A fronteira entre
realidade e ficção vem se tornando cada vez mais estreita.
Na indústria cinematográfica, transgride os limites entre
o real e o imaginário. Reflete lutas, vitórias, derrotas,
sonhos, realizações e esperanças. Desvenda fantasias,
angústias, injustiças e felicidades refletidas do povo.
Audaciosa, ultrapassa as fronteiras territoriais. Casa o real com o
imaginário. Estabelece relações de cumplicidade
dentro e fora da tela com o espectador.
Mas até que
ponto o cinema é realidade ou ficção? Estaria ele
retratando a realidade fidedigna? Seria ele um reprodutor quase mecânico
do real em que a câmera capta e transmite fielmente as relações
relevantes que existem na realidade? Ou o poder de construção
da realidade estaria concentrado nas mãos do cineasta que manipula
sua matéria-prima e transforma-a em um produto audiovisual segundo
sua visão artística e particular dos acontecimentos?
Primeiramente, torna-se
imprescindível analisarmos psicologicamente o efeito e a causa
que o cinema, seja ele baseado em realidade ou ficção,
exerce sobre os espectadores. Ele está ligado diretamente ao
imaginário das pessoas. Constrói o fato, história
ou estória. Dentro da sala de projeção quem assiste
relaxa, pensa na vida, se coloca no lugar dos protagonistas. Quando
o indivíduo vai ao cinema, curiosamente ele pratica uma espécie
de ritual. Escolhe um espaço no lugar escuro que separa o mundo
real do mundo imaginário, dividido apenas por uma cortina, como
se estivesse escolhendo a poltrona mais aconchegante.
Além disso,
o mecanismo psicológico inconsciente do espectador de cinema
leva-o a agir. Dentro daquela sala de projeção ele busca
a identificação individual e coletiva. Compartilha emoções
em relação ao filme que está vendo com os outros
espectadores. Sem dúvida nenhuma, há aqueles que preferem
a comodidade de estar em casa deitado no sofá, enrolado num cobertor,
comendo pipoca e assistindo um filme.
O lugar do ritual
pode mudar, é verdade. Mas em ambos os casos, seja na sala de
projeção ou em casa ele sente emoção, alegria,
tristeza, raiva e amor com o que está sendo projetado ali na
sua frente. Seja na tela da televisão ou do cinema, a partir
do imaginário do roteirista e do diretor do filme, o que se vê
transforma-se em "realidade" na mente de quem assiste. Felicidades,
ódios, vitórias, derrotas, injustiças, amores refletidos.
Mas até que ponto isso seria mesmo realidade? Não seriam
apenas fragmentos de realidade transformados em ficção?
Uma espécie de simulacro da vida real? Uma ilusão de realidade,
que Marcondes Filho chama de "universo tecnocêntrico"?
Ao resgatarmos um
pouco da história cinematográfica, verificamos que na
concepção dos Irmãos Lumière o cinema era
uma maneira de documentar momentos marcados no tempo, mas sem modificar
sua essência. A câmera deles retratava cenas corriqueiras
do cotidiano parisiense como a chegada de um trem, a saída dos
operários de uma usina e a refeição de bebê.
Enquanto isso Georges Meliès transformava a realidade fílmica
num mundo com leis próprias, que não necessariamente coincidiam
com o mundo real. Com sua objetiva fazia aparecer e desaparecer pessoas
e objetos. Muito antes de Armstrong pisar na lua, Melies já havia
apresentado, em 1902, as primeiras imagens do homem no território
lunar - sem nem ao menos desconfiar que isto realmente aconteceria um
dia. Este é um exemplo típico de que a ficção
pode confundir-se com a realidade. E aí, não estamos nos
referindo a fenômenos como premonição, cumprimento
de destino, profecia ou adivinhação. Muito pelo contrário.
Mas a sede do ser humano em ultrapassar os limites físicos e
tecnológicos, e neste caso também, casualmente ou não
o da ficção.
Sergei Eisenstein
e André Bazin, teóricos da linguagem cinematográfica,
trocavam farpas a respeito da realidade. Enquanto Eisenstein defendia
a manipulação pós-filmagem do material filmado
a partir da montagem, com a teoria dialética da montagem, Bazin
por sua vez, argumentava que o cinema era simplesmente a fotografia
em movimento, e que servia para realçar as relações
de espaço entre a fotografia e o real. Eisentein acreditava que
o filme só passaria a adquirir sentido pleno a partir da estruturação
do processo de montagem, em que o diretor provocaria um efeito de "colisão"
entre dois takes, a fim de obter um terceiro significado que transcendesse
a importância de cada fotograma isoladamente.
Realidade essa,
por sua vez, construída por meios audiovisuais como a TV e o
cinema, como conceitua Alvetti:
"O real que se vê não é mais o que parece o
real da realidade (o que diz o senso comum), mas um outro real, o da
representação. É como se o real que conhecemos
se desfizesse, diante de imagens articuladas de outro modo (conforme
o veículo) e fossem ressignificadas de acordo com um novo ideal
de realidade. Como se passasse a ser, também, produto das formas
de representação, que ajudam a constituir as relações
de cultura e poder na sociedade contemporânea "(1) .
Já na concepção de Giovaninni, os "novos meios
de comunicação" correspondem a novas formas de encantamento,
tanto no aspecto individual, quanto coletivo, sob a forma de hipnose.
Segundo ele, as aplicações generalizadas de informações
em doses maciças, são capazes de provocar mutações
psicossensoriais, e conseqüentemente culturais, que podem acarretar
em algumas descontinuidades de identidade antropológica.
A aldeia global
de McLuhan nos mostra que a sociedade compartilha emoções
através dos meios de comunicação, em especial,
os audiovisuais. Com a evolução tecnológica, ao
longo do tempo, eles foram moldando o modo de pensar do homem, cativando-o,
seduzindo-o, fazendo-o rir, chorar, sentir medo, pavor, solidariedade,
com imagens fragmentadas, inspiradas, baseadas ou recortadas do real.
Tudo isso através de signos audiovisuais que remetem aos espectadores
significados, fazendo com que eles construam seus universos cognitivos
interiores pautados no imaginário audiovisual que, por sua vez,
é baseado na visão de mundo da humanidade.
A fundamentação teórica de Marshal McLuhan (1964)
mostra bem isso - que os meios de comunicação são
extensões do corpo humano. Hoje com o computador cada vez mais
popular, podemos dizer que a rede cognitiva e simbólica individual
e coletiva expandiu. Isto porque por meio dos avanços tecnológicos,
em especial, tornou-se possível potencializar o processo co-evolutivo
da espécie humana por meio da comunicação. Desta
forma, os filmes, por exemplo, funcionam como próteses audiovisuais
do corpo humano. Num primeiro momento são usadas para registrar,
conhecer o ambiente, o comportamento e a saga da sociedade. Num momento
posterior, transmite esse conhecimento adquirido para outras pessoas,
num processo de compartilhamento de consciência e emoções.
Logo, se o círculo
vicioso de registro, montagem e exibição audiovisual passa
a fazer parte de um processamento de informações, sensações,
emoções captadas e sentidas na "realidade",
pode certamente ser compartilhado entre roteirista, diretor e espectador.
Mas e esse o conteúdo de tal compartilhamento seria realidade
ou ficção?
Teoricamente, o
cinema é por definição um processo ilusório.
A partir do momento que é um conjunto de fotografias em movimento,
compostas tecnicamente numa determinada velocidade (24 fotogramas por
segundo) e que nossa percepção as absorvem como seqüenciais,
um filme é resultado da fabricação do imaginário
de quem o criou - roteiro, personagens, cenários, diálogos,
iluminação e determinou enquadramentos assim e não
assado. Talvez por isso, poderíamos afirmar que cinema é
ilusão. Mas não basta divagarmos sobre o senso comum.
Não há
como negar que ele detém uma relação íntima
com o real. Ao longo de sua história, desenvolveu e construiu
técnicas de retratação da realidade, capazes de
envolver, seduzir e contextualizar o espectador na trama. Fazendo com
que o sujeito, mesmo que inconscientemente, identifique-se com as angústias,
os obstáculos quase que insuperáveis vividos pelas personagens...
e assim suscitando uma reação à ação
dramática... gerando em quem assiste expectativa, suspense, simpatia
ou repulsa por um protagonista ou antagonista.
Portanto, cinema
é ao mesmo tempo realidade e ilusão. Pois não existe
nenhum filme que seja desprovido do real ou outro que seja totalmente
ilusório. Mesmo porque para que aquele filme fosse produzido
foi preciso que o roteirista escolhesse um entre outros tantos assuntos.
Que o diretor visualizasse os melhores ângulos e enquadramentos.
Exigindo dos atores uma atuação mais próxima da
realidade no set de filmagem. Os atores, por sua vez, vivenciaram, incorporaram,
deram vida aos personagens. Contribuíram, cada um ao seu modo,
com traços de sua própria personalidade e/ou de outras
pessoas pesquisadas. Por isso, um filme é realidade e ilusão
- já que há ao longo do processo de construção,
várias interferências na realidade concreta das coisas,
e na vida real é bem mais ampla do que se vê na tela do
cinema ou da televisão.
(1) ALVETTI, Celina.
"O Sujeito no Audiovisual". Transcrição literal
do seminário entregue à turma de Comunicação
audiovisual: ênfase em jornalismo. PUC-PR, 15 - jun - 2002.
* Jornalista, autora
do livro "Globo repórter: Um mediador entreo o olhar do
homem e a realidade" e roteirista do filme "Vidas Conectadas".
Pós graduada em Comunicação audiovisual pela PUC-PR.
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