Considerando, apesar de controvérsias modernas, o compositor como
elemento fundamental e imprescindível, através dele a música
erudita se vale de uma série variável de atributos para
se manifestar. Podemos resumir tais atributos, do ponto de vista formal,
em três: Estrutura, expressão e formação timbrística.
Com estrutura, entendo a arquitetura de construção,
utilizada para compor a narrativa lógica; com expressão
entendo os elementos harmônicos e melódicos (incluindo ritmo,
dinâmica, andamento e intensidade) reunidos dentro do discurso semântico;
e com formação timbrística, o instrumento ou conjunto
instrumental escolhido pelo compositor. A formação timbrística
é, na verdade, uma ramificação da expressividade,
já que o instrumento ou grupo de instrumentos eleitos para desencadear
um discurso musical qualquer vão interferir profundamente em seu
caráter semântico. Cada instrumento tem particularidades
que podem ser exploradas de inúmeras maneiras.
Em termos de estrutura, existe uma conceito que precisa ser definido:
Existe a arquitetura propriamente e existem os tijolos, que são
estruturas menores, e que juntas construirão os edifícios
musicais. Esses tijolos são a forma da música. Embora
sejam flexíveis, partem todas de determinados padrões que
são conhecidas como "Formas Musicais". São elas
que possibilitam a visão discursiva completa de uma obra, e que,
se expandidas, sustentam-se sem problemas sobre longas narrativas sinfônicas
como por exemplo, uma sinfonia de Mahler (que chega a durar mais de uma
hora e meia). Vejamos algumas formas:
Forma Binária
A forma binária é uma das mais simples da música,
e constitui-se de apenas duas seções, chamadas A e B. Cada
seção geralmente é composta de número igual
de compassos e possuem a mesma tonalidade, sendo muito freqüentes
nas danças típicas da suíte barroca, como minueto
ou a sarabanda.
Um exemplo de forma binária é o minueto da Música
para Reais Fogos de Artifício de G.F. Haendel. Pode-se
notar as duas seções encadeadas e, ao término das
duas, há um ritornello (retorno ao início), mas com
um número maior de instrumentos.
Forma Ternária
Esta é muito mais utilizada que a binária, e é também
chamada de A-B-A. Como se pode deduzir, ela é constituída
de 3 seções, e não duas. Apenas a 3a. seção,
a última, nada mais é que a repetição da primeira.
Ou seja, são duas seções temáticas, e a repetição
da primeira. A segunda seção neste caso é uma seção
constrastante, geralmente em outra tonalidade, como a relativa menor da
tônica, ou ainda outra. Apesar de parecer desinteressante por se
tratar de uma repetição, a forma ternária é
muito usada, até mesmo na música popular e na música
folclórica. Muito pelo fato da seção central ter
um caráter contrastante com a primeira, é até intuitivo
que ela volte ao final, encerrando a idéia. Grande parte
dos movimentos lentos das sinfonias e concertos, assim como os 'scherzos'
são escritos em forma ternária. Um bom exemplo é
o Scherzo da 3a. Sinfonia de Beethoven, a Eroica.
Minueto e Trio
A origem do minueto remonta da dança francesa homônima, de
ritmo ternário (3/4) e andamento moderado, tipicamente aristocrática,
e que foi muito popular na corte de Luis XIV. Diferentemente do minueto
isolado, o minueto e trio constitui-se numa forma específica. Isso
porque a inclusão de um trio faz com que ele se porte como uma
forma ternária, mas organizada de maneira mais complexa:
Em sua estrutura, o minueto é como uma forma ternária, mas
que em cada seção, há uma outra pequena forma ternária
incluída. Há portanto, 3 formas ternária dentro de
uma:
Minueto A1 (a/b/a) - Trio (c/d/c) - Minueto A2 (a/b/a)
O trio era originalmente, como o nome denuncia, executado por 3 instrumentos
apenas, numa seção que fazia constraste à primeira.
Mas, com o tempo, o trio foi deixando de ser usado literalmente, e é
normalmente composto e executado com mais instrumentos. Entretanto,
ainda pode-se notar nele um caráter camerístico, pois em
geral são pequenos grupos de instrumentos diversos que o executam.
O minueto foi muito utilizado como o terceiro andamento das sinfonias
clássicas, e pode-se notar sua estrutura com nitidez e maestria
em obras como a Sinfonia no.104 'London' de Haydn, ou nas 3 últimas
sinfonias de Mozart (39, 40 e 41)
Rondó
O Rondó vem da dança francesa 'Rondeau' (literalmente 'Roda'),
de caráter circular, que também fazia parte da suíte
de danças barroca, em que um tema é sempre retomado depois
de passar por uma série de variações. O rondó
seria assim: Tema A - Tema B - Tema A - Tema C - Tema A e final (A-B-A-C-A).
Cada seção intermediária, ou episódio, possui
algum tipo de constraste à primeira seção A. Em geral,
os temas apresentados nos episódios do rondó são
novos, de tonalidade, dinâmica e ritmo diferentes que o da seção
principal. O rondó é um desdobramento da forma ternária,
já que também lida com repetição e contraste.
Em termos práticos, o número de episódios de um rondó
pode ser infinito, e realmente encontramos exemplos de rondós com
4, 5 ou mais episódios. Mas eles tendem à monotonia com
extrema facilidade, razão pela qual o rondó de 5 seções
(3 episódios) é o mais visitado.
O Rondó foi incorporado à forma sinfônica pelo próprio
Haydn, sendo geralmente disposto no final de uma sinfonia. Podemos ouvir
exemplos típicos de Rondó nos últimos movimentos
dos concertos clássicos, como os de Beethoven para piano, principalmente
os 3 primeiros, bem como nos de Mozart e Haydn.
Tema-e-Variações
Esta é uma forma mais livre, e como o nome prediz, trata-se de
um tema que sofrerá variações constantes, cujas seções
também podem ser infintas dependendo da capacidade do compositor
em variar o tema. Diferentemente das formas anteriores, o tema e variações
sustenta-se num único tema, ou seja, todas as seções
são desdobramentos deste primeiro tema, mas a maneira de contrastá-lo
pode variar enormemente.
São exemplos típicos de tema-e-variações as
variações Diabelli de Beethoven, as Variações
Goldberg de Bach, e mais modernamente, as variações
sobre um tema de Haydn, de Brahms, as Variações Enigma
de Elgar e o Don Quixote de Richard Strauss.
Forma-Sonata
A forma sonata
é uma das mais complexas e bem acabadas da música. Talvez
metade da música erudita já escrita no mundo tenha na forma-sonata
sua estrutura arquitetônica solidamente edificada. É uma
forma que surgiu no classicismo, desenvolvida principalmente pelos filhos
de J.S. Bach, notadamente por Carl Phillip Emanuel, e consolidada pelo
uso por vários outros autores, como Stamitz, Boccherini, Dittersdorf
e principalmente, Joseph Haydn, autor de nada menos que 104 sinfonias
hoje conhecidas e consideradas autênticas, mais um número
elevadíssimo de música de câmara, sonatas para piano,
óperas e oratórios. Sua produção instrumental
é mais relevante que a vocal (embora esta não deixe a desejar
em termos qualitativos) e a grande maioria de suas obras se utilizam da
forma-sonata.
Ela não serve apenas de estrutura para sonatas, mas para qualquer
formação possível, duetos, trios, quartetos, quintetos,
aberturas, concertos e sinfonias. Por aí bem se vê que seu
uso foi (e ainda é) amplo, e, curiosamente, mesmo seguindo um padrão
rígido de disposição, dificilmente é monótono.
É uma das formas mais perfeitas que já inventaram. Como
ela serve, numa primeira análise, a qualquer formação
instrumental, podemos concluir que a diferença entre uma sonata
e uma sinfonia, depois do classicismo, é apenas quanto ao número
de instrumentistas.
A forma-sonata clássica descende diretamente da abertura da suíte
barroca e se estrutura da seguinte maneira:
I) Uma introdução
lenta, mas não obrigatória, muitos compositores prescindem
dela;
II) Exposição do tema principal (A), rápido daí
em diante;
III)Exposição do segundo tema (também conhecido como
contra-tema, B) geralmente em constraste com o primeiro;
IV)Repetição desde a exposição do tema principal
(A);
V) Desenvolvimento: Uma das partes mais elaboradas da sonata, onde os
dois temas surgem muitas vezes em contraponto com tonalidades diferentes
e variações rítmicas diversas, gerando certa instabilidade
e como que "pedindo" a volta da tonalidade e do tema principal;
VI)Reexposição do tema e contra-tema (A e B) com variações
e preparação para o final, conhecido como coda;
VII) Coda. Reafirma o tema na tonalidade do início e termina na
tônica;
Este esquema
pode ser reduzido em:
Exposição
/ Desenvolvimento / Reexposição / Coda
Grande parte
dos primeiros movimentos das sonatas e sinfonias clássicas, românticas
e até modernas seguem, rigorosamente ou não, este esquema.
Exemplos:
Joseph Haydn - Várias Sinfonias, em especial as últimas,
94, 96, 100-104.
W.A.Mozart - Sinfonias no.40 e 41 <Júpiter>
Beethoven - Sinfonias (todas as 9, mais nítidas nas 2 primeiras)
Schubert - Sinfonias (todas, mas nitidamente as 4 primeiras)
Schumann - Sinfonia no.1 < Primavera>
Brahms - Sinfonia no.1
Dvórak - Sinfonia no.9
Estruturas:
Agora pensamos: como estruturar todas essas formas? O que temos até
agora são tijolos e cimento, é preciso uma estrutura arquitetônica
que possibilite, com esses elementos, construir edificações
estéticas, grandes catedrais sonoras. Para isso, existem algumas
estruturas específicas, como a Sinfonia, o Concerto, a Suíte,
o Poema Sinfônico, a Sonata, a Fantasia, entre diversas outras.
Sobre elas, existem alguns equívocos de ordem prática bastante
incidentes no cenário musical brasileiro de música erudita.
Como nós brasileiros em geral temos pouca ou nenhuma vivência
neste campo, a maioria das pessoas não entende a disposição
formal de um concerto ou uma sinfonia, cometendo não raras vezes
a indelicadeza de aplaudir antes do término de uma obra. Pois bem:
Assim como existem determinados gêneros literários, como
a narrativa, a dissertação, e, dentro deles o romance, o
conto, a novela, o poema, o ensaio o artigo, etc..., também na
música existem estruturas que condicionam a arquitetura da narrativa
para possibilitar uma coesão maciça entre os elementos dispostos
e, conseqüentemente, uma coerência narrativa no discurso musical
- tal qual a literatura. Vejamos como elas funcionam:
Suíte
A suíte é literalmente a 'sucessão de várias
danças estilizadas' (Otto Maria Carpeaux). Trata-se de um gênero
tipicamentre barroco e que fazia uma espécie de contraponto ao
gênero operístico, tendo como foco a dança e não
o canto dramatizado. Este tipo de música nada mais era que uma
reunião de diversos estilos folclóricos de danças
típicas e populares de várias regiões da Europa e
que eram dispostas segundo uma narrativa que alinhava fórmulas
rítmicas e andamentos intercalados. Cada seção de
uma suíte tem origem nestas danças e levam seu nome:
Allemande, Courante, Sarabande, Gigue (ou Giga), Bourée,
Menuet (ou Minuet, o famoso minueto), Rondeau (o Rondó),
Gavotte, Polonaise, Badinerie, Passepied, entre outros.
Todas essas danças possuem fórmula rítmica e andamento
específicos, geralmente em forma binária ou ternária,
de maneira que reunidas, formam um conjunto coeso e harmônico. A
suíte barroca mais típica, também chamada de Suíte
Inglesa, era a Allemande, Courante, Sarabande, e a Gigue, por vezes interpolados
por Menuets, Gavottes, Passepieds ou Bourées, e foram muito usadas
por J.S. Bach. Mas nem todos os compositores gostavam desta disposição,
e procuraram o mais das vezes, conforme suas origens, dispor outras seqüências
dessas danças. Portanto, existem diversos estilos de suítes,
sendo que as mais conhecidas são as Inglesas, Francesas, Alemãs
(também chamada de Partita) e as Italianas, cada uma com
uma disposição específica.
Uma parte importante a comentar a respeito da Suíte é que
este gênero não iniciava com uma dança propriamente
dita, mas sim com uma Abertura, ou Ouverture. A Abertura da suíte
é bem mais complexa e define nitidamente seu estilo, sendo que
a forma-sonata se originou exatamente como desenvolvimento de sua estrutura.
Além do mais, por vezes a Suíte é também chamada
de Ouverture, como sinônimo, apesar de serem, na origem,
coisas distintas.
A Abertura não era um gênero destinado apenas à suíte,
mas também como abertura de óperas e oratórios. Assim
como os estilos da suíte, a abertura que as antecedia também
tinha estilos diversos, e sua estrutura mudava conforme o estilo adotado.
Por exemplo, a abertura Francesa era disposta com 3 andamentos encadeados
da seguinte maneira:
Lento - Rápido (tema fugato) - Lento (recapitulação
conclusiva)
Exemplos notáveis desse tipo de Abertura em Suítes são
as famosas 4 Suítes para Orquestra de J.S. Bach
Já a abertura Italiana invertia as seções:
Rápido - Lento - Rápido
Este tipo de abertura foi desenvolvido por Alessandro Scarlatti
e tornou-se o precursor da forma-sonata.
Havia também a abertura Inglesa, que possui a seguinte disposição:
Lento - Rápido - Lento - Rápido (recapitulação
conclusiva)
Um bom exemplo dessa abertura é a Música para os Reais
Fogos de Artifício de Georg Friedrich Haendel, que
é, na verdade, uma suíte.
Sinfonias,
Sonatas e Concertos
Como mencionamos anteriormente, a forma-sonata é utilizada apenas
para sustentar a arquitetura musical do Primeiro Movimento de um concerto
ou sinfonia. Os demais, como o movimento lento, o terceiro, quarto e até
quinto movimentos, podem ser escritos em outras formas. Portanto, o que
determina a condição de sinfonia não é apenas
a utilização da forma-sonata, mas também sua disposição
na ordem dos movimentos. E aí entra outro conceito: Os movimentos.
Afinal, o que são eles? Considerando um desenvolvimento histórico,
que remonta de formas mais antigas, incluindo a suíte de danças,
sempre foi comum a divisão de uma determinada obra em movimentos.
São partes separadas de uma única obra, definidas pela diferença
de ritmo e andamento que, juntas, compõe um todo orgânico
preparado para acentuar a consistência temática e primar
pelo equilíbrio previamente imaginada pelo compositor.
Consta que nos primórdios da formação musical polifônica,
era comum a divisão em partes de uma determinada obra. A própria
suíte denuncia tal costume, sendo ela uma seqüência
coerente de danças variadas que possuiam uma estrutura tonal compatível.
Assim, as danças seguiam um protocolo de coesão harmônica
- todas eram escritas na tônica da abertura ou na dominante correspondente
- que as mantinha como um todo orgânico. A sonata clássica
herdou, portanto, uma formação similar de disposição,
que são justamente os movimentos de uma sonata, sinfonia ou concerto.
Seguindo o vácuo da estrutura da suíte, uma sonata clássica
tem um primeiro movimento mais longo escrito na forma-sonata acima descrita,
e a natural propensão é que se fizesse seguir a este um
movimento lento. Assim, os segundos movimentos são escritos em
forma-sonata (um pouco simplificada, sem seção de desenvolvimento,
ou ainda no estilo A-B-A, que é um tema, contra-tema e volta ao
tema), mas em andamento lento. Segue-se um minueto, este sim remanescente
óbvio da suíte, pois trata-se de uma dança, com uma
seção central denominada Trio. E, para concluir, um movimento
rápido e breve geralmente na forma rondó.
Tem-se, então, o esquema formal clássico de uma sinfonia
ou de uma sonata:
I)Um movimento
em forma-sonata longo e em andamento rápido, precedido ou não
de uma introdução lenta
II) Um movimento longo em andamento lento
III)Um minueto e trio
IV) Um rondó, curto e rápido
A sonata,
propriamente, é escrita geralmente para um único instrumento,
e a preferência dos compositores para tal forma recai nitidamente
sobre o piano, que possibilita o uso da harmonia como elemento narrativo
fundamental, além da dinâmica rica, em conjunto com o material
melódico. Uma sinfonia nada mais é que uma sonata escrita
para, ao invés de um único instrumento, uma orquestra inteira.
E um concerto é uma espécie de sonata para algum instrumento
qualquer (piano, violino, violoncelo, flauta, etc..) com acompanhamento
orquestral. O instrumento privilegiado no concerto é chamado de
solista.
Já o concerto, prescinde do minueto, tendo apenas três movimentos
(existem concertos com quatro movimentos, mas são raríssimos.
O melhor exemplo deles é o Segundo Concerto para piano de
Johannes Brahms), estruturando-se assim:
I)Um movimento
na forma sonata longo, onde o solista entra após a exposição
dos temas pela orquestra, em andamento rápido
II) Um andamento lento
III) Um rondó.
Os concertos
costumam incluir ainda uma cadência, ao final de cada movimento,
que é uma parte ad libitum, ou seja, o compositor deixa o solista
livre para improvisar sobre os temas e mostar seu virtuosismo, ainda que
algumas cadências, como as dos concertos de Beethoven, tenham sido
escritas posteriormente pelo próprio compositor. No caso de Beethoven,
a superioridade delas é tão notória que dificilmente
algum solista tem a ousadia de inventar alguma outra.
A lógica
deste tipo de estrutura visa à solidificação e ao
equilíbrio de uma idéia musical, e tal arquitetura não
deve ser negligenciada, a não ser em casos específicos ,
sob a pena da incompreensão do discurso musical enquanto um contínuo
orgânico. Não posso deixar de protestar, portanto, sobre
o comércio de gravações contendo movimentos isolados
de obras assim estruturadas, pois um único movimento não
é a obra toda, é apenas parte dela, e tal prática
depõe negativamente contra uma apreciação completa,
impedindo a catarse proposta pelo compositor em sua plenitude.
Pela mesma razão não se deve aplaudir, no caso de uma execução
ao vivo, antes do término completo da obra, ou seja, da audição
de todos os seus movimentos. Tal prática, muito comum no Brasil
por falta de informação e educação musical,
não é nada além do espelho de nossa ignorância
cultural.
copyright©2002
Filipe Salles
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