Filme: Realidade ou Ficção?


Por Alessandra Silvério*

 

A fronteira entre realidade e ficção vem se tornando cada vez mais estreita. Na indústria cinematográfica, transgride os limites entre o real e o imaginário. Reflete lutas, vitórias, derrotas, sonhos, realizações e esperanças. Desvenda fantasias, angústias, injustiças e felicidades refletidas do povo. Audaciosa, ultrapassa as fronteiras territoriais. Casa o real com o imaginário. Estabelece relações de cumplicidade dentro e fora da tela com o espectador.

Mas até que ponto o cinema é realidade ou ficção? Estaria ele retratando a realidade fidedigna? Seria ele um reprodutor quase mecânico do real em que a câmera capta e transmite fielmente as relações relevantes que existem na realidade? Ou o poder de construção da realidade estaria concentrado nas mãos do cineasta que manipula sua matéria-prima e transforma-a em um produto audiovisual segundo sua visão artística e particular dos acontecimentos?

Primeiramente, torna-se imprescindível analisarmos psicologicamente o efeito e a causa que o cinema, seja ele baseado em realidade ou ficção, exerce sobre os espectadores. Ele está ligado diretamente ao imaginário das pessoas. Constrói o fato, história ou estória. Dentro da sala de projeção quem assiste relaxa, pensa na vida, se coloca no lugar dos protagonistas. Quando o indivíduo vai ao cinema, curiosamente ele pratica uma espécie de ritual. Escolhe um espaço no lugar escuro que separa o mundo real do mundo imaginário, dividido apenas por uma cortina, como se estivesse escolhendo a poltrona mais aconchegante.

Além disso, o mecanismo psicológico inconsciente do espectador de cinema leva-o a agir. Dentro daquela sala de projeção ele busca a identificação individual e coletiva. Compartilha emoções em relação ao filme que está vendo com os outros espectadores. Sem dúvida nenhuma, há aqueles que preferem a comodidade de estar em casa deitado no sofá, enrolado num cobertor, comendo pipoca e assistindo um filme.

O lugar do ritual pode mudar, é verdade. Mas em ambos os casos, seja na sala de projeção ou em casa ele sente emoção, alegria, tristeza, raiva e amor com o que está sendo projetado ali na sua frente. Seja na tela da televisão ou do cinema, a partir do imaginário do roteirista e do diretor do filme, o que se vê transforma-se em "realidade" na mente de quem assiste. Felicidades, ódios, vitórias, derrotas, injustiças, amores refletidos. Mas até que ponto isso seria mesmo realidade? Não seriam apenas fragmentos de realidade transformados em ficção? Uma espécie de simulacro da vida real? Uma ilusão de realidade, que Marcondes Filho chama de "universo tecnocêntrico"?

Ao resgatarmos um pouco da história cinematográfica, verificamos que na concepção dos Irmãos Lumière o cinema era uma maneira de documentar momentos marcados no tempo, mas sem modificar sua essência. A câmera deles retratava cenas corriqueiras do cotidiano parisiense como a chegada de um trem, a saída dos operários de uma usina e a refeição de bebê. Enquanto isso Georges Meliès transformava a realidade fílmica num mundo com leis próprias, que não necessariamente coincidiam com o mundo real. Com sua objetiva fazia aparecer e desaparecer pessoas e objetos. Muito antes de Armstrong pisar na lua, Melies já havia apresentado, em 1902, as primeiras imagens do homem no território lunar - sem nem ao menos desconfiar que isto realmente aconteceria um dia. Este é um exemplo típico de que a ficção pode confundir-se com a realidade. E aí, não estamos nos referindo a fenômenos como premonição, cumprimento de destino, profecia ou adivinhação. Muito pelo contrário. Mas a sede do ser humano em ultrapassar os limites físicos e tecnológicos, e neste caso também, casualmente ou não o da ficção.

Sergei Eisenstein e André Bazin, teóricos da linguagem cinematográfica, trocavam farpas a respeito da realidade. Enquanto Eisenstein defendia a manipulação pós-filmagem do material filmado a partir da montagem, com a teoria dialética da montagem, Bazin por sua vez, argumentava que o cinema era simplesmente a fotografia em movimento, e que servia para realçar as relações de espaço entre a fotografia e o real. Eisentein acreditava que o filme só passaria a adquirir sentido pleno a partir da estruturação do processo de montagem, em que o diretor provocaria um efeito de "colisão" entre dois takes, a fim de obter um terceiro significado que transcendesse a importância de cada fotograma isoladamente.

Realidade essa, por sua vez, construída por meios audiovisuais como a TV e o cinema, como conceitua Alvetti:


"O real que se vê não é mais o que parece o real da realidade (o que diz o senso comum), mas um outro real, o da representação. É como se o real que conhecemos se desfizesse, diante de imagens articuladas de outro modo (conforme o veículo) e fossem ressignificadas de acordo com um novo ideal de realidade. Como se passasse a ser, também, produto das formas de representação, que ajudam a constituir as relações de cultura e poder na sociedade contemporânea "(1) .


Já na concepção de Giovaninni, os "novos meios de comunicação" correspondem a novas formas de encantamento, tanto no aspecto individual, quanto coletivo, sob a forma de hipnose. Segundo ele, as aplicações generalizadas de informações em doses maciças, são capazes de provocar mutações psicossensoriais, e conseqüentemente culturais, que podem acarretar em algumas descontinuidades de identidade antropológica.

A aldeia global de McLuhan nos mostra que a sociedade compartilha emoções através dos meios de comunicação, em especial, os audiovisuais. Com a evolução tecnológica, ao longo do tempo, eles foram moldando o modo de pensar do homem, cativando-o, seduzindo-o, fazendo-o rir, chorar, sentir medo, pavor, solidariedade, com imagens fragmentadas, inspiradas, baseadas ou recortadas do real. Tudo isso através de signos audiovisuais que remetem aos espectadores significados, fazendo com que eles construam seus universos cognitivos interiores pautados no imaginário audiovisual que, por sua vez, é baseado na visão de mundo da humanidade.
A fundamentação teórica de Marshal McLuhan (1964) mostra bem isso - que os meios de comunicação são extensões do corpo humano. Hoje com o computador cada vez mais popular, podemos dizer que a rede cognitiva e simbólica individual e coletiva expandiu. Isto porque por meio dos avanços tecnológicos, em especial, tornou-se possível potencializar o processo co-evolutivo da espécie humana por meio da comunicação. Desta forma, os filmes, por exemplo, funcionam como próteses audiovisuais do corpo humano. Num primeiro momento são usadas para registrar, conhecer o ambiente, o comportamento e a saga da sociedade. Num momento posterior, transmite esse conhecimento adquirido para outras pessoas, num processo de compartilhamento de consciência e emoções.

Logo, se o círculo vicioso de registro, montagem e exibição audiovisual passa a fazer parte de um processamento de informações, sensações, emoções captadas e sentidas na "realidade", pode certamente ser compartilhado entre roteirista, diretor e espectador. Mas e esse o conteúdo de tal compartilhamento seria realidade ou ficção?

Teoricamente, o cinema é por definição um processo ilusório. A partir do momento que é um conjunto de fotografias em movimento, compostas tecnicamente numa determinada velocidade (24 fotogramas por segundo) e que nossa percepção as absorvem como seqüenciais, um filme é resultado da fabricação do imaginário de quem o criou - roteiro, personagens, cenários, diálogos, iluminação e determinou enquadramentos assim e não assado. Talvez por isso, poderíamos afirmar que cinema é ilusão. Mas não basta divagarmos sobre o senso comum.

Não há como negar que ele detém uma relação íntima com o real. Ao longo de sua história, desenvolveu e construiu técnicas de retratação da realidade, capazes de envolver, seduzir e contextualizar o espectador na trama. Fazendo com que o sujeito, mesmo que inconscientemente, identifique-se com as angústias, os obstáculos quase que insuperáveis vividos pelas personagens... e assim suscitando uma reação à ação dramática... gerando em quem assiste expectativa, suspense, simpatia ou repulsa por um protagonista ou antagonista.

Portanto, cinema é ao mesmo tempo realidade e ilusão. Pois não existe nenhum filme que seja desprovido do real ou outro que seja totalmente ilusório. Mesmo porque para que aquele filme fosse produzido foi preciso que o roteirista escolhesse um entre outros tantos assuntos. Que o diretor visualizasse os melhores ângulos e enquadramentos. Exigindo dos atores uma atuação mais próxima da realidade no set de filmagem. Os atores, por sua vez, vivenciaram, incorporaram, deram vida aos personagens. Contribuíram, cada um ao seu modo, com traços de sua própria personalidade e/ou de outras pessoas pesquisadas. Por isso, um filme é realidade e ilusão - já que há ao longo do processo de construção, várias interferências na realidade concreta das coisas, e na vida real é bem mais ampla do que se vê na tela do cinema ou da televisão.

(1) ALVETTI, Celina. "O Sujeito no Audiovisual". Transcrição literal do seminário entregue à turma de Comunicação audiovisual: ênfase em jornalismo. PUC-PR, 15 - jun - 2002.

* Jornalista, autora do livro "Globo repórter: Um mediador entreo o olhar do homem e a realidade" e roteirista do filme "Vidas Conectadas". Pós graduada em Comunicação audiovisual pela PUC-PR.