O interesse e a atenção
crescentes que questões afins ao campo de atuação
do documentário têm despertado produziram uma renovação
significativa da teorização e da crítica neste
domínio. Nesta renovação, destaca-se, certamente,
o crítico norte-americano Bill Nichols, cujo trabalho possibilitou
o desenvolvimento de uma nova vertente de investigação,
análise e teorização para o documentário.
Nichols procura ressaltar semelhanças e, principalmente, diferenças
existentes entre os domínios empiricamente reconhecidos da ficção
e do documentário, sem precisar voltar, no entanto, a uma oposição
rígida ou estrita entre ambos. Da mesma forma, evitou, na diferenciação
entre documentário e ficção empreendida, reavivar
qualquer idéia de “superioridade” moral-ontológica
do documentário. Antes, Nichols procura colocar em questão
algumas idéias próprias a uma tendência de crítica
que, com mais força a partir da década de 1970, colocou
em destaque o caráter fictício de qualquer documentário.
Segundo esta perspectiva, todo documentário é um “texto”,
é “uma ficção com tramas, personagens, situações
e acontecimentos como qualquer outra” (NICHOLS, 1997: 149).
Para esta tendência, um documentário é tão
construído quanto qualquer “filme de ficção”.
Ele é uma construção discursiva subjetiva, ideológica,
produzida por “sistemas significantes” equivalentes aos
encontrados no “cinema de ficção”. As suposições
de objetividade, de neutralidade e de veracidade documentais –
que tradicionalmente estiveram relacionados, de uma forma ou de outra,
à atividade documentária – não teriam, portanto,
qualquer sustentação. O documentário não
estaria mais próximo da realidade que a ficção.
Nem estaria mais próximo da realidade que da ficção.
Ao equiparar ficção e documentário como “construções
de caráter discursivo”, no entanto, este tipo de análise
acabava ignorando, no entender de Nichols, distinções
importantes. Nichols reconhece que o documentário compartilha
certamente muitas características com o cinema de ficção.
Reconhece também que dizer que o documentário é
uma “ficção como qualquer outra” foi importante
para atacar as concepções que acreditavam na oposição
ilusória, redutora e simplista entre ficção e documentário,
e que, movidos por um preconceito contra a ficção, pretendiam
colocar o documentário em um nível superior de relação
com o mundo.
Para Nichols, no entanto, se o documentário é um discurso
construído, uma “ficção”, ele é
“uma ficção (em nada) semelhante a qualquer outra”
(2) (NICHOLS, 1997: 151). Nesse sentido, todo documentário é,
certamente, tão construído quanto qualquer “ficção”,
mas, ambos são diferentemente construídos. Se o documentário
é uma ficção, esta ficção guarda,
no entanto, especificidades e diferenças em relação
às outras ficções. Como exemplos dessas diferenças,
Nichols cita, entre outras, as que dizem respeito às práticas
recorrentes ou às questões de ética, estrutura,
estratégias, estilos, e tudo o mais que constitua ou caracterize
o documentário como um domínio institucional particular.
Uma das contribuições do autor para o debate atual sobre
documentário foi, justamente, este cuidado com a questão
da especificidade da prática, da teoria e da retórica
documentárias. Além disso, a sua crítica à
tendência que equiparava documentário e ficção
mostrou como esta perspectiva – dominante em certos setores –
já apresentava sinais de esgotamento e de inviabilização
de alternativas por reduzir o documentário a um modelo de análise
criado para o filme de ficção.
O gesto de afirmação do domínio do documentário
como algo específico e próprio ainda permanece, no entanto,
em grande parte tributário do mesmo território teórico
que havia, anteriormente, estabelecido a tendência crítica
que se atacava. Principalmente porque Nichols, como a maior parte dos
autores, manteve praticamente intactos determinados pressupostos muito
fortes presentes naquela tendência. Para realizar a tarefa de
busca das diferenças entre documentário e ficção,
o autor precisou utilizar ainda, para fundamentar sua argumentação,
uma das noções mais caras aos críticos de que ele
se distanciava: a de representação.
É o que podemos notar quando Nichols afirma, por exemplo, que
“os documentários não diferem das ficções
por serem textos construídos, mas pelas representações
que fazem” (3) (1997: 153). Nesta afirmação, fica
claro como a noção de representação é
ainda importante para o projeto do autor. Ela adquire a forma de um
pressuposto sobre o qual se fundamentam as diferenças entre documentário
e ficção que Nichols deseja destacar: à ficção
caberia a representação de uma estória passada
em um mundo imaginado; ao documentário, a representação
de uma argumentação que procura apontar para o mundo histórico.
A noção de representação passa, desta forma,
a compor a perspectiva do autor como um pressuposto teórico discreto:
considera-se que tanto o documentário quanto a ficção
são formas de “representação”, ainda
que diferentes. Essa afirmação, no entanto, não
é colocada em discussão (por isso é justamente
um pressuposto), e o conceito de “representação”
se naturaliza em sua aplicação indistinta tanto ao documentário
quanto à ficção, sem que se questionem as implicações
desta “naturalização” na análise empreendida.
Mas, no âmbito da teoria do documentário, devemos entender
a forte presença da noção de representação
como instrumento de uma estratégia. Para a tendência crítica
que, a partir dos anos 60/70, procurou colocar em questão as
rígidas oposições entre ficção e
documentário – equiparando-os “ontologicamente”
–, a noção de representação será
uma ferramenta importante tanto para a análise da construção
de significado no documentário, quanto para atacar sejam as “concepções
realistas” da objetividade do registro cinematográfico,
sejam as técnicas do “ilusionismo”. A semiologia
do cinema foi uma das tendências que utilizou estrategicamente
a noção de representação com este sentido.
Para Christian Metz, por exemplo, todos os filmes, mesmo os documentários,
são ficções porque são representações.
Para o autor, a atividade de “representação”
marca necessariamente qualquer obra cinematográfica, já
que é incontornável a presença de uma subjetividade
produtora que dá forma, organiza e seleciona. A realidade não
poderia nos falar diretamente através de algum suposto instrumento
de registro neutro e objetivo, mas apenas através das representações
construídas por sujeitos histórica e ideologicamente determinados.
Assim como Metz, outros autores franceses (como Jean-Louis Comolli,
Marcelin Pleynet, Jean Narboni e Pascal Bonitzer) também procuraram
evidenciar, através da noção de representação,
que todo conjunto organizado de signos (imagens e sons) é uma
representação na medida em que transforma e “manipula”
aquilo que representa de acordo com intenções subjetivas
e ideológicas, apresentando (e este é o caso do realismo
documental) um mundo trabalhado pelo discurso e pela ideologia como
se fosse o real.
Considerar o cinema e, especificamente, o documentário como uma
forma de “representação” cumpriu, portanto,
um papel estratégico para a crítica ao realismo: enfatizar
o caráter ideológico, subjetivo e discursivo da atividade
cinematográfica em geral, evidenciar as diferenças entre
o que é da ordem do real e o que é da ordem do discurso
e eliminar o idealismo que pretendia apagar essas diferenças.
Quando Nichols afirma, por exemplo, que “documentários
sempre foram formas de re-presentação, nunca janelas transparentes
para a ‘realidade’” (NICHOLS in ROSENTHAL, 1988: 49),
ele mantém ainda um elo de ligação a essa corrente
teórica e crítica que, sem questionar as implicações
que a noção de representação comporta, ou
percebê-la como um pressuposto, dela se valeu para atacar os “mitos
realistas”. Se as idéias de Metz, Comolli ou Bonitzer muito
influenciaram, posteriormente, teorias importantes do documentário,
conduzindo-as a questionar com propriedade a “superioridade ontológica”
do documentário e o idealismo da concepção realista
que o cercava, elas também lhes criaram embaraços significativos.
Como vimos, o próprio Nichols mostrou como essas idéias
não deixaram muito espaço para pensar a especificidade
do documentário ou a sua “existência institucional”.
Além disso, a “evidência” segundo a qual o
documentário é uma representação não
tem permitido pensá-lo como outra coisa a não ser isso.
Também não se tem questionado se a relação
que o documentário estabelece com o mundo precisa ser tomada,
necessariamente, como sendo da ordem da representação/objeto
representado. Ou ainda, o quanto é a própria idéia
de “representação” que torna necessário
discutir a relação do documentário com o que chamamos
de “real” sob o próprio viés do realismo (uma
possibilidade de objetividade ou de “adequação”
entre ambos, possibilidade esta, ora afirmada, ora negada).
A representação e a sua crítica
Seria necessário,
então, fazer, não tanto a crítica das formas de
representação (de sua ideologia ou de seu discurso), mas
a crítica da representação como um pressuposto
teórico, ou seja, a crítica da idéia de representação,
de seu uso, de suas implicações e limites dentro das teorias
do documentário. Dizer que um documentário é uma
“representação”, não significa apenas
dizer que ele é uma construção discursiva e subjetivamente
estruturada – diferente, portanto, da própria realidade.
Essa pressuposição carrega consigo também a idéia
problemática de que, como representação, o documentário
“substitui” alguma coisa (a realidade?), “presentifica-a”,
ocupando seu lugar lá onde ela não mais se encontra. A
idéia de “substituição” (alguma coisa
que ocupa o lugar de outra) está implícita na idéia
de representação. É o que se supõe, por
exemplo, quando consideramos que uma fotografia “representa”
uma pessoa, ou que uma palavra “representa” uma determinada
idéia ou ação. Toda representação
supõe, além de um sujeito que a “constrói”,
um objeto por ela representado, um modelo que ela busca “copiar”
– a idéia de cópia está, assim, assimilada,
de uma forma ou de outra, à idéia de representação.
Um dos problemas centrais da noção de representação
é, então, saber em que medida ela visa ser confundida
com o que representa. E, também, saber o quanto há de
arbitrário e o quanto há de motivado em uma representação
(AUMONT, 1993: 103-105). Para a análise empreendida aqui, não
parece importar muito saber se a representação é
motivada ou convencional, mas saber que a idéia de representação
supõe implicitamente a existência de um sujeito e um objeto
previamente dados.
No entanto, a questão da motivação ou da convencionalidade
da representação só parece possível devido,
justamente, à suposição da existência de
um objeto para a representação. O que está em questão
quando se pensa se a representação é convencional
ou motivada é a natureza de sua relação com o objeto.
O que está em questão é a avaliação
da adequação entre a representação e o que
ela supostamente representa. Ou seja, sob que aspectos se pode considerar
a legitimidade e a “veracidade” da representação
em relação a um objeto proposto, tomado, de alguma forma,
como modelo. O problema é que a avaliação da adequação
entre objeto e representação acaba conduzindo, especialmente
na teoria do documentário, à inevitável constatação
da “inadequação” da representação,
da necessidade do espectador aceitar sua arbitrariedade, seu “contexto
limitado”, sua “insuficiência” frente ao objeto.
No campo da teoria do documentário, esta constatação
se deu em meio a grandes dificuldades, em razão da força
que sempre tiveram as suposições de uma adequação
direta e verdadeira entre o documentário e seu suposto objeto,
a realidade, não apenas junto ao senso comum, mas também
junto a grande parte da tradição da prática documentária.
Em função disso, a “inadequação da
representação” documentária do mundo só
adquiriu o caráter de uma “evidência” à
medida que, como vimos, diversas abordagens críticas evidenciaram
justamente o caráter de representação de todo documentário.
Desta forma, buscou-se apontar os “limites” de toda representação,
o que “não se pode representar” ou tudo aquilo que
faz da representação documental uma representação
“inadequada”, “problemática”, tanto em
relação a seu “objeto”, quanto a seu “sujeito”
e a seu “espectador”, de forma a reconhecer que o realismo
documentário e suas convenções não são
capazes de reproduzir nenhuma realidade “fielmente”, ou
seja, sem utilizar artifícios e fabricações.
Outros problemas específicos da prática do documentário
seriam os que dizem respeito aos efeitos da presença/interferência
da câmera sobre o que é filmado, aos diversos acordos que
devem ser feitos para permitir a filmagem, às maneiras de se
posicionar, de iluminar, de enquadrar, ou até mesmo, ao que deve
ser filmado ou não. Tudo isto levantou o questionamento, tanto
de setores da teoria quanto da prática do documentário,
das suposições e dos condicionamentos que antes eram tomados
como “não-problemáticos”.
Cineastas e teóricos se preocuparam com as dificuldades intrínsecas
da filmagem documental no que diz respeito a questões como a
da influência do “observador” sobre o “observado”
e com o fato de a realidade ser selecionada e alterada pela presença
do cineasta e pelas necessidades técnicas dos equipamentos. A
subjetividade e a arbitrariedade presentes nessas escolhas e interferências
tornariam sempre suspeita qualquer pretensão de autenticidade
ou de neutralidade, assim como qualquer tentativa de instituir evidências
de mundo através de artifícios realistas.
Apesar da inegável legitimidade destas alegações,
a crítica da representação documentária
criou uma grande dificuldade de se avaliar positivamente a prática
documentária, sem que se retornasse a uma concepção
realista. Essa dificuldade, no entanto, não pode ser tanto fruto
das particularidades da prática documentária ou da técnica
cinematográfica, quanto parece. Ao contrário, ela decorre,
muito mais, das suposições e expectativas socialmente
estabelecidas (o documentário deve “representar o real”)
e das elaborações e conceitos usados por determinadas
teorias e análises (“o documentário é uma
representação”). Poderíamos ver um exemplo
concreto destas dificuldades em um tipo de crítica que se concentrou
em apontar a “manipulação” existente no documentário,
em particular, e no cinema, em geral. Esta “crítica da
manipulação” se ocupava de relatar casos em que,
ou o documentário utilizava as particularidades de sua técnica
para, propositadamente ou não, “distorcer a realidade”,
ou ele se mostrava “tecnicamente” incapaz de representá-la,
por mais honestamente que tentasse. Eventualmente, também procurava
mostrar como o cinema podia cometer “equívocos” ou
produzir estereótipos ao “representar” culturas desconhecidas
ou “exóticas”. São inúmeras também
as análises de “filmes de propaganda” que cumpririam
determinados papéis ideológicos e persuasivos em suas
“representações da realidade”. Esta crítica
da manipulação se fez possível, primeiramente,
porque acreditava que os documentários poderiam ser tomados,
se não como meios puramente objetivos de “representação
da realidade”, mas como evidências que permitiriam acesso
à compreensão das “ideologias que os fabricavam”.
Da mesma forma, essas “ideologias” precisavam ser compreendidas
como sujeitos ativos e eficazes, dotados de uma total onipotência
para produzir qualquer efeito desejado e para controlar emoções
e desejos do espectador.
Mas este tipo de crítica também é fundamentado
pela pressuposição disseminada de que o documentário
é uma forma de representação que, além de
ser “manipulado” por um sujeito-ideologia onipotente em
seu discurso, também tem um objeto previamente determinado na
realidade.
A noção de representação, aplicada ao documentário,
nos induz à noção de manipulação,
já que a primeira supõe, necessariamente, a existência
de um “objeto da representação”, fixamente
determinado. Como vimos, não se pode falar em representação
sem entender que alguma coisa é representada, ou seja, sem atribuir
à representação um “objeto”. Designar
um objeto para a representação, por sua vez, implica em
considerá-la passível de um julgamento de sua adequação
ou coerência em relação ao objeto suposto –
especialmente quando se considera que este é um objeto inteiramente
“real”, sem virtualidades. Desta forma, é porque
a noção de representação supõe, implicitamente,
um objeto, um modelo (um real que se supõe previamente dado por
inteiro), é que se pode falar na sua “inadequação”.
O “objeto” da representação funcionaria como
esse modelo ao qual a representação deve ser comparada.
A suposição da existência deste objeto-modelo é,
portanto, uma conseqüência – e paradoxalmente, ao mesmo
tempo, uma causa – da suposição de que o documentário
é uma representação.
Um primeiro problema da crítica da manipulação
estaria, então, na “designação” de
um objeto-modelo para a representação. Mas, além
disso, estaria também, e principalmente, na suposição
de que este objeto é alguma coisa pronta, previamente dada, dotada
de uma identidade unívoca. Alguma coisa que guarda uma semelhança
irrevogável consigo mesma, e que a representação-cópia
deve espelhar. Quando Nichols nos diz, por exemplo, que “o documentário
representa os pontos de vista de indivíduos”, ele pressupõe
que existam, previa e independentemente, “pontos de vista”
a serem representados. Como se estes pontos de vista formassem uma imagem
que já existe e que vai ser revelada pelo documentarista, como
a imagem que surge ao montarmos um quebra-cabeça. A imagem já
estaria lá, antes que se comece o trabalho, desordenada e espalhada
em vários fragmentos, mas já totalmente definida. É
essa concepção, que vê a realidade como a imagem
previamente existente de um quebra-cabeça, que sustenta tanto
a noção de representação, quanto a de manipulação.
Não se coloca em questão se os “pontos de vista”
só ganham “existência” no processo de sua produção
(seja esta considerada ou não uma representação),
nem se aquilo a que chamamos, usualmente, “realidade” é
mesmo um “objeto” tão concreto, como uma imagem em
um quebra-cabeça, cuja única dimensão é
a sua materialidade.
A crítica da manipulação sustenta também
que, muitas vezes, as argumentações ou narrativas desenvolvidas
pelos documentaristas não respeitam a “verdade histórica”.
Este tipo de afirmação coloca um segundo problema à
crítica da manipulação: a determinação
interessada de um critério externo de julgamento da veracidade
da “representação”, a partir do qual se poderia
determinar a existência ou não de “manipulações”.
Geralmente, a objeção que os críticos da manipulação
e os historiadores fazem aos “documentários históricos”
pode ser explicada pelo fato de os historiadores não reconhecerem,
nestes filmes, suas próprias elaborações e conclusões.
Quando as reconhecem, podem, eventualmente, enaltecer a “fidelidade
histórica” do filme, mas apenas porque, nestes casos, a
“representação” se submete ao “objeto”
e à imagem pressupostos e, principalmente, ao modelo de verdade
e ao critério de julgamento estabelecidos pelo crítico.
Desta forma, considera-se, de uma só vez, que o documentário
faz “representações do mundo histórico”
(sendo este seu “objeto”), e privilegia-se um critério
ou modelo de julgamento particular, considerando-o superior e definitivo
frente a outros possíveis: neste caso, o saber estabelecido pelos
historiadores, a História, compreendida como “disciplina
acadêmica institucionalizada”. Em outras palavras, supõe-se
que o documentário deve ter o mesmo “objeto” da representação
da história realizada pelos historiadores. Deve, portanto, conduzir,
igualmente, às mesmas conclusões que obtiveram os historiadores.
Isso nos mostra como a própria noção de adequação,
de verdade histórica, é uma noção “exterior”,
como ela depende da determinação de um saber, que não
pertence ao próprio campo da expressão audiovisual, e
como uma crítica da “manipulação” presente
no filme depende deste saber exterior.
Uma das grandes dificuldades em que cai este tipo de crítica
é, então, o estabelecimento de um critério de julgamento
exterior universalmente válido, que deve servir como instrumento
para “medir” a adequação do objeto à
representação. É normal que os historiadores usem
a História como este critério, supondo, é claro,
que a História, ou qualquer outra área de conhecimento,
seja alguma coisa tão uniforme e harmônica a ponto de ser
desprovida de conflitos e desacordos internos. Supondo, igualmente,
que a recepção e a interpretação das “mensagens”
que os filmes nos trazem também não mude historicamente.
Mas, se nem mesmo o “conhecimento científico” estabelecido
por uma mesma disciplina é unívoco, o que se pode dizer
do conjunto do conhecimento humano e das perspectivas de interpretação
possíveis? Da mesma forma, é muito comum que os documentaristas,
desejosos de se aproveitarem do respaldo da autoridade socialmente reconhecida
dos historiadores, tentem se apropriar do discurso destes últimos
para conferirem “veracidade histórica” a seus filmes
e a seus próprios discursos.
Não será, então, a crítica da manipulação
a decorrência desejável de um acordo tácito entre
aqueles que desejam “representar a realidade”, mas, como
diz Nichols, sabem que toda representação é uma
fabricação – e precisam, portanto, de legitimação
–, e aqueles que detém a autoridade sobre um saber estabelecido,
mas sabem que o reconhecimento desta autoridade é sempre conflituoso
e provisório – e precisam garanti-lo, ampliando seu controle
e sua influência sobre quantas áreas da atividade humana
for possível?
A crítica da representação conduz, freqüentemente,
à conclusão niveladora da onipresença da manipulação.
Isso porque, dada a multiplicidade de perspectivas possíveis
para a avaliação de uma representação qualquer,
facilmente podemos ser conduzidos à constatação
da presença de algum tipo de manipulação em qualquer
filme. Radicalmente falando, de algum ponto de vista deve ser possível
detectar “manipulações” em todo filme. À
pergunta, totalmente retórica por sinal, “o cinema manipula
a realidade?”, então, é praticamente impossível
não responder “sim”, por, pelo menos, duas razões.
Primeiro, porque, quando se faz tal pergunta, se supõe implicitamente
que a “realidade” é o “objeto” do cinema.
E como objeto, a realidade não pode ser “representada”
sem que haja artifícios, arbitrariedades, manipulações.
Segundo, porque não há como estabelecer “o que é
a realidade” a partir de um critério de julgamento único
e segundo o qual se ateste, definitivamente, a adequação
ou a inadequação da sua “representação”.
Assim, sempre haverá algum critério externo, um momento
histórico, uma ideologia segundo os quais a representação
é inadequada, manipulada, deixando como conclusão que
toda representação empreende, de alguma forma, uma manipulação
de seu “objeto”.
O maior impasse da crítica da manipulação está
no fato de que seu horizonte final tende a ser esse “valor relativo”
de toda manipulação, associado a uma crença na
“realidade do objeto” equiparável àquela das
concepções realistas do cinema. Por valor relativo da
manipulação, deve-se entender a necessidade de designação
de um critério somente relativo ao qual se pode determinar a
“veracidade” ou as “manipulações”
de determinada “representação”. Ao mesmo tempo,
esta designação nunca deve ser evidenciada por aquele
que a empreende, já que o critério estabelecido não
pode aparecer como tal, como um entre muitos possíveis: ele deve
se “confundir” com a própria realidade.
Ou seja, para quem julga a manipulação presente nos filmes,
o critério-modelo de verdade não pode ser identificado
como um critério apenas. Ele deve ser considerado inerente à
própria realidade do objeto, daí a necessidade de uma
crença profunda na sua “realidade”. A crítica
da manipulação continua, portanto, a supor, tal como os
realistas, mais que uma possibilidade de espelhamento entre “a
realidade e a sua representação”, a existência
de uma “realidade-objeto” previamente fixada, ou não
seria possível apontar erros e distorções nas representações.
A diferença é que, para os críticos da manipulação,
as concepções realistas acreditavam na transparência
da representação cinematográfica em sua relação
com o mundo, enquanto que as concepções críticas
consideravam essa relação como algo eminentemente “problemático”,
“opaco”. Mas ambos continuam a supor a realidade como alguma
coisa preexistente e como modelo para as “representações”.
É, justamente, a noção de representação
que aproxima, apesar de todo o aparente antagonismo, as concepções
realistas e seus críticos, uma vez que ambos a pressupõe
– seja para afirmar um nexo direto entre a representação
e seu objeto, seja para negá-lo. De alguma forma, a preocupação
dos que criticavam o realismo era “resguardar” o objeto,
a realidade, atuando onde o idealismo realista tinha falhado: a identificação
da intervenção causada pela subjetividade e pela ideologia,
pelos recortes e “pontos de vista” do sujeito sobre o mundo
representado. O alvo desta crítica não é, portanto,
o realismo, a vontade de “representar” o real, mas a representação,
sua inadequação fundamental para refleti-lo, e os perigos
de sua forma “degenerada”, a manipulação.
Sob este perspectiva, a crítica ao realismo seria apenas uma
versão menos “ingênua” do realismo, já
que, em ambos os casos, supõe-se uma realidade que se reduz à
materialidade ou à visibilidade dos corpos e dos seres. Para
a crítica da manipulação, no entanto, se apresenta
um problema a mais: tornar compatíveis os níveis de incredulidade
do espectador às “manipulações” aceitáveis
ou não segundo o critério de julgamento que se adota,
e segundo aquilo que passa a ser considerado como “a realidade”.
Ou seja, tanto as ditas “representações da realidade”
(os documentários), quanto o julgamento da adequação
destas representações (as críticas), devem conjurar
ou cooptar a incredulidade do espectador disseminada pela variedade
de perspectivas, experiências, referências individuais,
e pela historicidade da recepção e das interpretações.
Como vimos, é difícil evitar uma avaliação
negativa do documentário se continuarmos a falar em “representação”,
já que isto conduz, freqüentemente, à constatação
da existência de “manipulações”, “inadequações”
e às possíveis desqualificações subseqüentes.
O que se busca aqui, então, não seria apontar as “inadequações
da representação documentária”, como fez
a crítica da representação/manipulação,
mas a “inadequação” (as dificuldades implicadas
pelo seu uso) da noção de representação
para a teoria do documentário, evidenciada por aquilo que ela
faz pressupor – a realidade como objeto, o documentarista como
sujeito, o documentário como representação.
Mas também não se trata de dizer que deveríamos
abandonar a noção de representação, porque
não seria mais possível representar, dadas certas condições
específicas da produção de imagens em nossos dias.
Apontar apenas as “inadequações” ou “deficiências”
da representação seria limitar-se a inverter a questão
da referência ao real, sem, contudo, enfrentá-la de outra
perspectiva ou deslocar o seu centro de discussão. Seria, portanto,
insistir numa concepção eminentemente negativa do documentário.
Bibliografia
AUMONT,
Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 1993.
METZ,
Christian. A Significação no Cinema. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
NICHOLS,
Bill. La Representatión de la Realidad. Barcelona: Paidós,
1997.
ROSENTHAL,
Alan (org). New Challenges for Documentary. Los Angeles: University
of California Press, 1988.
(1) Doutor
em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação
da UFRJ/ 2005. Professor do Curso de Cinema da Universidade Estácio
de Sá.
(2) No original,
“a fiction (un)like any other”.No original, “a fiction
(un)like any other”.
(3) Tradução própria.
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