Formação
e influências
"Comecei a
fazer cinema em 63, na época eu estudava engenharia na escola
Politécnica em SP, e vim do interior fazendo aquele 'pinga-pinga',
subindo do interior para uma cidade maior, que é Uberaba, depois
Belo Horizonte... Depois vim para cá para fazer o vestibular
de engenharia na USP, na Politécnica. Sempre fui uma pessoa muito
inquieta e passei por crises terríveis na adolescência,
crises existenciais e filosóficas, então quando entrei
na escola foi natural que eu procurasse e acabasse me enturmando com
o pessoal ligado à cultura, arte, cinema e ao teatro da Politécnica.
Tinha um grupo que já estava trabalhando na escola, do Francisco
Ramalho Jr., (...) ele tinha uma câmera super 8 e feito um filme
em super 8 que chamava "Menina Moça"; o ator era o
Antônio Bertasso, querido Antônio Bertasso, que foi morto
pela ditadura, pela luta armada.
Isso acho que foi
em 63, me aproximei desse pessoal e fizemos um grupo chamado Kuatro
com 'K', e porque fizemos isso? Um grupo quatro com 'K'? Porque tanto
eu como o Ramalho éramos influenciados tanto pelo neo-realismo,
que era um cinema que a gente gostava muito, e também o cinema
tcheco e o polonês; o cinema polonês tinha dois cineastas
o Wajda e o Kawalerowicz (Jerzy), eu, particularmente, era fã
dos dois, e o grupo dele era "Kadr", então nosso grupo
chamou-se Kuatro, nós éramos quatro e chamou quatro com
'K', "K - u - a - t - r - o", e a apresentação
era igual ao do 'Kadr', que era um teclado de máquina de escrever
com barulho "tec-tec-tec".
Então dá
para sentir um pouco como era nossa formação como cinéfilo,
como amante do cinema e tal... Para mim tudo era muito novo, porque
vim do interior, embora fosse uma pessoa muito inquieta, assim, intelectualmente,
mas tinha formação muito frágil, então quando
entrei na universidade, entrei no 1º ano em 60, eu fiquei agoniado,
desesperado para recompor, tirar o atraso, então comprava livros
antigos, lia na própria biblioteca ou na própria livraria,
nos sebos; roubava livros dos sebos, porque vários estudantes
que tinham livros com fundos falsos... Não conhecia Mário
de Andrade, não conhecia nada da semana de arte moderna, não
conhecia o Graciliano Ramos, não conhecia o Guimarães
Rosa, era um atraso assim, coisa de gente que veio do interior mesmo,
então eu era agoniado para tirar o atraso e lia muito e tudo
me interessava, inclusive o cinema. Mas no cinema, menos a "nouvelle
vague" e mais o "neo-realismo" e mais o grupo polonês.
A "nouvelle vague", eu particularmente me senti atraído,
via gostava tal (...), mas achava uma coisa meio "fru-fru",
assim, não me pegava muito não!
Sempre tive tendência
de gostar de uma coisa mais pessoa mesmo, um cinema que tivesse uma
densidade social, um mergulho no social, tal (...). Por isso gostei
muito do cinema polonês do começo dos anos 60, ia muito
à Liberdade ver os filmes japoneses, conhecia todos os cineastas
japoneses e particularmente os cineastas mais densos, o cinema que tinha
uma relação das mais profundas com a sociedade e tal (...)
Juramento de obediência,
filmes assim, que eram fortemente políticos, alguns filmes também
do Kurosawa (Akira) do começo, mas não só ele,
tem vários cineastas, tal (...). O Naguisa Oshima, os primeiros
filmes dele, que é uma coisa maravilhosa, ele tem um filme, por
exemplo, que é "Noite e névoa sobre o Japão",
sobre o momento que o partido comunista do Japão resolve acabar
com o Zengapuri, a organização do partido (...), e os
homens ficam desesperados, são muito parciais, aquele sofrimento
de juventude, aquele sofrimento existencial de adolescente misturado
com o sofrimento pelas mudanças políticas e tal (...).
O filme, acho que é de 1958/59, feito na mesma época que
as primeiras coisas da "nouvelle vague", com aquela câmera
em cima da moto, câmera na mão, muito louco, mas uma maravilha;
e de uma carga de emoção política assim, jovem,
impressionante. Depois ele também fez um filme que marcou muito,
que é O Túmulo do Sol (1961), um filme maravilhoso, e
eu sei que ele marcou muito o cinema brasileiro, quer dizer, muita gente
viu esse filme aqui, inclusive o Glauber (Glauber Rocha), o Alex (Alex
Viany), e todo mundo ficou assim extasiado com o filme, porque não
era um filme que tinha estes espaços urbanos em planos gerais,
com figuras de jovens na favela, em 1º plano; eram filmes com profundidade
de campo muito grande, usando muito 1º plano (...). Às vezes
primeiríssimo plano, às vezes aparecia metade da cara
das pessoas, coisa impressionante. Aquela emoção toda,
a carga social e política muito forte e tal (...) foi muito importante
na minha formação e para o cinema brasileiro. As pessoas
não falam muito dele, mas ele chocou, impactou os cineastas que
viram, enfim, ele é um cineasta muito especial.
Na minha formação
um filme que foi fundamental também foi o "Bandido Juliano".
Para você ter uma idéia, eu devo ter visto esse filme umas
vinte vezes, porque eu pegava esse filme, o nosso grupo tinha uma revista
de cinema, fazíamos um jornal na politécnica, super esquerdista,
que chegamos a distribuir em bancas de jornal, no ano de 63. E a revista
que foi muito importante, muita gente que está aí até
hoje, que é crítico, muita gente começou a escrever
nesta revista, que era o "Caderno da Poli", e além
de tudo tinha o Cine clube, que eu mesmo pegava projetor, o filme e
exibia no grêmio da medicina, no grêmio da FAU, da Filosofia,
na escola de Direito, levava projetor e filme e depois a gente debatia,
era um ativismo maluco; além de tudo eu entrei no Partido Comunista,
era militante, logo depois eu fui para UEE (União Estadual dos
Estudantes), em 63, estava na direção da Juventude Comunista
em São Paulo, tal, e com essa atividade maluca, fazia tudo...
Ficção-Documentário
Mas o Bandido Juliano,
talvez tenha sido o filme que eu mais exibi, que eu mais gostava, eu
sabia de cor o filme, então foi um marco, talvez fosse tudo que
a gente queria fazer naquele momento, era um cinema com uma carga social
e política muito forte e que partia da realidade, tentava tirar
da realidade uma estrutura narrativa, o contato do realizador com a
realidade, reformulando aquilo, encenando coisas ou não, filmando
documentário e tentando tirar de lá uma forma narrativa.
Então essa que é a carga de formação minha
com o documentário, eu desde o começo, não sei
se também influenciado pelo próprio Bandido Juliano, sempre
tive muita dificuldade de diferenciar os gêneros, o que é
ficção, o que é documentário, tal (...),
e sempre tive uma visão mais aberta a respeito disso, talvez
pela minha formação, que de qualquer maneira é
uma formação que desde o início mostrou de uma
forma clara a minha ligação com as questões um
pouco mais pesadas da sociedade e as suas dificuldades, doenças,
injustiças e tal; essa coisa que me atraía mais, sempre.
Em cima delas que
sempre trabalhei, a ditadura que considerava o inimigo número
um, enfim, tinha realmente pesadelo com a ditadura, ela me fez muito
mal, ela me pegou neste momento de formação política
em 64, porque eu tinha crescido muito rapidamente politicamente, estava
na UEE (União Estadual dos Estudantes), já participava
do Comando de Mobilização Popular do Brasil, então
de vez em quando estava com o Brizola (Leonel Brizola) e com o Almino
Afonso, com o Julião, com os líderes sindicais. Eu conhecia
todo mundo, e ao mesmo tempo, a minha carreira, minha atividade ligada
ao cinema ia crescendo também. Muitos projetos, a gente tentando
patrocínio, filmando já um filme sobre o lixo em São
Paulo, eu e o Ramalho (Francisco Ramalho Júnior), depois um filme
sobre teatro popular nacional, coisas que ficaram inacabadas porque
veio 64 e essas coisas desapareceram e nada disso terminou, então
o marco do início da minha carreira é essa relação
muito forte com a esperança e com a possibilidade de mudança
do país, e o socialismo (...) na verdade era isso, a mudança
socialista do país e tal. Na verdade entreguei minha vida a isto,
naquele momento eu estava totalmente dedicado a isto, praticamente abandonei
a escola (...), e era um cinema incipiente e uma integração
total com a política, com o processo que a gente via como um
processo revolucionário que iria mudar o país e tal, então
64 me pegou e foi uma coisa que me fez muito mal, é uma coisa
terrível.
Tenho um livro que
se chama Perdido no meio da rua (São Paulo: Editora Global, 1989),
e que na verdade são textos publicados por mim em 64, que talvez
explique um pouco a minha tendência como cineasta, que com todo
esse sofrimento em 64, não escrevia documentariamente, não
eram crônicas, não eram relatos sobre o que estava acontecendo,
era uma ficção. Eram estórias de ficção
terríveis, personagens com sofrimento atroz... Mas era uma ficção.
Tanto é que recuperei vários textos desses de 64 e nesse
livro reorganizei esses textos em torno de três personagens, um
que é muito ligado a mim, o outro que é o André,
que é, talvez, inspirado em alguns amigos meus da época,
delicado, medroso; e o outro que é o Neiva, o paranóico
completo, que via perseguição em todo lugar, que achava
que estava sendo perseguido o tempo inteiro na rua, fugia e tal (...)
então em torno desses três personagens, era o que fazia,
escrevia páginas, livros e cadernos de ficção,
tenho até hoje malas de coisas escritas.
Ficção
no documentário, agora é a briga da ficção
com o documentário (risos) - a gente filma e ninguém vê
a gente filmando... Falei que sou prolixo, é que minha cabeça
é um pouco assim, essa vivência muito obsessiva, talvez
muito apaixonada, muito ligada às coisas, um certo sofrimento
pessoal nessa minha relação com a vida, com a sociedade,
com as dificuldades todas, precisava analisar de onde vêm esse
sofrimento...
Então em
64, sofri muito realmente, como está nesse livro, como vocês
podem ver... Fui para Cinemateca, programar o principal cineclube da
época, que era a Sociedade dos Amigos da Cinemateca. Era uma
época muito rica, tinha muitos debates, mas eu queria fazer cinema
e logo consegui a produção de uma idéia que tive
e consegui que o grêmio da filosofia e mais o Jornal Amanhã,
que era o jornal que estava sendo feito pelo Movimento Universitário
Nacional, Raimundo Pereira era o editor e estava com o dinheiro. Pedi
que me ajudassem, pagassem e me custeassem a produção,
e eles toparam, o grêmio da filosofia e o Jornal Amanhã,
e é porque era sobre liberdade de imprensa. Eu vi isso naquela
conjuntura, no momento da ditadura, na repressão, e aí
parti para fazer o filme...
Antes, vou voltar
um pouquinho: saí da escola e não podia voltar porque
o pessoal me conhecia, o CCC; tentei voltar um dia e um cara do CCC
me disse: "João Batista, continua por aqui?" Aí
desapareci um tempo, fiquei meio perdido e foi um amigo de infância
que me salvou, na verdade, me viu na rua e me levou para um apartamento
de viração, para ele levar as aventuras dele, de mulheres...
Então fiquei
morando nesse apartamento um bom tempo... a ligação com
o cinema foi voltando, nós começamos a articular, aí
eu, o Ramalho e o pessoal mais novo que se aproximou da gente, principalmente
Renato Tapajós, que era uma pessoa que ficou mais no cinema depois,
era muito ágil, apesar de ser mais novo e de ter começado
com a gente, ter aprendido cinema com a gente, ele conseguiu primeiro
a produção no grêmio da filosofia de um filme sobre
o movimento universitário, é um filme sobre a greve, uma
greve que tinha havido na filosofia e tal, chama "Universidade
em Crise".
E fiz o filme com
ele, como assistente dele; eu realmente tinha mais experiência,
mas ele quem organizou, ele que fez o filme, era o diretor e fiquei
como assistente dele; depois montamos o filme em casa, naquela moviolazinha
doméstica. A primeira montagem foi feita em casa, eu tinha casado
com a Assunção e tínhamos um apartamento que virou
uma espécie de centro do cinema de São Paulo, do novo
cinema de São Paulo, a gente se reunia muito lá, discutia,
montava os filmes e via as primeiras montagens com 16mm, numa moviolazinha
manual.
Em 66 fui filmar
o "Liberdade de imprensa" (1966), que era o primeiro filme
que fiz sozinho como diretor. E que é um marco da minha obra
toda, porque ali tem a minha inquietação como realizador,
toda a minha ansiedade de buscar formas novas e maneiras novas de contar
e ao mesmo tempo de como sou dominado, também, por algumas surpresas
pessoais, de como acontecem coisas que depois tenho que interpretar
e como às vezes meu sentimento é maior que a minha capacidade
de explicar. Por exemplo, "Liberdade de Imprensa", um filme
de 66, sobre liberdade de imprensa, na verdade queria falar da ditadura,
e começa com uma pessoa na periferia de São Paulo, na
frente do barraco dele dizendo: "Eu sou fulano de tal, essa é
minha casa, tô construindo minha casa há seis anos, essa
é minha família, eu sou operário, trabalho no Jornal
O Estado de São Paulo, e acho que os EUA deveriam invadir Cuba,
porque sou contra o comunismo, tá certo invadir São Domingo..."
Operário
absolutamente reacionário, então, de certa forma eu mesmo
criei dois enigmas: eu, com todo o sentimento de esquerda, toda a militância
de esquerda, porque fiquei fascinado por esse personagem, justamente
o operário que a gente falava que ia libertar o mundo, era um
reacionário terrível... E ao mesmo tempo, porque começar
um filme sobre a liberdade de imprensa e a ditadura, que começava
na periferia de São Paulo? Talvez uma das primeiras imagens da
periferia de São Paulo tal como se entende hoje. É isso
aí, essas casas inacabadas, o cara que faz no fim de semana,
aquela paisagem horrível, talvez seja uma das primeiras imagens
com esse sentido de periferia, e porquê começar o filme
aí? E porque esse personagem? Esse personagem atravessa o filme
todo, e com essas opiniões terríveis sobre a política,
ao mesmo tempo como surge também no filme a idéia de que
a minha presença seja importante no filme. Então, no próprio
filme, fui percebendo que a minha presença mudava as coisas e
comecei a usar isso no filme. Tem momentos que eu dou livros para as
pessoas lerem, filmo as pessoas lendo, depois entrevisto as pessoas...
No filme tinha umas
denúncias pesadas nos textos dele, aí eu marquei uma entrevista
com ele, fiz a entrevista e "pá", perguntei direto
sobre as denúncias, e ele começou a enrolar, porque naquele
momento ele já estava querendo sair fora daquilo alí,
aí entra a minha voz em cima dele, ele falando e eu falo "mas
no seu livro tal, na página tal, o Sr, disse isso" e o filme
sai dele e vai para o livro com a minha fala, falando o que eu tinha
lido lá. Outro momento mostra que eu, como realizador, estava
ali presente; eu não estava a fim de filmar o real, como ele
aparecia, então a pessoa fala uma coisa eu falo: "tá,
tudo bem". Eu trabalho, de certa forma exerço, exercito
um certo conflito pessoal com o que estou filmando também.
Elaboro um certo tipo de conflito, entre o que estou vendo e o que as
pessoas estão dizendo, então em outro momento, por exemplo,
que é muito marcante, é a filmagem do Carlos Lacerda.
Quando filmei em 66 estava sendo preparado a Frente Ampla, eu era absolutamente
contra a ditadura; a Frente Ampla era o Juscelino (Presidente Juscelino
Kubitschek), o Jango (Presidente João Goulart) e o Lacerda (Carlos
Lacerda) também. Então, naquele momento, minha lucidez,
minha correção política, aquilo era importante,
independentemente de ter o Lacerda ou não, que era o inimigo
- quando eu era estudante, tinha ido à várias conferências
dele aqui em São Paulo, reunia o grupo e ia lá provocar
o Lacerda, porque ele era direita - então brigava e ele gostava,
ele escutava a gente e depois fazia um discurso, e ele falava bem pra
burro. Então, resolvi fazer uma entrevista com o Lacerda, fui
para o Rio de Janeiro, para o apartamento dele no Flamengo e fiz a entrevista,
onde ele fala mal da ditadura, depois corta disso e fui para a rua ouvir
as pessoas sobre o Lacerda, aí tem os depoimentos populares:
"E o Lacerda deve saber muito bem o que está fazendo, porque
ele ajudou a fazer a ditadura", e o outro: "É porque
o corvo, porque sei lá mais, matou o mendigo"...
Depois o Jean Claude
(Bernardet), analisou muito isso, porque você tem a correção
política, mas eu não abro mão da minha visão
sobre o personagem, essa minha presença no filme é muito
marcante durante o filme todo, ela inaugura esse tipo de cinema onde
a minha figura é importante. Momento, por exemplo, que a revista
Ação Democrática, aquela que era patrocinada pela
CIA no Brasil, aparecia nas bancas, e de onde vinha? Então peguei
uma revista dessas e escondi nas costas e o filme me mostra a escondendo
nas costas, e fui para este operário, que tinha uma banca de
jornal - ele trabalhava no Estado, mas depois trabalhava numa Banca
de jornal - mandei ligar a câmera e "tum" mostro a revista
para ele de sopetão, e pergunto: "Você conhece essa
revista?
"Ah, conheço...". "Como é que chega aqui?"
"Ah, recebo essa revista do Estado de São Paulo, tal...".
E falou de onde vinha essa revista! Quer dizer, esse tipo de participação
pessoal, está extremamente marcante no Liberdade de Imprensa...
A imprensa como
tema
Liberdade de Imprensa
foi um filme marco na minha carreira por duas razões, uma boa,
porque tal qual aconteceu com muitos dos meus filmes, o filme foi logo
proibido, exibi uma vez em São Paulo, uma vez no Rio de Janeiro
e foi apreendido pelo exército em Ibiúna em 68. Antes
do filme ser distribuído a UNE (União Nacional dos Estudantes)
ia discutir e preparar o plano de distribuição do filme,
porque era uma produção da UNE, do Jornal Amanhã,
da Filosofia e ele ia entrar em distribuição nacional.
Então, o congresso caiu, o filme foi apreendido e ficou proibido,
e só foi exibido mais de dez anos depois, o que foi terrível.
Imagine o sofrimento que é o não ser visto, entendeu?
Você faz uma proposta e o filme não existe, uma coisa que
se repetiu com vários filmes meus, com Restos (1975) que foi
proibido, com Wilsinho Galiléia (1978), que caiu num nível
escancarado de frustração, porque é um filme cheio
de projetos, cheio de idéias e de inovações na
TV, é proibido, só é visto 24 anos... Como disse
a Maria do Rosário Caetano, é o melhor documentário
do cinema brasileiro, mas 24 anos depois (conta rindo)... É uma
coisa que marcou a minha carreira desde o começo, a censura e
a proibição frustraram muito, assim é a realização
da minha carreira (...). É que felizmente o tempo passa, depois
as pessoas vão redescobrindo estes trabalhos, ainda não
redescobriram tudo, porque tenho filme que foi proibido no projeto.
Em 82, estava preparando um filme chamado Os demônios cuja história
é de um personagem que voltava do exército e sentia que
suas idéias estavam superadas no país, tentava dizer isso
e o grupo de esquerda dele não deixava; o filme era sobre o conflito,
da superação das idéias dentro da própria
esquerda; ele ia ser feito em 82 e o projeto foi proibido, não
consegui filmar, tem o roteiro e seria uma reflexão a quente
sobre o processo político brasileiro, o fim da ditadura e a anistia...
Cinema Marginal
Acho que minha carreira
ficou muito marcada pelo Liberdade de Imprensa e pelas dificuldades,
pelo fato do filme não existir! O filme estava aí, era
uma coisa nova, sem poder circular, enfim, com isso atravesso os anos
60, a primeira década do meu trabalho, com um momento de inflexão,
de desespero, e é quando eu fiz dois filmes de ficção:
Em Cada Coração um Punhal (1968) e o Gamal.O delírio
do sexo (1969), que são filmes de uma fase muito desesperada,
mas muito criativa, com absoluto controle criativo e narrativo. São
filmes estranhos, filmes fortes, tanto é que ganhei com o Gamal
um prêmio na França, de "Diretor Revelação",
viajei para o exterior com esse filme, mas esse filme se aproximava
muito de uma proposta underground, no Brasil chamado de cinema marginal.
Não gostava
muito dessa idéia, não era bem o meu perfil e não
achava que esses filmes se encontrassem no movimento marginal, embora
no início tenha me enturmado com o pessoal, com o Jairo Ferreira,
com o Tonacci (Andrea), o Carlão (Carlos Reichenbach), mas não
queria aquilo lá e me afastei. Aliás, o pessoal do cinema
marginal fez comigo o que o Stalin fez com a fotografia do Trotsky:
me tiraram da fotografia, porque durante o movimento eu era gênio
e tal, pô, Gamal era maravilhoso, Em cada coração
um punhal fantástico... Depois me afastei, fui um pouco crítico,
fui em busca de outros caminhos e o movimento marginal tirou minha fotografia
e tirou meu movimento.
Agora falo disso
com um certo humor porque eu também não queria, não
tinha interesse em participar do movimento, preferi ficar independente
e buscar meu caminho, não achava que aquela seria uma corrente
adequada para mim... Tenho o maior respeito pelas pessoas que participaram
e assumem isso, principalmente o Candeias (Ozualdo Candeias), o Reichenbach,
mas enquanto movimento, eu não tive espaço lá dentro,
não era o que eu queria na época. Aí retomei, e
o engraçado é que eu ganhei um prêmio com o Gamal
e viajei para Europa, estava desesperado, tentando retomar o meu caminho
lá do Liberdade de Imprensa e ao mesmo tempo tendo uma visão
muito crítica do que era a informação e a imagem
que se transmitia do Brasil. Naquele momento, no começo dos anos
70, era exatamente a imagem da ditadura, os institucionais da ditadura,
'o País era maravilhoso, não tinha greve, era solidário',
e eu agoniado com aquilo, e falava: Pô! Eu preciso voltar para
o cinema, preciso ir para rua, preciso filmar, fazer o que comecei a
fazer, a minha vocação toda de documentário. Queria
filmar as pessoas, as ruas, as pessoas falando, era essa a minha vontade.
Aí viajei para Europa e já encontrei muita gente no exílio,
muitos amigos exilados, que já estavam começando um processo
auto crítico também, com relação à
ditadura, à luta armada, tudo né!? E aí voltei
para o Brasil, com essa gana de fazer isso, e encontrei o Vlado (Vladimir
Herzog, assassinado durante a ditadura militar) que estava me esperando
com uma proposta: "olha temos espaço aqui na TV Cultura
para fazer jornalismo, um programa de jornal, noticiário, nós
queremos que você seja o repórter especial" ai eu
disse "não, repórter especial não, sou cineasta,
documentarista, então vou fazer cinema lá"; "não,
é repórter especial"; "bom, sou cineasta...",
era uma discussão sem fim. "Bom, então tá
bom, põe o nome que quiser, mas vou fazer cinema, vou fazer filmes
lá, meu projeto é esse, quero filmar a rua, quero filmar
os lugares, e favela, o bairro, quero mostrar o país real, quero
mostrar as pessoas falando... bom". "- Maravilhoso, maravilhoso".
Aí eles me
chamaram, muitos me conheciam, tocados pelo Liberdade de Imprensa, cujo
projeto eu levei para TV, para fazer o programa "Hora da Notícia",
e aí, é o momento maravilhoso da minha carreira, talvez
o momento que eu mais me realizei na vida, como cidadão, cineasta,
e tal... Eu estava exercitando minha vocação como documentarista,
e ao mesmo tempo, exercitando a minha oposição à
ditadura, com uma lucidez muito grande naquele momento. Porque nós,
tanto o Fernando (Jordão) como o Vlado, tínhamos uma visão
que eu acho que era muito lúcida. Primeiro uma visão crítica
da luta armada, que não tinha conseguido e nem iria conseguir
mais, ela estava praticamente derrotada em 72, e que era preciso que
a sociedade despertasse e fizesse um movimento amplo contra a ditadura,
coincidindo com o momento em que várias entidades começam
trabalhar. Muitos sindicatos começam a ter reuniões clandestinas,
formavam grupos advindos da sociedade civil, os amigos de bairro, de
mães, grupos de estudo, vários grupos da Igreja.
Então comecei
a filmar, e meus filmes logo de cara, pesados, já eram sobre
questões sociais, e muitos desses grupos começaram a pedir
cópias desses programas, o que era um sintoma de que tudo estava
acontecendo naquele momento. As pessoas queriam cópia para quê?
Um filme sobre transporte... Queria cópia para discutir transporte.
Como aconteceu com Santo Amaro (bairro de Santo Amaro, em São
Paulo), o Padre da Igreja de Santo Amaro estava fomentando o movimento
da população para discutir o problema do transporte urbano.
E eles pegaram,
junto à TV Cultura, cópia de um filme meu sobre o transporte
urbano, e o que era essa a idéia que eu tinha, o que eu fiz com
a câmera, o que eu fiz com o filme? Eu fui de madrugada para rua,
filmei as pessoas pegando ônibus, aquelas filas e os ônibus
super lotados, gente pendurada nas portas, a câmera também,
mostrava a câmera andando, quase batendo nos postes, quase sendo
atropelada por outros carros e por outros ônibus, aquele perigo
danado, e câmara no lugar deles. Eu queria era isso, queria revelar
o país real, o que era o país que a gente vivia, em oposição
a imagem que a ditadura colocava na televisão. Então esse
padre pegou a cópia desse filme e ficou meses com ela, ficava
exibindo, ficava discutindo, fazia um movimento imenso em Osasco, durante
a ditadura, logo no meio dos anos 70, com a população
na rua, medindo e calculando quantos ônibus havia, polemizando
com os donos das empresas, com a prefeitura e tal.
"Cinema de rua"
Polícia, repressão, tudo... é que essas coisas
estavam acontecendo naquele momento, então o "cinema de
rua" nasceu disso aí, do interesse da população
nesse tipo de cinema, filminhos curtos, de 4,5 ou 6 minutos e que ajudavam
a população a discutir os temas que estavam interessando
discutir.
Esse nome veio depois,
mas chamou assim, com o interesse da população nesse meu
trabalho. Esse trabalho acho importante entendê-lo porque é
a minha carga documentarista, eu estava num momento de muita realização
pessoal, tinha um programa às nove horas da noite que ia para
o ar, então enfiava lá dentro o meu trabalho, todo dia,
3,4, 5 minutos, o que eu pensava, ia para redação e pensava:
"-O que eu vou fazer hoje?", só pensava em uma coisa:
"Era contra a ditadura", a ditadura da imagem, contra a manipulação
da imagem, só pensava naquilo 24 horas por dia, dormia com aquilo.
Às vezes parecia piada, chegava e não tinha assunto. Falava
para o motorista, "vamos para um lugar legal, bem bonito"
ai o cara: "Jardim Europa?", "Que Jardim Europa! Vamos
para o Jardim Maria Luíza, Vila dos Remédios".
Que era um terror,
periferia 'braba', aquela miséria, aquela coisa, que não
tinha nada, não tinha água, esgoto, não tinha luz,
não tinha escola. Então inventei um negócio que
se chamava "Queixas e reclamações". Eu ía
para rua, descobria uma rua qualquer movimentada, punha a câmera
no tripé, pegava o microfone e ficava assim com o microfone,
não falava nada, as pessoas paravam, olhavam, não falavam
nada, até que um chegava, pegava o microfone e falava: "Tá
filmando, posso falar? É o seguinte, que condução
aqui..." ai vinha outro e falava, enfim.
Era a vida que passava
lá, essa série fazia muito sucesso, o pessoal gostava
demais! O professor Ianni (Otávio), por exemplo, sociólogo,
adorava! Eram as pessoas falando, porque não tinha aonde falar,
e estava oferecendo para essas pessoas uma chance, um canal de expressar
os problemas. E tinha tudo quanto é problema. E quando estava
sem assunto fazia muito isso, ia para rua e fazia o "Queixas e
Reclamações".
A outra coisa foi
o que nós bolamos e fizemos, eu, o Valdo e o Fernando Jordão,
era o seguinte: quando vinha uma autoridade, eu ia para rua e pedia
para as pessoas fazerem perguntas para a autoridade, e depois levava
as perguntas até ela e montava as pessoas perguntando e a autoridade
respondendo, uma forma de rasgar aquele véu elitista que a ditadura
tinha. Só especialista falava... então tinha o povo falando.
Era muito engraçado,
várias vezes queriam me mandar embora, logo depois da primeira
reportagem. Já tinha muita crise e diziam que eu escolhia de
propósito gente feia, gente sem dente. O Diretor da TV, o Ferri,
que foi Reitor (da Universidade de São Paulo) depois, chegou
a sugerir que tivesse um editor comigo, para ajudar a escolher as pessoas,
porque eu escolhia mal, escolhia pessoas muito feias, desdentadas, pobres
e tal.
O outro lá,
dizia que eu não sabia entrevistar, que punha outras pessoas
para fazer as perguntas. Quer dizer, de todo o jeito tinha uma justificativa
para me mandar embora. Então eu vivia em crise lá dentro.
Mas era um trabalho delicioso, cada programa, cada filmezinho desses
que ia para o ar era uma vitória, a derrota era quando era proibido,
isto é, a gente era o contrário da esquerda na época,
porque a esquerda gostava de ser censurada, e a gente não gostava,
pelo contrário, quando era censurado, para nós era uma
derrota terrível porque a gente queria que aquilo fosse para
o ar, esse era o projeto, a gente queria que as pessoas vissem aquilo,
e com toda a verve, toda a capacidade de revelação.
Por exemplo, um
dos primeiros filmes que eu fiz lá, foi sobre uma operação
chamada "Tira da Cama", em favela, que é uma brutalidade.
A polícia vai com refletores, holofotes, armados, com cães
e invadiam as favelas, arrombavam portas, pegavam documentos, prendiam
gente, o negócio era um terror! Bom, e vi uma vez aquilo na TV,
e fiquei muito impressionado. E resolvi fazer...
Foi a primeira ou
segunda reportagem que fiz lá. Fui com o cinegrafista e deixei
ele filmar como ele filmava antes. Como é que ele filmava antes?
Ele ia acompanhando a polícia, a polícia entrava e ele
entrava junto. E quem ele ouvia? O comandante da polícia, só!
A imprensa era assim! A autoridade jornalística era confundida
com a autoridade institucional. Se incendiava a favela, quem falava
era o secretário da habitação, o corpo de bombeiro,
o comandante da Polícia Militar...
Eu dizia: "Não!
Se incendeia a favela tem que ouvir o favelado, o cara que mora lá".
Era uma inversão, então aí, nos dias seguintes,
com esse material filmado, voltei para a favela e pedi às pessoas
que contassem o que tinha acontecido no dia anterior. Então eles
contavam o que tinha acontecido, com a emoção delas, com
o ponto de vista delas, montei o filme com essa narrativa e aí
sim as imagens da polícia eram mostradas, como violentas, porque
elas falavam: "Pô! O cara arrebentou a porta, eu tava dormindo...".
Então todas as imagens filmadas no dia seguinte tomavam um outro
sentido.
Quando nós
vimos aquilo no ar, a gente chegava a ficar pequenininho no banco, de
tão violento que era, tão violento politicamente, um absurdo
aquilo naquele momento, em 1974, 73, época do Médici (Presidente
General Emílio Garrastazu Médici). Era tão contrário
do que acontecia na televisão brasileira, do que a ditadura fazia,
e ao mesmo tempo tão chocante e violento que parecia uma revolução
aquilo no ar e assisti aquilo meio acachapado, aquilo me chocava só
de ver, ao mesmo tempo dava uma alegria muito grande de ter ido para
o ar.
Também tem
um episódio que é típico do meu trabalho: Quando
o Médici indicou o Geisel (General Ernesto Geisel), de manhã
chegou o telegrama na redação, "PUM", me bateu
na cabeça: "Equipe, vamos embora, vamos embora". Peguei
a equipe, não falava nada para ninguém: "Vamos ao
lugar mais perto que tenha gente..." E fomos para Lapa. Instalei
a câmara e fiz um pouco do que fazia com o "Queixas e Reclamações".
Só que instalei a câmera, peguei o microfone, parei assim
(com o microfone na mão). Um cara de macacão passou e
falei: "Por favor!". E ele veio, dei o telegrama e falei:
"leia pra mim isso aí". Aí ele começou:
"O presidente Emílio Garrastazu Médici...".
Já começava a olhar assim pra mim, olhava pra câmera,
e com a maior dificuldade de ler. "...para seu sucessor, o General...,
...não, tenho que trabalhar..." e a gente filmando... Aí,
pegava uma mulher, "Por favor, leia pra mim". Ela lia. Maior
medo, não conseguia ler. O outro lia, eu falava "qual é
a sua opinião?" "... Não, não sei, não
entendo bem, tal...", foram mais ou menos cinco minutos de depoimentos
assim. E foi para o ar assim, à noite.
O Fernando Jordão
que era o editor, falou: "O presidente Médici indicou hoje
seu sucessor, General Ernesto Geisel, nossa equipe foi para as ruas
ouvir a opinião das pessoas"... Aí, entram quatro
ou cinco minutos com esses depoimentos. Então aquilo era acachapante,
a gente ficava até sufocado de ver aquilo no ar, pois aquilo
ajudava a revelar o país e ao mesmo tempo ele é típico
do meu trabalho, não é! Uma espécie de feeling
de que a minha ação provoca uma reação que
é importante. E meu gesto era estar presente, dar o telegrama
e mandar ler, meu feeling era esse, que as pessoas iam ficar apavoradas
diante daquilo ali e que não iam querer comentar. Eu achava que
não iam querer comentar, mas a maioria não queria nem
ler. Parava no meio da leitura. Foi um momento super revelador do meu
trabalho, fora milhares de experiências, de filmes feitos em setores
de bairros em que montava dialogando só com ele. Em vez de pensar
só na multidão, no mundo que via o programa, pensava só
nele. Então fazia o programa como se fosse dirigido para só
ele, dialogando politicamente com eles achava um pouco do meu comportamento,
por exemplo: um filme sobre grilagem, achava que a posição
política da população era completamente equivocada
e fiz um filme revelando o equívoco deles. Foi pro ar e despertou
reações fantásticas, foram lá na redação,
aquele monte de gente... aí quis fazer o que era meu prazer...
fazer uma switcher, um segundo como repercussão, mas aí
isso já foi proibido e nunca consegui fazer. Eu fazia o primeiro
e logo o assunto era proibido e não conseguia fazer o segundo.
Mas o primeiro tinha ido pro ar e teve efeito, provocou as pessoas;
e esse diálogo mostrava a minha independência com relação
à sociedade, ao movimento social operário, o que está
no Greve (1979) também.
Depois, o fato de
eu ser de esquerda e de estar do lado da população não
quer dizer que concorde com ela sempre, até pelo contrário,
acho que no geral ela está errada, está agindo errado...
A tendência dela é agir errado..."
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