo título resume o seu conteúdo, interessado em estabelecer uma ponte entre o passado e o presente, entre a história e a memória.

Com uma trajetória brilhante até o momento, “Soy Cuba: o mamute siberiano”, participou do IDFA, Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (2004), do Sundance Festival (2004), do Festival de Locarno na Suíça (2005), do Festival de Havana (2004), do BAFICI, o Festival de Cinema Independente de Buenos Aires e do Festival do Rio. Foi convidado por mais de 100 festivais internacionais, incluído o de Figueira de Foz, o de Leipzig, de Los Angeles, de Varsóvia, de Torino, de Biarritz e o de Icaro na Guatemala. Entre os prêmios recebidos, destacam-se o de melhor documentário no Festival de Guadalajara, o prêmio da imprensa estrangeira no Chicago Documentary Festival, o de melhor roteiro no Festival de Recife, o de melhor documentário no Festival de Lima e os prêmios de melhor documentário e o da crítica pelo melhor filme no Festival de Gramado.

O filme, revelando imagens pouco usuais da cidade de Havana, inicia-se com a voz do diretor que, em off, nos conta a história do seu projeto e a história do ICAIC cujos princípios fundadores se confundem com os da própria Revolução.

Lembrando que o cinema, segundo o regime instaurado em 1959, era visto como um poderoso instrumento no processo de transformação social, Vicente restabelece uma discussão central acerca da noção de arte revolucionária, ou seja, a relação entre ‘práxis’ e estética. “Soy Cuba” se inscreve nessa perspectiva, buscando uma forma de comunicação com o público que rompesse com o cinema burguês convencional.
Mas o que seria esse novo cinema?

As entrevistas feitas com os integrantes da equipe cubana reforçam a hipótese de que o filme não atendeu as expectativas, porque teria se concentrado mais na dimensão estética do que na representação do país e seu povo.

Da equipe soviética, a maioria não teve a oportunidade de reavaliar o trabalho que lhes ocupou dois anos de vida e esforços. Entre 1973 e 1974 morreram, além de Kalatozov, o diretor de fotografia Sergei Urusevsky e sua esposa Belka, que trabalhou no filme como assistente de direção. Dos principais membros da equipe soviética apenas Alexander “Sacha” Calzatti foi localizado. Sua volta à Cuba, quase 40 anos após o seu retorno para URSS, revela a importância do projeto de “Soy Cuba” em sua vida e na dos demais integrantes do grupo dirigido por Kalatozov.

Ao comentar sobre o filme observa-se, nas palavras de Sacha, uma discreta recusa em aceitar o julgamento que lhe foi dado. Parece que a distância que separava a realização do filme da elaboração de suas memórias tinha permitido que fossem percebidas determinadas nuances do mesmo, anteriormente, inapreensíveis. Uma delas diz respeito à dimensão poética de “Soy Cuba”, provavelmente, negligenciada, na época de seu lançamento, em favor de uma leitura literal e “engajada” da obra.

Deve-se lembrar que no início dos anos 60 as experiências de cinema político na América Latina dividiam-se em duas tendências: uma mais ortodoxa e outra mais poética. Glauber Rocha, no Brasil, representava esse segundo segmento, como lembra Vicente Ferraz, que recorre às imagens de “Deus e o diabo na terra do sol” (1964) para mostrar uma das possibilidades de cinema político existentes no panorama cultural daquela época.

Buscando uma forma de comunicação com o público mais centrada na forma do que no conteúdo, essas experiências caracterizavam-se, de um modo geral, pela não adesão das massas, acostumadas a um padrão de narrativa direta, não metafórica.

No depoimento de Salvador Wood essa questão é levantada. Comentando sobre a cena da manifestação popular que compõe uma das quatro esquetes do filme de Kalatozov, ele diz que a reação meio lenta, meio calculada do personagem principal, estaria mais de acordo com o temperamento eslavo do que com o do povo cubano incapaz, segundo ele, de reagir daquela maneira em semelhante circunstância. O fato de não ter se visto retratado no filme seria, para Sergio Corrieri, uma das explicações do seu fracasso junto ao público cubano.

Preocupado com uma verdade de tipo sociológica (1), preocupação recorrente no cinema político produzido no início dos anos 60, esse tipo de comentário deixa de levar em conta o específico fílmico. No caso do filme de Kalatozov, o que está em jogo, não é a produção de uma imagem em espelho da realidade, mas a elaboração, a partir de recursos cinematográficos, de uma codificação capaz, como chamou atenção Christian Metz (2), de construir determinadas significações do real.

Sobressai, em muitas das entrevistas, o interesse de Kalatozov e principalmente de Urusevsky pela experimentação, pela criação de sentidos a partir de signos puramente visuais. A cena do enterro do estudante, um dos maiores planos seqüência da história do cinema, reforça essa pretensão. Ali o que interessa, ao contrário do que seria de se esperar em um filme mais convencional, não é transformar em herói nem o estudante morto nem a multidão que acompanha seu enterro. O que interessa é dotar esse acontecimento de sentido usando as imagens para construir uma idéia de movimento e acima de tudo de direção, de rumo a um determinado fim.

Sugerindo a noção de processo e trajetória, como propõe, aliás, a estrutura de “Soy Cuba” (formada por quatro histórias das quais a primeira enfoca o estilo de vida da burguesia cubana, cercada de luxo e superficialidade e a última, a tomada de poder pelos revolucionários), a cena do enterro, com a multidão serpenteando as ruas estreitas de Havana Velha, resume não apenas o enredo do filme, mas o próprio sentido da revolução.

Não se trata, apesar do roteiro ter sido escrito a partir de fatos reais, de representar os acontecimentos tais como efetivamente ocorreram. Trata-se sim, de dotar tais acontecimentos de significado, de fazê-los significar mais do que realmente significam. Essa posição, típica de algumas vanguardas cinematográficas, sobretudo do expressionismo, revela, grosso modo, a que tipo de linguagem se filia o filme de Kalatozov.
Mas, seria essa a expectativa de quem o assistiu na época do seu lançamento?

Os depoimentos indicam que não. Por outro lado, pela fala dos entrevistados, parece que a forma de recepção do filme mudou, da primeira vez em que foi assistido, no início dos anos 60, à segunda, no seu relançamento no final dos anos 90. Na verdade, não há qualquer informação clara nesse sentido. No entanto, apesar de todos afirmarem categoricamente não terem gostado do filme quando o viram pela primeira vez, em nenhum momento se disse que o filme era ruim. A forma um tanto quanto evasiva dos entrevistados narrarem suas memórias indica que alguma mudança no modo de ver o filme ocorreu nesse intervalo de tempo. O depoimento de Alfredo Guevara reforça esse ponto de vista. No seu entender, o filme havia realmente mudado de significado: de instrumento de intervenção na realidade, revelador das marcas históricas do período em que foi realizado, havia se transformado, após o fim da Guerra Fria, em objeto de pura contemplação, objeto museológico, em suma, um fóssil, como indicou Vicente Ferraz em “Soy Cuba: o mamute siberiano”.

O diretor procura dar nova vida a esse objeto fugindo do lugar comum do “resgate do sentido da obra”. Polifônico, interessado em levantar questões mais do que em fornecer explicações, o filme não fala do passado; ele dialoga com o passado utilizando uma das linguagens que a sua época lhe propõe. Esse, aliás, é o papel que Roland Barthes (3) reservou à crítica. No seu entender, não há crítica isenta, objetiva; a crítica interroga sempre o objeto a partir do seu próprio ponto de vista.

Produzido entre 2001 e 2004 o filme de Vicente Ferraz traz as marcas de seu tempo; um tempo marcado, entre outras coisas, pelo fim das utopias, pelo esfacelamento das grandes narrativas; um tempo que já não se preocupa apenas em desconstruir verdades, em demolir conceitos; um tempo que procura, por entre as brechas do passado, reconstruir algo, ainda que esse algo seja impreciso, vago, não definitivo.

As imagens de Havana, intercaladas às entrevistas e fragmentos do filme de Kalatozov, revelam, apesar dos prédios em ruínas e dos automóveis antigos que teimam em continuar circulando pelas ruas da maltratada cidade, um vigor, um ritmo, uma energia, que coloca pelo avesso o reiterado discurso da morte do socialismo.

Em um de seus comentários, Vicente estabelece um paralelo entre o destino de “Soy Cuba” e o da revolução. O filme, após anos de esquecimento, foi “resgatado”. Será esse o destino da revolução? Deixemos ao mundo a tarefa dessa resposta. Quanto a “Soy Cuba: o mamute siberiano”, a sua tarefa parece ter sido cumprida. Resta agora o julgamento do público que aguarda o lançamento do filme previsto para 2006.

FICHA TÉCNICA
Roteiro e direção: Vicente Ferraz
Produção: Isabel Martinez
Fotografia: Vicente Ferraz e Tareq Daoud
Montagem: Dull Janiel e Mair Tavares
Música: Janny Padrón
Produtora: Três Mundos Produções


Notas

(1) Este argumento foi desenvolvido por Jean-Claude Bernardet. Cineastas e imagens do povo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

(2) Christian Metz. A significação no cinema. São Paulo, Perspectiva, 1972.

(3) Roland Barthes. Crítica e verdade. São Paulo, Perspectiva, 1999

* Historiadora, doutora em comunicação e pesquisadora de cinema

publicado em 10/11/2005