No
início dos anos 50, um primo meu chamado Bráulio Pedroso,
que foi quem escreveu Beto Rockfeller, foi assistente de direção
de um longa-metragem feito em São Paulo, pelo Carlos Ortiz, chamado
Alameda da Saudade, 113. Eu morava em Santos e tinha filmagem nesse
filme em Santos. Eu fui assistir a filmagem e achei um saco... demorava,
corta, faz luz, não sei o quê, maquiagem... só que
depois começou a ser montado em São Paulo, e fui visitar
esse primo, numa sala de montagem, com moviola, aquela coisa escura,
penumbra, a luzinha de uma telinha pequena... Mas tinha um cheiro, eu
diria como se fosse cheirar cola hoje em dia. Aquele cheiro me deu um
baratinho qualquer, no sentido até meio existencial, não
saberia te explicar, daí eu disse: "pô, deve ser legal
trabalhar aqui com essa luz, esse cheirinho não sei o quê".
Minha primeira aproximação com o cinema, na verdade, foi
meio sensorial.
Mas passaram-se alguns anos, 1954, tinha um diretor de fotografia chamado
Rui Santos, foi importante na história do cinema brasileiro,
e ele ia fazer um documentário sobre a casa do Mário de
Andrade, e como eu queria ver se começava a fazer cinema, ele
falou: "olha, você vai ser o meu assistente de fotografia".
Eu fui assistente de câmara dele, carregava chassi, montava a
câmara, fazia o foco, punha o diafragma, carregava o fotômetro,
foi o meu primeiro trabalho.
E por problemas familiares eu tive que interromper essa idéia
de fazer cinema e só pude voltar em 63, quando depois de acumular
um certo dinheiro, falei: "com esse dinheiro vou conseguir passar
um ano pagando o meu aluguel, a minha comida e ver se dá certo".
Juntei esse dinheiro e com o mesmo Rui Santos ia fazer a direção
de produção de um filme baseado no romance chamado "Os
Corumbas", que segundo a história da literatura seria um
dos primeiros romances proletários do Brasil, se passava na Bahia,
nos anos 30, e contava a história dos Corumbas que era uma família
e a tradição de luta dessa família que trabalhava
em tecelagem e havia todo um envolvimento desse grupo com movimento
sindical e havia greve e estava tudo contatado e organizado na Bahia
em março de 64, em abril ia começar a filmar ia ter greve,
polícia na rua batendo e tal aí veio o golpe, o filme
melou.
Indiretamente eu era ligado ao Partido Comunista, já passara
pela Juventude Comunista e depois ingressei no Partido, mas saí
quando houve a cisão com o Agildo Barata, que saiu do Partido,
enfim, tinha minha aproximação com a esquerda e mantive.
Mas quando terminou a experiência na Bahia eu voltei para São
Paulo e falei: "o que eu vou fazer!?".
Comecei a trabalhar numa produtora, que chamava-se Documental e fazia
comerciais; um dos proprietários era o Galileu Garcia, que foi
assistente do Lima Barreto no Cangaceiro e o outro era o Agostinho Martins
Pereira, que fez os primeiros filmes do Mazzaropi, a Carrocinha.
Comecei a trabalhar como contato, levar trabalhos para eles etc, e lá
fiquei mais ou menos um ano, um ano e tanto, quando no final de 64...
Bom, eu já conhecia o Thomas (Farkas) dos anos 50 e poucos, aí
voltei a tomar contato com ele; o Birri já tinha passado por
São Paulo, eu tinha visto em 62 os filmes dele, e estabeleci
um vínculo de amizade com eles, através da cinemateca.
Lá tinha a Lucila Bernardet, o Maurice Capovilla, o Vladimir
Herzog, essa turma toda. O Capovilla e o Herzog passaram por Santa Fé,
Argentina, onde Birri havia fundado a Escuela Documental de Santa Fé,
depois o Vlado e a Lucilla fizeram um curso com Sucksdorff no Rio, que
trouxe uma moviola, som direto e o Vlado fez um curta que se chama "Os
Marimbás". O Vlado ia fazer a direção de produção
do Viramundo, e começou a estruturar a produção
quando decidiu, em setembro, outubro de 64, que ia embora, e disse:
"não, aqui não está dando mais para viver",
e foi embora, foi para Inglaterra, pois tinha recebido um convite para
trabalhar na BBC, e eu entrei no lugar dele para fazer a produção
do Viramundo.
Meu primeiro contato mais direto, de começar a fazer um trabalho
mais intenso... foi essa a minha introdução. E nesse meio
de tempo, eu estando trabalhando na Documental e de vez em quando fazendo
a produção do filme do Geraldo, mais intensamente ou menos,
conforme a necessidade de produção, em início de
janeiro de 65 vem para São Paulo Caetano, Gil e Capinã,
que são amigos do Geraldo, porque iam escrever a letra e a canção,
Capinã e Caetano, da música que está no Viramundo,
que é a introdução e o tema recorrente, e o Gil
ia cantar. E ele era desconhecido, como Caetano também era na
época, e eu ouvi ele cantando aquelas canções e
falei: "Gil, com essas canções dá para fazer
um filme, posso fazer um filme?" Ele falou: "pode".
Então juntei cinco canções dele, e já que
nós íamos gravar a canção definitiva que
ele ia fazer para Viramundo, falei: "vamos gravar as cinco, deixo
o gravador e vejo se consigo fazer um filme". E a partir daí,
com essa trilha musical pronta, eu trabalhando na Documental, consegui
levantar com amigos dinheiro emprestado, fazer cópias fotográficas
de desenhos, de gravuras de cordel, consegui sobras de filme do Luís
Carlos Barreto, de Vidas Secas, material filmando pelo Paulo Gil Soares
quando ele estava fazendo um levantamento de produção
para o filme Deus e o Diabo do Glauber, enfim...
Inclusive, da idéia de produção desse meu primeiro
curta, eu fundei uma empresa chamada Cinema de Cordel. Assim como tinha
a literatura de cordel, eu fiz o Cinema de Cordel, que era a idéia
de fazer alguma coisa com esse estilo de literatura, que fosse uma coisa
popular, que pudesse ser consumida como se fosse um livro de cordel,
que tivesse essa dinâmica de um livro de cordel., que pudesse
ser anônima.
Essa é minha primeira introdução, digamos assim,
ao meio cinematográfico, que na época foi essa produção
do Farkas; a partir daí, o contato mantido anteriormente com
o Birri e essa produção do Farkas, comecei a fazer algumas
coisas, ou junto com o Farkas, ou um pouco separado, deu para organizar
junto ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, um Departamento de
Produção de Filmes Documentários, um nome pomposo
, que no fundo era um modo que o Paulo Emílio Salles Gomes e
Maria Isaura Pereira de Queiroz conseguiram nos introduzir nesse instituto
mais para facilitar certos aportes, emprestavam fitas magnéticas,
doavam negativos de películas para se filmar, emprestavam um
veículo para produção numa ou noutra situação.
Algumas coisas o Geraldo Sarno fez, eu fiz outras, e junto com o Geraldo
fiz um filme para o Vanzolini intitulado "Projeto Vila Grande"
que o Geraldo ia dirigir e acabei eu dirigindo; tem também um
documentário que eu fiz em 67, na Bahia, que era um projeto interdisciplinar
da USP. A partir da Maria Isaura Pereira de Queiroz, pelo CERU (Centro
de Estudos Rurais e Urbanos), a gente ia documentar uma comunidade messiânica
no interior da Bahia, em Santa Brígida, que ela tinha estudado
em 50, 50 e poucos. Em 67 o projeto interdisciplinar tinha como objetivo
ver como é que estava a comunidade naquela época. Foi
gente de antropologia, sociologia, geografia, psicologia e mais outras
especialidades que não me lembro, para ver naquele momento como
é que funcionava a comunidade; o documentário que eu fiz
não era o resultado da pesquisa, mas como estava a comunidade
naquele momento em que o pessoal pesquisava.
Fiz esse documentário que, por sua vez, não era para eu
fazer, era para o Paulo Gil Soares, que na última hora não
pode e fui dirigir. Então se criou essa dinâmica de grupo:
Thomas (Farkas), IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), CERU (Centro
de Estudos Rurais e Urbanos), eu, Geraldo Sarno, Paulo Rufino, o Ramalho
e tal, fizemos algumas coisas.
O Geraldo chegou a fazer, junto com o Instituto de Estudos Brasileiros
(IEB/USP) dois documentários junto com o Farkas, se não
me engano o "Jornal do Sertão" e "Vitalino Lampião",
em preto e branco, fez um curta de ficção quando chegaram
os ossos de Anchieta, devolvidos de Portugal para o Brasil, nós
filmamos a chegada dele em Aparecida, em São Paulo; eu num tanque
de guerra entrando pela cidade... Ele filmou um auto que Anchieta tinha
escrito, filmou em Embu, enfim, por aí se disseminou uma certa
produção.
A partir do sucesso, entre aspas, não de público mas de
crítica, da primeira produção do Farkas, que é
"Viramundo", com "Memória do Cangaço",
"Nossa Escola de Samba" e "Subterrâneos do Futebol"
se fez um longa metragem juntando os quatro e se criou uma certa repercussão
de tal maneira que o Farkas fez um acordo com um conhecido cineasta
francês, Pierre Kast, que era um importante documentarista da
época. O produtor do francês disse ao Farkas: "ao
invés de você receber o dinheiro que você vai receber
da televisão francesa por esses filmes, você pega esse
dinheiro e coloca numa co-produção que esse senhor vai
fazer no Brasil sobre cultura brasileira". Chamava-se, em Português,
"Cadernos Brasileiros".
Ele fez quatro documentários sobre cultura popular no Brasil,
fez coisas na Bahia, em Brasília, em Ouro Preto, e fiz parte
da produção desses filmes. Enfim, estabelecemos, de uma
certa maneira, uma rede nacional e internacional de relações.
Aí o Farkas decidiu entrar numa segunda etapa da produção
de filmes documentários, que vai de 68 a 70 e tantos, 71 e 73.
O que ia ser, onde ia ser, quando ia ser e quais os temas, ficou a critério
de um trabalho que eu e a Ana Carolina fizemos com o levantamento de
temas e livros sobre o Nordeste.
Porque o Nordeste? Porque a gente tinha uma série de facilidades,
devido a relações pessoais, do Farkas, do Geraldo Sarno
e do Paulo Gil, de ir para o Nordeste e de fazer coisas dependendo da
época, em certos lugares. Fomos levantando, o que era possível
documentar ao longo de ano inteiro, dependendo da época, janeiro
tem não sei o quê com cana-de-açucar, não
sei quando tem mandioca, não sei quando tem milho, tem festas
religiosas, enfim, fazer um quadro geral para saber se nós fossemos
em abril, o que seria possível fazer de abril até junho
tais coisas, enfim, fizemos um grande levantamento, levamos 6 meses
para fazer isso; no final de 68 o Farkas arrebanhou recursos, conseguiu
comparar uma moviola, uma outra câmera Eclair, Nagra, refletores,
filmes, comprou uma perua C-14, pôs uma plataforma em cima, enfim,
o mínimo de produção, e conseguimos um acordo,
acho que foi com a Ford até, de ter um segundo veículo
emprestado para a produção ir na frente, levantando as
condições de produção.
Nós saímos daqui em abril com o compromisso de voltar
em 3 meses com 10 filmes. E havia um rodízio. A primeira leva
de documentários foi feita pelo Geraldo Sarno no interior do
Ceará e Pernambuco, a segunda parte foi feita pelo Paulo Gil
na Paraíba no Recôncavo Baiano e depois eu fui filmar no
interior da Bahia. Eu fiz a parte da produção executiva
junto com o Edgardo Pallero, que era um argentino que veio justamente
com o Birri em 62, volta em 64, em 64 o Birri vai para Europa e ele
fica aqui para fazer a produção dos primeiros quatro documentários
do Farkas e volta em 69 para participar da produção desses
outros documentários; nós dois fizemos a produção
executiva, só que eu ia na frente sempre preparando o pessoal
que vinha.
Fizemos toda essa produção e em vez de 10 documentários
voltamos com 19 documentários, pelo mesmo preço, com exceção
dos direitos a pagar para cada diretor, mas enfim, com o dinheiro que
tinha sido pensado em película, som, transporte para 10, voltamos
com 19. Só que o tempo que demorou o acabamento desses filmes
foi de uma certa forma lento. Terminei os meus em final de 69, mas o
Geraldo terminou em princípio de 70, 71, como ele fez 5 ou 6
documentários, foi mais demorado
A duração desse filmes variava. de 10 minutos até
40minitos. Uma das características, eu acho importante ressaltar,
é que tanto na primeira etapa quanto na segunda, ou seja, 64
e 69, o Farkas é um tipo de produtor que nunca interfere no sentido
de dizer: "eu quero isso aqui e vendo o filme eu não gostei
disso", quer dizer, ele deu total liberdade de escolha de temas
e de realização a cada um dos realizadores. Isso é
um negócio meio único, assim como foi única experiência
na história do cinema brasileiro, do documentário pelo
menos, de se ter feito em série uma tal quantidade de filmes
de maneira sistemática. Uma coisa é você sair, faz
um filme e voltar... Nós conseguimos fazer em três meses,
dezenove documentários... É uma tarefa para a época
e creio que até hoje razoavelmente complicada.
Bom, aí terminam esses filmes, continuei montando algumas coisas
que apareciam, com o Guido Araújo que também é
amigo do Farkas, com a moviola em São Paulo montei um filme que
ele tinha feito, acho que é "Feira da Banana" o título,
se não me engano; aí o Roberto Duarte estava montando
um documentário sobre o Teatro Oficina com uma namorada que era
atriz de lá, enfim, de alguma maneira eu comecei a terminar outros
filmes ou editar.
Muito bem, nos 70 e poucos, acho que foi em 73, o Farkas tinha uma quantidade
imensa de material, pois a produtora era na casa dele, num quarto refrigerado,
com ar condicionado, de material de sobra e aí ele falou: "nós
temos que dar um jeito nisso daqui, tem muita sobra e não sei
o que fazer". Eu revisei todo esse material, e mais, nessa viagem
de 69, apesar de não ter nenhum projeto para fazer no Ceará
especificamente, mas sim na Bahia, quando passei na preparação
da Bahia, encontrei uma senhora que era uma rezadeira que sabia reza
para fechar o corpo, para plantação, essas coisas que
inventam né?... Eu falei: "quando voltar aqui eu vou filmar
essa senhora", pois ela estava com cento e tantos anos, não
sei o que eu vou fazer, eu vou documentar e ficar com ela. E quando
eu passei pelo Ceará, onde o Geraldo Sarno estava filmando, um
dia eu saí com o Farkas e descobrimos um raizeiro na feira, o
cara vendia raiz. Vamos documentar o trabalho dele na feira e na casa
dele, onde ele fazia operação em boca de cavalo, tratava
uma infecção, enfim, era um raizeiro meio curandeiro,
também documentei e disse: "não sei o que vai acontecer,
estava lá guardado, arquivei".
Nesse levantamento de 73 falei: "Thomaz, tem uma série de
materiais aqui, que acho que vai dar para fazer um outro documentário
só com as sobras. Você vai ter que pagar só a cópia
e o serviço de laboratório e de som, porque o resto tá
feito". Ele disse: "pode fazer". Aí fiz um filme
chamado "De raízes & rezas, entre outros". Esse
filme tem como dois núcleos principais a rezadeira, com essas
rezas de fechar o corpo e esse raizeiro, e recompilei, digamos assim,
a trajetória de toda a filmagem. Tem coisas filmadas na Bahia,
no Ceará, em Pernambuco, na Paraíba. Faço um panorama
dessa trajetória e como naquele momento você tinha inúmeras
dificuldades com censura, para evitar maiores problemas, o que é
que eu fiz: não botei narração, peguei só
fragmentos de canções brasileiras ou latino-americanas
e pus um texto de advertência na frente: esses textos são
para ser ouvidos e sentidos não como uma canção
que lembre a canção, mas como se fosse um texto de narração.
Esqueça a música. E usei isso no filme inteiro e mesmo
assim tive problema com a censura, pois estava filmando no interior
da Bahia um enterro de uma criancinha, um bebê, que é levado
por um grupo de crianças para o cemitério e atrás
tem uma zabumba tocando. Quando entrou no cemitério e a criança
começou a ser enterrada, a zabumba começou a tocar o hino
nacional e deixei. A censura mandou tirar e disse: "não
pode tocar o hino nacional, no enterro de uma criança" e
peguei uma cópia, cortamos e mandamos para a censura e mantive
uma versão integral com a zabumba tocando o hino nacional.
O objetivo seria um dia talvez conseguir justamente chegar na escola.
O objetivo era a escola. Mas desapareceu esse mercado e foi-se embora
a partir de 69, a partir do AI-5, aí o Farkas começou
a alugar, emprestar, começou a participar de uma ou duas SBPC
, foi para algumas faculdades, algumas escolas, mas uma coisa assim,
tópica e localizada, nunca teve uma maior repercussão.
Alguns desses filmes foram para o exterior e tiveram alguma repercussão
em mostras e festivais internacionais, em projeções no
Museu do Homem em Paris.
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