Um
pouco para lá da metade do documentário Boca
de Lixo, de Eduardo Coutinho, um dos personagens, seu Enock,
dirá: "O lixo faz parte da vida. O final do serviço
é o lixo. E é dali que começa
O
final do serviço diz que é a limpeza da casa, ir
jogando fora o que se desprezou, o que se reciclou, o que findou
ali. Mas ele (o lixo) continua ali e dali ele continua pra mais
longe ainda
" Aquilo que não serve mais, que
foi rejeitado pela cidade, que perdeu a utilidade para nós,
o "final do serviço", enfim, nas palavras de
Seu Enock, é também o início do documentário.
A
câmara passeia pelo lixo e vai encontrar urubus e outros
animais alimentado-se dele. E é através do lixo,
ainda, que seremos introduzidos às histórias e visões
de mundo das pessoas que - surpreendentemente para nós,
habitantes privilegiados das cidades - o converte em material
de consumo e sustento.
Da
imensidão do campo repleto de detritos e bichos os mais
variados somos confrontados com a imagem de seres humanos como
eu e você disputando avidamente o mesmo alimento que há
poucos instantes atrás vimos os animais disputarem. O caminhão
despeja os detritos e o realizador, direcionando nosso olhar através
de planos detalhes, nos mostra o objeto de disputa daquelas pessoas:
sobras de frutas, legumes, carnes etc. desaproveitados.
O
que vem a seguir serve, de algum modo, para confirmar aquilo que
já supúnhamos saber, os catadores se escondem, protegem
seus rostos da intromissão do invasor e sua câmera,
e a nossa conclusão: eles têm vergonha de trabalharem
ali naquele local que para nós, espectadores, é
desconcertante. Estão ali, ainda segundo nossa visão,
porque não há definitivamente outra opção,
vítimas que são de um sistema social injusto e contraditório
etc. etc. e seguimos, seguros, lançando mão de um
sem número de outros jargões e lugares comuns, adquiridos
ao longo de nossas vidas cômodas e confortáveis,
bem diferente daquele mundo abjeto.
Mas
aí quando adquirimos a certeza de que já entendemos
tudo, Coutinho nos surpreende outra vez. Ele monta três
depoimentos de três catadoras de lixo que afirmam estar
ali por opção, que preferem o lixo, no dizer de
uma delas, a trabalhar em casa de família, porque, segundo
outra, "tem uma porrada de mulher aqui, uma porrada de homem
que trabalha aqui porque é relaxado, porque prefere comer
fácil, porque aqui cai batata, porque aqui cai de tudo
pra se comer, muita gente come porque quer", e outra, "trabalhar
aqui
eu tenho orgulho de trabalhar aqui!, porque não
tenho que ir na casa de ninguém pedir
"
Depois
destes três depoimentos, nossa certeza dilui-se e dá
lugar a uma inquietação que nos faz grudar nas histórias
e naquilo tudo que aquelas pessoas nos tem a dizer, e a única
certeza daí por diante é que não há
mais certezas
A
partir desta introdução de Boca de Lixo é
possível inferir, ou ao menos suspeitar, que a desagregação
do cenário - restos de comida, seringas e injeções
usadas, latas vazias etc. e mais uma infinidade de cheiros e formas
em estado de decomposição - não exterioriza
o estado de espírito daqueles que trabalham nesse espaço,
antes o contrasta e desmente.
Ao
longo do documentário, Coutinho irá intercalar depoimentos
de pessoas que hora afirmam, sem problemas, que trabalham sim
ali e que o fazem por gosto; com depoimentos e/ou gestos de pessoas
que o negam categoricamente.
Com
efeito, o uso da palavra cenário para referir-se ao Vazadouro
de Itaoca é fundamental para minha breve análise.
Pois, tomando como ponto de partida a análise sistemática
das interações sociais feitas por Erving Goffman
no seu A Representação do Eu na Vida Cotidiana,
acredito haver, no momento do encontro etnográfico entre
o cineasta e o "outro" (aqui, os catadores de lixo),
uma espécie de representação teatral, assim
como em todas as outras interações sociais, mas,
neste caso, potencializada pela presença da câmera,
com personagens, cenários, figurinos etc. muitas vezes
bastante bem definidos, inclusive com diálogos e gestos
ensaiados.
Pois,
segundo Goffman, "quando uma pessoa chega na presença
de outras, existe, em geral, alguma razão que a leva a
atuar de forma a transmitir a eles a impressão que lhe
interessa transmitir." E mais adiante: " não
é provamelmente um mero acidente histórico que a
palavra "pessoa", em sua acepção primeira,
queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato
de que todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou
menos conscientemente, representando um papel
É
nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é
nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos. Em
certo sentido, e na medida em que esta máscara representa
a concepção que formamos de nós mesmos -
o papel que nos esforçamos para chegar a viver - esta máscara
é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos
de ser. Ao final a concepção que temos de nosso
papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa
personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos
um caráter e nos tornamos pessoas."
Haveria
nas histórias e visões de mundo dos catadores de
lixo, daquelas pessoas, portanto, uma integridade composta de
princípios, valores e verdades, um direito moral, enfim,
de esperar que os outros vindos de fora os valorizem e os tratem
de maneira adequada. No meu modo de ver, os catadores de lixo
projetam uma definição da situação
na qual imaginam antecipadamete aquilo que eles acham que o documentarista
acha deles.
Quando
Coutinho se apresenta diante dos catadores, o desempenho deles
tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente
reconhecidos pela sociedade, personificada pelo diretor e sua
equipe. Imagino que para os catadores a imagem que o cineasta
faz deles é a de que são, no mínimo, ladrões
e vagabundos etc. senão não esconderiam seus rostos
por vergonha ou medo como inúmeras vezes é mostrado
no documentário. Neste sentido, a frase de um dos entrevistados
é sintomática: "todo mundo aqui tá trabalhando,
não tem ninguém roubando aqui dentro, todo mundo
trabalha, ninguém rouba
todo mundo tá aqui
porque depende
" Sendo que no final da sua fala é
aplaudido pelos outros companheiros, como se realmente estivesse
no palco de um teatro
No
caso das catadoras de lixo a situação é ainda
pior porque a presença social da mulher, segundo Berger,
no seu Modos de Ver, "expressa sua própria
atitude sobre ela mesma, e define o que se pode ou não
fazer. Sua presença se manifesta em seus gestos, voz, opiniões,
expressões, roupas, cenários escolhidos, gostos
etc.; na realidade, tudo o que ela pode fazer é uma contribuição
à sua presença. No caso da mulher, a presença
é tão intrínseca a sua pessoa que os homens
(e a equipe de filmagem é maioritariamente composta de
homens) tendem a considerá-la quase uma emanação
física, uma espécie de calor, de cheiro e de aureola.
Uma mulher deve contemplar-se continuamente e ir acompanhada quase
constantemente pela imagem que tem de si mesma."
Ao
interagirem com o cineasta (catadores e catadoras) imediatamente
procuram incorporar uma personagem cujos atributos fundamentais
estariam imbuidos de valores oficiais positivos comuns da nossa
sociedade tais como honestidade, integridade, disposição
para o trabalho etc. que estariam sendo desmentidos pelo cenário
(o lixão) e pela aparência dos atores (estão
sujos e mal vestidos), componentes que Goffman define como sendo
a fachada, ou seja, "a parte do desempenho do indivíduo
que funciona regularmente de forma geral e fixa com o fim de definir
a situação para os que observam a representação,
portanto, é o equipamento expressivo de tipo padronizado
intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo
durante sua representação."
A
interação é precedida pela simulação,
pelo exercício que o sujeito faz de experimentar-se como
outro, numa relação de exterioridade consigo mesmo,
nos segundos que constituem o preâmbulo do seu relacionamento.
Uma imensa construção imaginária, portanto,
define a circunstância da relação social.
O
exemplo que sintetiza e ilustra mais claramente o que estou esforçando-me
por demonstrar é o modo distinto de agir da personagem
Jurema. Quando interpelada pela primeira vez no Vazadouro de Itaoca
ela dirá, muito irritada: "
a gente não
cata essas coisas aqui do lixo pra comer não, vocês
botam no jornal e aí quem vê pensa que é pra
gente comer, né? Mas não é pra gente comer,
não é. Isso não pode acontecer. A mãe
dela tem porco, o pai dela tem porco, todo mundo tem porco aqui.
O que a gente cata aqui
às vezes a gente cata um
pão, cata um resto de comida
é pra porco!
Eu tô revoltada é com isso. A gente com o cesto cheio
de legumes e ele filmando ali. Quem vê isso lá fora
vai falar que é aquilo ali que eles comem, é daquilo
que eles vivem, mas não é."
Quando
apresentada diante da casa, ela aparece na porta e vem falar junto
às crianças, aparece também a mãe
dela e abre a janela, depois vem o marido na outra janela. Nas
palavras do próprio Coutinho, numa entrevista dada à
antropóloga Valéria Macedo para a revista Sexta-feira
ele dirá: e é um teatro, a mãe aqui, o marido
ali, os nove filhos e ela. E só no final da conversa ela
confessa que eles comem lixo: " a gente come mesmo, mas não
tem sentido mostrar, não quero que mostre para os outros.
Não adianta nada, alguém vai me ajudar?"
Diante
da casa e de toda sua família, seu maior orgulho como deixa
transparecer claramente, de roupa limpa e banho tomado, portanto,
cenário e aparência mais adequados, Jurema pode encarnar
a personagem da mãe e esposa, apesar de tudo, feliz, da
mulher trabalhadora e honesta sem ter que tentar por todos os
meios convencer o cineasta do que está afirmando. Ela tem,
ainda, que supervisionar tudo o que é e tudo o que faz
porque, segundo Berger, "o modo em que aparece diante dos
demais é de importância crucial para o que normalmente
se considera para ela êxito na vida. Seu próprio
sentido de ser ela mesma é suplantado pela sentido de ser
apreciada como tal por outro."
Cenário , aparência e maneira juntam-se harmoniosamente
e permitem uma representação eficaz, segura e sem
vacilos. Se é verdade ou não cabe ao espectador
julgar. E esse é o mérito maior, acredito, do documentário
do mestre Coutinho. Por meio dele, os sujeitos do encontro etnográfico
recriam uma realidade negociada cuja congruência é
estabelecida por um laço significativo entre as experiências
vividas e o universo da representação.¹
Nesse, como em outros filmes seus, o documentário se desvincula
da pretensão de resgistrar uma realidade monolítica
e arranca dela contradições e ambigüidades,
que por sua vez são capazes de redimensioná-la,
redescobri-la e, no limite, reinventá-la.
1
Cf. Feldman-Bianco, B. e Moreira leite, M.(orgs.). Desafios
da Imagem: Fotografia, Iconografia e Video nas Ciências
Sociais, cit, p. 208.
BIBLIOGRAFIA
Berger,
John. Modos de Ver. São Paulo, ed. Gustavo Gili,
SA.
Goffman, Erving. A Representação do Eu na Vida
Cotidiana. Petrópolis, Editora Vozes, 8ª edição,
1999.
Macedo, Valéria. Eduardo Coutinho e a Câmera da
Dura Sorte. Entrevista. Revista Sexta-Feira.
Feldman-Bianco, B. e Moreira leite, M.(orgs.). Desafios da
Imagem: Fotografia, Iconografia e Video nas Ciências Sociais.
São Paulo, Papirus Editora.
FILMOGRAFIA
Coutinho, Eduardo. Boca de Lixo, video documentário,
54min., 1994.