Notas sobre "Boca de Lixo"

por Cláudio Oliveira


Um pouco para lá da metade do documentário Boca de Lixo, de Eduardo Coutinho, um dos personagens, seu Enock, dirá: "O lixo faz parte da vida. O final do serviço é o lixo. E é dali que começa…

O final do serviço diz que é a limpeza da casa, ir jogando fora o que se desprezou, o que se reciclou, o que findou ali. Mas ele (o lixo) continua ali e dali ele continua pra mais longe ainda…" Aquilo que não serve mais, que foi rejeitado pela cidade, que perdeu a utilidade para nós, o "final do serviço", enfim, nas palavras de Seu Enock, é também o início do documentário.

A câmara passeia pelo lixo e vai encontrar urubus e outros animais alimentado-se dele. E é através do lixo, ainda, que seremos introduzidos às histórias e visões de mundo das pessoas que - surpreendentemente para nós, habitantes privilegiados das cidades - o converte em material de consumo e sustento.

Da imensidão do campo repleto de detritos e bichos os mais variados somos confrontados com a imagem de seres humanos como eu e você disputando avidamente o mesmo alimento que há poucos instantes atrás vimos os animais disputarem. O caminhão despeja os detritos e o realizador, direcionando nosso olhar através de planos detalhes, nos mostra o objeto de disputa daquelas pessoas: sobras de frutas, legumes, carnes etc. desaproveitados.

O que vem a seguir serve, de algum modo, para confirmar aquilo que já supúnhamos saber, os catadores se escondem, protegem seus rostos da intromissão do invasor e sua câmera, e a nossa conclusão: eles têm vergonha de trabalharem ali naquele local que para nós, espectadores, é desconcertante. Estão ali, ainda segundo nossa visão, porque não há definitivamente outra opção, vítimas que são de um sistema social injusto e contraditório etc. etc. e seguimos, seguros, lançando mão de um sem número de outros jargões e lugares comuns, adquiridos ao longo de nossas vidas cômodas e confortáveis, bem diferente daquele mundo abjeto.

Mas aí quando adquirimos a certeza de que já entendemos tudo, Coutinho nos surpreende outra vez. Ele monta três depoimentos de três catadoras de lixo que afirmam estar ali por opção, que preferem o lixo, no dizer de uma delas, a trabalhar em casa de família, porque, segundo outra, "tem uma porrada de mulher aqui, uma porrada de homem… que trabalha aqui porque é relaxado, porque prefere comer fácil, porque aqui cai batata, porque aqui cai de tudo pra se comer, muita gente come porque quer", e outra, "trabalhar aqui… eu tenho orgulho de trabalhar aqui!, porque não tenho que ir na casa de ninguém pedir…"

Depois destes três depoimentos, nossa certeza dilui-se e dá lugar a uma inquietação que nos faz grudar nas histórias e naquilo tudo que aquelas pessoas nos tem a dizer, e a única certeza daí por diante é que não há mais certezas…

A partir desta introdução de Boca de Lixo é possível inferir, ou ao menos suspeitar, que a desagregação do cenário - restos de comida, seringas e injeções usadas, latas vazias etc. e mais uma infinidade de cheiros e formas em estado de decomposição - não exterioriza o estado de espírito daqueles que trabalham nesse espaço, antes o contrasta e desmente.

Ao longo do documentário, Coutinho irá intercalar depoimentos de pessoas que hora afirmam, sem problemas, que trabalham sim ali e que o fazem por gosto; com depoimentos e/ou gestos de pessoas que o negam categoricamente.

Com efeito, o uso da palavra cenário para referir-se ao Vazadouro de Itaoca é fundamental para minha breve análise. Pois, tomando como ponto de partida a análise sistemática das interações sociais feitas por Erving Goffman no seu A Representação do Eu na Vida Cotidiana, acredito haver, no momento do encontro etnográfico entre o cineasta e o "outro" (aqui, os catadores de lixo), uma espécie de representação teatral, assim como em todas as outras interações sociais, mas, neste caso, potencializada pela presença da câmera, com personagens, cenários, figurinos etc. muitas vezes bastante bem definidos, inclusive com diálogos e gestos ensaiados.

Pois, segundo Goffman, "quando uma pessoa chega na presença de outras, existe, em geral, alguma razão que a leva a atuar de forma a transmitir a eles a impressão que lhe interessa transmitir." E mais adiante: " não é provamelmente um mero acidente histórico que a palavra "pessoa", em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos conscientemente, representando um papel…

É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos. Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos - o papel que nos esforçamos para chegar a viver - esta máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas."

Haveria nas histórias e visões de mundo dos catadores de lixo, daquelas pessoas, portanto, uma integridade composta de princípios, valores e verdades, um direito moral, enfim, de esperar que os outros vindos de fora os valorizem e os tratem de maneira adequada. No meu modo de ver, os catadores de lixo projetam uma definição da situação na qual imaginam antecipadamete aquilo que eles acham que o documentarista acha deles.

Quando Coutinho se apresenta diante dos catadores, o desempenho deles tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade, personificada pelo diretor e sua equipe. Imagino que para os catadores a imagem que o cineasta faz deles é a de que são, no mínimo, ladrões e vagabundos etc. senão não esconderiam seus rostos por vergonha ou medo como inúmeras vezes é mostrado no documentário. Neste sentido, a frase de um dos entrevistados é sintomática: "todo mundo aqui tá trabalhando, não tem ninguém roubando aqui dentro, todo mundo trabalha, ninguém rouba… todo mundo tá aqui porque depende…" Sendo que no final da sua fala é aplaudido pelos outros companheiros, como se realmente estivesse no palco de um teatro…

No caso das catadoras de lixo a situação é ainda pior porque a presença social da mulher, segundo Berger, no seu Modos de Ver, "expressa sua própria atitude sobre ela mesma, e define o que se pode ou não fazer. Sua presença se manifesta em seus gestos, voz, opiniões, expressões, roupas, cenários escolhidos, gostos etc.; na realidade, tudo o que ela pode fazer é uma contribuição à sua presença. No caso da mulher, a presença é tão intrínseca a sua pessoa que os homens (e a equipe de filmagem é maioritariamente composta de homens) tendem a considerá-la quase uma emanação física, uma espécie de calor, de cheiro e de aureola. Uma mulher deve contemplar-se continuamente e ir acompanhada quase constantemente pela imagem que tem de si mesma."

Ao interagirem com o cineasta (catadores e catadoras) imediatamente procuram incorporar uma personagem cujos atributos fundamentais estariam imbuidos de valores oficiais positivos comuns da nossa sociedade tais como honestidade, integridade, disposição para o trabalho etc. que estariam sendo desmentidos pelo cenário (o lixão) e pela aparência dos atores (estão sujos e mal vestidos), componentes que Goffman define como sendo a fachada, ou seja, "a parte do desempenho do indivíduo que funciona regularmente de forma geral e fixa com o fim de definir a situação para os que observam a representação, portanto, é o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação."

A interação é precedida pela simulação, pelo exercício que o sujeito faz de experimentar-se como outro, numa relação de exterioridade consigo mesmo, nos segundos que constituem o preâmbulo do seu relacionamento. Uma imensa construção imaginária, portanto, define a circunstância da relação social.

O exemplo que sintetiza e ilustra mais claramente o que estou esforçando-me por demonstrar é o modo distinto de agir da personagem Jurema. Quando interpelada pela primeira vez no Vazadouro de Itaoca ela dirá, muito irritada: " …a gente não cata essas coisas aqui do lixo pra comer não, vocês botam no jornal e aí quem vê pensa que é pra gente comer, né? Mas não é pra gente comer, não é. Isso não pode acontecer. A mãe dela tem porco, o pai dela tem porco, todo mundo tem porco aqui. O que a gente cata aqui… às vezes a gente cata um pão, cata um resto de comida… é pra porco! Eu tô revoltada é com isso. A gente com o cesto cheio de legumes e ele filmando ali. Quem vê isso lá fora vai falar que é aquilo ali que eles comem, é daquilo que eles vivem, mas não é."

Quando apresentada diante da casa, ela aparece na porta e vem falar junto às crianças, aparece também a mãe dela e abre a janela, depois vem o marido na outra janela. Nas palavras do próprio Coutinho, numa entrevista dada à antropóloga Valéria Macedo para a revista Sexta-feira ele dirá: e é um teatro, a mãe aqui, o marido ali, os nove filhos e ela. E só no final da conversa ela confessa que eles comem lixo: " a gente come mesmo, mas não tem sentido mostrar, não quero que mostre para os outros. Não adianta nada, alguém vai me ajudar?"

Diante da casa e de toda sua família, seu maior orgulho como deixa transparecer claramente, de roupa limpa e banho tomado, portanto, cenário e aparência mais adequados, Jurema pode encarnar a personagem da mãe e esposa, apesar de tudo, feliz, da mulher trabalhadora e honesta sem ter que tentar por todos os meios convencer o cineasta do que está afirmando. Ela tem, ainda, que supervisionar tudo o que é e tudo o que faz porque, segundo Berger, "o modo em que aparece diante dos demais é de importância crucial para o que normalmente se considera para ela êxito na vida. Seu próprio sentido de ser ela mesma é suplantado pela sentido de ser apreciada como tal por outro."

Cenário , aparência e maneira juntam-se harmoniosamente e permitem uma representação eficaz, segura e sem vacilos. Se é verdade ou não cabe ao espectador julgar. E esse é o mérito maior, acredito, do documentário do mestre Coutinho. Por meio dele, os sujeitos do encontro etnográfico recriam uma realidade negociada cuja congruência é estabelecida por um laço significativo entre as experiências vividas e o universo da representação.¹

Nesse, como em outros filmes seus, o documentário se desvincula da pretensão de resgistrar uma realidade monolítica e arranca dela contradições e ambigüidades, que por sua vez são capazes de redimensioná-la, redescobri-la e, no limite, reinventá-la.

1 Cf. Feldman-Bianco, B. e Moreira leite, M.(orgs.). Desafios da Imagem: Fotografia, Iconografia e Video nas Ciências Sociais, cit, p. 208.


BIBLIOGRAFIA

Berger, John. Modos de Ver. São Paulo, ed. Gustavo Gili, SA.
Goffman, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis, Editora Vozes, 8ª edição, 1999.
Macedo, Valéria. Eduardo Coutinho e a Câmera da Dura Sorte. Entrevista. Revista Sexta-Feira.
Feldman-Bianco, B. e Moreira leite, M.(orgs.). Desafios da Imagem: Fotografia, Iconografia e Video nas Ciências Sociais. São Paulo, Papirus Editora.

FILMOGRAFIA
Coutinho, Eduardo. Boca de Lixo, video documentário, 54min., 1994.