Dialogar com
as poéticas do documentário teve origem no desejo
de desenvolver uma reflexão sobre determinados pontos em
que a leitura da realidade, torna-se singular na perspectiva de
um determinado sujeito e numa determinada cultura.
A opção pelo estudo dos documentários Na
Rota dos Orixás de Renato Barbieri e Standarts de Luis
Valdovino e Dan Boord se deu processualmente e despertou o interesse
em estabelecer paralelos entre uma perspectiva mais cognitiva
e realista e outra mais experimental e simbólica, definindo
assim duas tendências estéticas. Essas definições
decorrem da observação e análise dos documentários
e de entrevistas com seus diretores.
1. PONTES IMAGINÁRIAS: A POÉTICA DE RENATO BARBIERI
Em abril de 2002 iniciamos um diálogo via internet com
Renato Barbieri (www.videografia.com.br), cineasta paulista nascido
em Araraquara, a respeito das possibilidades narrativas do documentário,
especificamente sobre o "documentário experimental".
Sobre o tema, Barbieri assinala que a questão do documentário
experimental foi de suma importância para ele nos anos 80,
período em que fazia parte da produtora independente Olhar
Eletrônico e que realizou os documentários Do Outro
Lado da Sua Casa (1985), Duvideo (1989) e Expiação
(1989).
Na Rota dos Orixás é um documentário produzido
em 1998, e é objeto de estudo privilegiado neste estudo,
sendo destacado do conjunto de sua obra por mostrar-se apropriado
à reflexão aqui proposta.
1.1 Uma estética de elaboração experimental
A produção
documentária de Renato Barbieri está em sua gênese,
ligada à origem do uso do suporte eletrônico como
objeto de invenção estética. Na preocupação
em compreender a realidade do outro, onde, o objeto participa
como sujeito na invenção da obra, continuará
presente como uma impressão caligráfica na obra
documental de Renato Barbieri.
Compreender
a sutil diferença de abordagem do documentário Na
Rota dos Orixás, em relação a documentários
com uma narrativa clássica, passa pela compreensão
das vertentes e desafios dos grupos brasileiros de produção
de vídeos independentes e/ou experimentais na década
de 80, incluindo também os caminhos do cinema brasileiro
nos anos 90 e as ligações entre Mito e Realidade.
1.2 A recordação
é para aqueles que esquecem (Plotino, 500 a.C.)
Podemos relacionar a passagem em que Mircéa Eliade (1 -1972:107)
nos fala sobre a deusa grega Mnemósine - a personificação
da Memória, mãe das Musas e onisciente, pois ela
sabe "tudo que foi, tudo que é, tudo que será",
e "quando o poeta é possuído pelas Musas, ele
sorve diretamente da ciência de Mnémosine, isto é
sobretudo do conhecimento das origens, dos primórdios,
das genealogias" - ao depoimento dado pelo Poeta no documentário
Na Rota dos Orixás, quando diz a respeito da árvore
do esquecimento que os negros escravizados tinham que cumprir
o rito de a rodear a fim de esquecer suas raízes africanas.
A frase de Plotino resume também a percepção
que temos da intenção do autor do documentário
Na Rota dos Orixás, em cultivar um espírito que
brasileiros e africanos partilham culturalmente, propiciando um
encontro, revelando similitudes e continuidade, e não simplesmente
uma recordação de um passado histórico trágico,
longínquo ou esquecido
Também é possível relacionar as "liberdades
poéticas" de Barbieri - tanto no documentário
Na Rota dos Orixás (1998) quanto em outro documentário,
também de sua autoria, Malagrida (1999), com a abordagem
que Lúcia Nagib (2) faz no ensaio Imagens do Mar: visões
do paraíso no cinema brasileiro atual (2001), sobre o cinema
brasileiro na década de 90. Deste ensaio, apresentado no
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação (2001)
nós destacamos o seguinte trecho: "sintomaticamente,
nesse momento de 'redescobrimento', a imagem metafórica
do mar volta com poder total. A imagem do mar como metáfora
faz parte da história cinematográfica brasileira,
que tem sua genealogia no cinema de Glauber Rocha". Que,
por sua vez, tem como importante referencial o cineasta Humberto
Mauro, considerado o patrono do cinema novo.
A poética de Renato Barbieri, com uma mentalidade brasileira,
se dá no diálogo e na relação de troca
de uma interlocução documental na qual o objeto
é também sujeito, e na imagética que evoca
os elementos míticos de origem. Há também
um cuidado primoroso com a palavra que narra a idéia, a
tese. O ângulo dado pelo autor/diretor em nenhum momento
reduz a realidade documentada ao plano bidirecional: a palavra
desenha a profundidade do horizonte.
2. O SURREALISMO DE TODO DIA: A POÉTICA DE LUIS VALDOVINO
E DAN BOORD
Luis Valdovino (valdovin@stripe.colorado.edu) é argentino,
professor associado de vídeo arte na University of Colorado
(EUA). Dan Boord é norte americano e professor associado
de vídeo arte na Ohio State University (EUA). Em 12 anos
de parceria, produziram inúmeros vídeos documentários:
Valdovino justifica sua posição a respeito do trabalho
em parceria, deixando claro com quais linhas do pensamento teórico
eles dialogam e qual o seu pensamento com relação
à "teoria do autor" francesa. Este processo é,
em certo sentido, um desafio à crítica e à
formação da auto-imagem. Esta tem sido a principal
força ideológica por trás da maior parte
da mídia independente. Jean-Claude Bernadet (3), em seu
livro O Autor no Cinema (1994), observa que "a política
é a apologia do sujeito que se expressa" (ibid.: 23).
Afirma que essa concepção nega totalmente uma outra
que entende o cinema como uma arte coletiva, de equipe.
Valdovino e Dan Boord trabalham em cooperação desde
o nascimento da idéia do documentário até
o término do trabalho.
No documentário Standarts não há uma interlocução
com o ponto de vista do sujeito da cena; vai-se percorrendo o
cotidiano no Colorado, Argentina, México, Itália
e Equador. O texto em off nos conduz a uma série de imagens
do cotidiano, pontuadas por imagens descomprometidas entre si,
e de várias partes do mundo, no final do século
XX. as experiências do dia-a-dia assumem forma e característica
que freqüentemente parecem extrapolar a aplicação
da lógica.
O hibridismo demarca o trabalho da dupla Valdovino e Dan Boord.
Valdovino que se diz fascinado pela colisão de várias
manifestações de sentido e de poesia de sugestão,
ao invés do controle rígido da informação
didática.
2.1 O tempo cotidiano: uma necessidade do mundo moderno
Margaret Cohen (4), quando se refere ao sentido lusco-fusco do
texto panorâmico, da Paris do século XIX, nos traz
algumas análises que são úteis na compreensão
dos desafios dessa poética.
A obra de Luis Valdovino e Dan Boord, apesar de distantes das
litografias do século XIX, no tempo e no espaço,
assemelha-se às gravuras de época pela variação
proposta entre representação (imagem) e referente
(mundo).
Para Lukács (ibid.:326) , esta intenção de
leitura do cotidiano lança o leitor, tomando como exemplo
as litografias panorâmicas, em um lusco-fusco epistemológico,
"um estado em que o conhecimento objetivo, a experiência
exteriormente verificável, ficções socialmente
sancionadas e uma projeção individual fantasmática
interagem de modo instável e desordenado".
A mesma sensação
de lusco-fusco se dá na apreensão da realidade apresentada
pelo documentário Standarts, em sua abordagem panorâmica
de um cotidiano culturalmente múltiplo e com uma imagética
híbrida. Aqui reside sua poética.
3. PARALELOS RESSONANTES
O documentário, além de possibilitar o registro
e exposição de fenômenos naturais e sócio-culturais,
permite que seja revelado algo além da experiência
imediata, em decorrência do olhar dos sujeitos envolvidos
na produção documentária.
Segundo Arlindo Machado (5 -1999), a fotografia necessita de uma
construção cultural para existir como registro da
realidade, impondo um conjunto de normas técnicas e de
linguagens, para que a própria imagem e seu significado
se constituam.
Isso pressupõe, portanto, construções "que
são sempre e necessariamente intencionais, interpretativas
e subjetivas" (ibid.: 01). Machado não nega de todo
a possibilidade de acesso ao real pela fotografia, mas alerta
que este acesso não se dá ingenuamente, sendo possível
apenas por meio da construção de um discurso sobre
o real
Sobre as mesmas teses de Bazin (6), Dudley Andrew (1976:143),
nos diz que, logicamente, Bazin não era ingênuo e
também argumentava "que o homem criou essas invenções
tecnológicas e trabalha com elas a fim de que a natureza
penetre no celulóide, onde pode ser preservada e estudada".
Para Andrew (ibid.:70), Bazin acreditava em um sentido de mundo,
e que o cinema, mais do que qualquer outra arte, é "naturalmente,
capaz de sugerir e capturar o sentido de um mundo que flui ao
redor e além de nós".
De outro lado, portanto, a radicalização do caráter
cultural da imagem, como foi assinalado por Machado (op. cit.),
instaura a perspectiva relativista no âmbito da produção
audiovisual e documentária. Esta segunda posição
aposta tudo no olhar do sujeito construindo a realidade como representação
da ação da consciência sobre o mundo.
Estamos diante
de duas teorias com faces opostas sobre o fenômeno fotográfico/documental,
que envolvem realismo versus relativismo. Nessa perspectiva, seria
fácil e "econômico" dizer que os dois documentários,
que são objetos de nossa investigação e análise,
situam-se entre esses dois extremos da representação:
o documentário como verdade versus o documentário
como linguagem. Mas não é este o caso. Foi-se o
tempo em que as polaridades davam conta da realidade.
3.1 A questão autoral
Como marca da peculiaridade expressa pelo estilo de cada um dos
diretores, a questão da autoria vai sendo evidenciada pelo
modo específico como cada autor aborda e compõe
tecnicamente o seu discurso sobre os dados da realidade.
Para Bernadet (7) todas essas tentativas de buscar o autor, revelam
um pouco mais do que o mal-estar causado pela repercussão
do anti-humanismo de Foucault. Na concepção da política
de autor francesa, sem unidade não há mais autor
"mas com certeza um outro autor" (ibid.:178).
A discussão
sobre autoria apresenta ainda duas vertentes a serem consideradas:
A que discute a presença do autor na obra enquanto revelação
de sua personalidade de uma perspectiva mais próxima da
psicanálise do que da crítica ou da comunicação
Hipótese rejeitada pelo estruturalismo, onde a obra revela
seu narrador, que não coincide necessariamente com o autor.
Do ponto de vista da análise da obra, sua unidade ou seu
estilo, são dados inerentes que não dizem respeito
diretamente aos autores.
O que chamamos de estilo autoral se manifesta na obra e não
necessariamente no autor. Mais relevante neste estudo é
a noção de estilo poético, que no caso do
documentário toca na questão da isenção
do autor diante da realidade como vimos anteriormente.
3.2 Em síntese, duas poéticas contemporâneas
A poética
de Barbieri nos traz uma perspectiva de autoria que pode ser denominada
"autor-outro". Parte da idéia de que o autor,
além de sujeito, é também objeto de seu tema
e da sua obra. O devir da produção audiovisual passa
a reagir na execução do roteiro original, e a alterar
o ponto de vista do sujeito/autor, que se mostra sensível
aos apelos da realidade e do próprio fazer poético.
Apesar de um fazer mais experimental e desordenado, a poética
de Valdovino e Dan Boord, reafirma paradoxalmente a perspectiva
autoral, já que sua produção parte de um
plano conceitual pré-determinado, síntese de dois
sujeitos que realizam uma única narrativa. Neste caso,
a obra e a própria realidade se manifestam como "objeto/metáfora",
porque sua matéria prima híbrida e não homogênea,
adquire sentido na revelação simbólica de
um conceito pré-determinado.
Os dois documentários resultam de contextos culturais distintos,
uma vez que Barbieri é brasileiro, integrante da geração
paulista de cine-vídeo dos anos 80, e Valdovino um argentino
que trabalha na Academia dos EUA, juntamente com o parceiro americano
Dan Boord.
Apesar de constituírem poéticas muito diferentes,
a afirmação da memória em Barbieri e os conflitos
da dualidade entre símbolo e realidade em Valdovino e Dan
Boord, indicam a importância da interação
entre a realidade factual e as questões mítico-culturais,
como possibilidade de enunciar o que é estar vivo e presente
neste nosso tempo.
1.
ELIADE, Miecea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva,
1972
2. NAGIB, Lúcia. Imagens do Mar Visões do Paraíso
no Cinema Brasileiro Atual. Campo Grande: INTERCOM, 2001.
3. BERNADET,
Jean-Claude. O Autor no Cinema. São Paulo: Brasiliense:
Edusp, 1994.
4. COHEN,
Margareth. A literatura panorâmica e a invenção
dos gêneros cotidianos. O Cinema e a Invenção
da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
5. MACHADO,
Arlindo. Técnicas Fotográficas. São
Paulo: Itaú Cultural, 1999
6. ANDREW,
J. Dudley. As Principais Teorias do Cinema: Uma introdução.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
7. BERNADET,
Jean-Claude. O Autor no Cinema. São Paulo: Brasiliense:
Edusp, 1994.
* Sônia Bacha é videasta e professora convidada -
Especialização: Educação em Arte e
as Novas Tecnologias/EAD/UFMS
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