Chamamos "Música de Câmara" a qualquer formação
instrumental que se limite a poucos executantes. O termo vem da acepção
da palavra 'Câmara' ou 'Câmera' (da mesma origem que 'Câmera
fotográfica') como sinônimo de 'sala', 'quarto', genericamente
'compartimento ou aposento de uma casa'. É, portanto, literalmente
a música destinada a pequenos espaços, e por isso, a música
escrita para pequenas formações.
Sua história remonta
a períodos imemoriais, já que era um tipo de música
feito normalmente em casa, que por sua vez deram origem aos sarais, os
madrigais e até as serenatas, que no Brasil vieram a constituir
uma forma específica através do Choro.
A história da música registra principalmente a música
executada nos palácios e residências nobres, mas que seguramente
era praticada em ambiente caseiro desde há muito tempo, talvez
até mesmo na antiguidade clássica.
Diversas formações caseiras ficaram famosas, principalmente
no final do período barroco e início do classicismo. É
digno de nota o exemplo clássico das peregrinações
de amantes da música à casa de J. S. Bach, onde o abundante
cultivo da música e o notório talento da família
para esta arte, remontando de várias gerções anteriores,
fizeram de seus famosos sarais verdadeiros concertos, sendo conhecidos
por toda a Alemanha.
Durante o classicismo, foi informalmente composto o mais nobre quarteto
de cordas da história, quando Joseph Haydn visitava Viena. Ele
reunia-se com seus amigos e costumavam tocar, tendo ele próprio
como Primeiro violino, Karl Ditters von Dittersdorf ao Segundo violino,
Wolfgang Amadeus Mozart à viola e Johann Baptist Vanhall ao violoncello.
Formações de Câmara
Até o período barroco, mais de 20 músicos já
era uma orquestra inteira, mas, a partir do classicismo, com o aumento
da orquestra, este número passou a ser camerístico. Não
existe um padrão que determine exatamente a quantidade limite de
músicos para a música de câmara, número este
que ultrapassado conferirá à música um caráter
orquestral. Em geral opta-se pelo bom senso, mas podemos dizer, grosseiramente,
que entre 20 e 40 músicos, temos uma 'orquestra de câmara',
e, a partir de 40 músicos já se trata de uma orquestra sinfônica,
ainda que pequena. A formação camerística pode ser
desde dois músicos (sonatas para violino e piano, por exemplo),
denominado dueto, três (trio), quatro (quarteto), e daí pra
frente, segue-se quinteto, sexteto, septeto, octeto, noneto e orquestra
de câmara (dez ou mais músicos). Com execeção
do quarteto, que tem uma formação padronizada (dois violinos,
viola e violoncelo, o chamado Quarteto de Cordas), os demais necessitam
de uma discriminação específica dos instrumentos
utilizados, já que eles podem variar bastante.
O quadro abaixo nos dá um resumo das principais formações
camerísticas, apesar de haver variações:
|
Formação
Clássica
|
Variações
mais comuns
|
Exemplos
|
Duetos
|
Piano
+ outro instrumento (flauta, violino, cello, voz, etc..) |
Dois instrumentos que não seja com piano |
Lieds
de Schubert; sonatas para violino e sonatas para cello e piano de
Beethoven (op.69 e 102) |
Trios
|
Piano,
Violino e Cello |
2
violinos e viola; 2 violinos e cello; flauta, violino e cello |
Trio
em Dó op.87 de Brahms; London Trios de Haydn (flauta, violino
e cello) |
Quartetos
|
2
Violinos, Viola, Cello |
Piano
+ trio (quarteto com piano) |
Quartetos
de Haydn, Mozart, Schubert e Beethoven, além de todo o repertório
romântico e moderno (Schumann, Brahms, Dvórak, Bartók) |
Quintetos
|
Piano
+ Quarteto |
Piano,
violino, viola, cello e baixo;
2 violinos, viola, 2 cellos |
Quinteto
'A Truta' de Schubert (com contrabaixo); Quinteto op.44 de Schumann;
Quinteto para Clarinete de Mozart e Brahms (op.115) |
Sextetos
|
2
violinos, 2 violas, 2 cellos |
Inclusão
do piano ou instrumento de sopro |
sextetos
de Brahms |
Quando se diz, por exemplo, "quinteto para piano" (como o famoso
Quinteto op.44 de Schumann), significa que é um quarteto
de cordas mais um piano. O mesmo se dá com o Quinteto para clarinete
de Mozart. Trios, quando nada é especificado, são para piano,
violino e violoncelo. Sextetos variam bastante. Em geral são dois
violinos, duas violas e dois violoncelos, mas alguns utilizam-se de um
contrabaixo no lugar do segundo cello, ou ainda, instrumentos de sopro.
Daí pra frente a formação é livre e freqüentemente
baseia-se no quarteto como base e com o acréscimo de outros instrumentos
diversos. O Octeto clássico, por exemplo, nada mais é que
a união de dois quartetos, como o Octeto em Mi bemol maior
de Mendelssohn.
Princípio sonoros
A música de Câmara é certamente um dos gêneros
mais importantes, não só pelo seu imenso repertório,
mas também porque é a base de construção arquitetônica
de toda a música. Em outras palavras, uma grande sinfonia nada
mais é do que uma expansão sonora de uma formação
camerística, pois os princípios acústicos que costumam
nortear a disposição orquestral são os mesmos, colocados
de maneira mais clara na música de Câmara. É notório,
por exemplo, o hábito de compositores chamados 'grandes orquestradores'
em trabalhar primeiramente suas obras em pautas de 4 vozes, como um quarteto,
e depois expandindo a instrumentação. Richard Strauss e
Mahler por vezes tem reconhecidos em certas obras um caráter camerístico,
não obstante as imensas orquestras que exigem.
Assim, pode-se dizer que a música de câmara procura utilizar
uma lógica de distribuição que não raras vezes
se resume em duas vozes agudas, uma voz média e uma voz grave,
que é o princípio do quarteto de cordas. Por vezes, as intenções
de um compositor exigem mais vozes graves (como o Quinteto em Dó
D.956 de Schubert, com 2 violoncellos) ou vozes médias, com duplicação
das violas. Quando se pretende escrever para outros instrumentos, como
metais ou madeiras, a regra é a mesma: Flautas e Oboés fazem
as vozes agudas, Clarineta as médias e Fagote as graves, assim
como trompetes, trompa e trombone / tuba no caso dos metais. A quantidade
de timbres de cada tessitura (aguda, média e grave) é um
fator proeminente para o resultado sonoro em termos de equilíbrio
e caráter.
Quarteto de cordas
De longe, o mais explorado gênero na música de câmara
foi o quarteto de cordas, pela clareza da apresentação das
idéias e pelo equilíbrio da disposição sonora,
considerado talvez o mais perfeito até hoje. Tanto que Mozart dedicou-lhes
uma das melhores facções de sua prolífica inspiração,
e Beethoven escolheu o quarteto como expressão derradeira de sua
música. Praticamente todos os compositores românticos, pós
românticos e até modernos exploraram o gênero com uma
seriedade ímpar; alguns cuja importância da produção
no gênero chega a rivalizar em popularidade com a produção
sinfônica, não obstante a maior difusão desta.
O quarteto teve sua origem no final do período barroco, com algumas
experiências de Carl Phillip Emanuel Bach, notório filho
de Johann Sebastian, que consolidou a forma-sonata e a distribuiu de maneira
intuitiva por vozes agudas, médias e graves, mas ainda com uma
certa prolixidade timbrística. Atribui-se, assim, a verdadeira
'invenção' do gênero a Joseph Haydn, que trabalhou
sob a proteção do riquíssimo príncipe húngaro
Esterházy. Atento às novidades da produção
musical de seus colegas, Haydn procurou adaptá-las à realidade
dos recursos da corte, bem como dar uma vazão mais coerente à
sua extraordinária capacidade de invenção melódica,
e assim procurou sempre equilibrar os instrumentos segundo suas idéias
musicais. Produziu para sua corte uma enormidade de obras, e muitas delas
para serem executadas em ambientes fechados, pequenas câmaras do
palácio, onde pode experimentar diversas formações
instrumentais. Dessas experiências práticas em composição
e execução de obras, nasceram os princípios da sinfonia
e do quarteto, logo difundidos por toda a Europa e largamente usufruídos
pelos mais diversos compositores.
Os primeiros quartetos de Haydn, os op.1 e op.3, são ótimos
exemplos do início do desenvolvimento deste gênero, em que
ainda predominam a tradição do Primeiro Violino como linha
melódica principal, mas não sem certas ousadias típicas
de uma experimentação, em que pode ser observada uma nítida
construção com pouca solidez. Já os quartetos op.20
possuem extraordinária força e coesão de todas as
idéias, desenvolvendo plenamente a polifonia dos timbres e a estrutura
da forma-sonata. Pode-se notar nestes quartetos como os demais intrumentos
(Segundo Violino, Viola e Cello) já participam muito mais ativamente
da construção melódica, não mais como mero
acompanhamento.
Seus últimos quartetos (e Haydn escreveu mais de uma centena deles,
dos quais chegaram a nós por volta de 80), principalmente os op.64
e op.76 são os pontos altos da literatura musical clássica,
que ainda possuem o requinte de incorporar uma ampla desenvoltura e liberdade
no desenvolvimento melódico, que o mestre aprendeu com seu admirador
Mozart.
Quarteto
de Cordas Franz Schubert, Viena
|
A
escrita de câmara foi explorada por quase todos os compositores
(a única grande exceção foi Berlioz, que nunca
escreveu nada para instrumento solo ou para conjuntos de câmara),
dado o seu potencial de promover um discurso musical altamente claro
e objetivo, sem os efeitos timbrísticos de uma massa orquestral.
A música de câmara (ou mesmo os solos) deixa o compositor
nu perante o material musical, não há por onde esquivar-se
de sustentar um discurso musical convincente e bem arquitetado. |
Muitas vezes a escrita sinfônica, por seu colorido timbrístico,
esconde algumas falhas de coerência formal e coesão semântica,
coisa que fica absolutamente evidente na música de câmara,
onde o compositor não tem onde se apoiar, a não ser na própria
música. Essa limpidez sonora é, além de um excelente
exercício de escrita, um excelente treino de escuta, além
da beleza infinita dessas obras.
copyright©2002
Filipe Salles
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