Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002
2.2. O
cinema e a m�sica
A m�sica de cinema � um exemplo bastante significativo deste aspecto de
inter-relacionamento, uma vez que � poss�vel mudar substancialmente o
car�ter de uma imagem escolhendo-se diversas m�sicas para seu acompanhamento.
H� portanto, certas medidas de car�ter que est�o presentes na m�sica,
pois do contr�rio s� sentir�amos a m�sica em fun��o da imagem, e n�o o
oposto. Mas a evolu��o do conceito 'm�sica de cinema' passou por diversas
fases, e n�o foi simplesmente inventada, de uma hora para outra, a trilha
sonora. Basta olhar sua hist�ria:
O cinema, arte t�pica do s�culo XX por ter nascido na entrada do referido
s�culo, � uma das poucas em que podemos precisar sua origem. Embora seu
sistema tivesse antecedentes imemoriais (o pr�prio desejo do homem em
realizar seu simulacro mais perfeito poss�vel), nenhum historiador ignoraria
que a m�quina de proje��o individual inventada por Edison, o Kinetosc�pio,
foi o precursor da proje��o externa coletiva do Cinemat�grafo dos irm�os
Lumi�re (nota #4), que se utilizava
basicamente de princ�pios f�sicos h� muito conhecidos, como a c�mara escura,
a proje��o luminosa, e outros mais recentes, como o mecanismo da m�quina
de costura e a pr�pria fotografia. E o som programado para acompanhar
imagens projetadas j� existia mesmo antes da inven��o destes aparelhos,
como atesta Parkinson (1995) a respeito do Praxinosc�pio de Reynaud.
Segundo o autor, o franc�s �mile Reynaud (1844-1918), inventor do praxinosc�pio
(aparelho que precedeu o cinemat�grafo), desenvolveu uma forma de projet�-los
com um tambor de espelhos no centro da m�quina, que refletia os desenhos
do praxinosc�pio para uma tela externa e simulava uma das primeiras m�quinas
de proje��o cin�tica, e que ele chamou de Pantomimes Lumineuses
(Vide figura 3). Parkinson exemplifica a quest�o da import�ncia do som
no cinema atrav�s do exemplo de Reynaud: "Os pioneiros do cinema nunca
tiveram a inten��o de fazer seus filmes silenciosos. As 'Pantomimes Lumineuses'
de Reynaud, por exemplo, foram acompanhadas por m�sicas especialmente
compostas por Gaston Paulin." (Parkinson, 1995: 83). Em outras palavras,
o cinema sempre foi sonoro.
|
|
FIGURA
3: Émile Reynaud e seu aparelho praxinoscópio, em
que projetava suas pantomimas luminosas
|
Cartaz
publicitário das Pantomimas Luminosas
|
Apesar da nomenclatura comum que designa os filmes produzidos antes de
1928 como sendo "mudos" (silent movies), na verdade, ela diz respeito
apenas a uma quest�o t�cnica: antes desta data (a inven��o do vitaphone),
o som n�o tinha nenhum v�nculo com a pel�cula projetada, e por essa raz�o
toda a proje��o demandava a presen�a f�sica de um ou v�rios m�sicos, quando
n�o tamb�m um narrador ou dubladores. Mas o som no cinema j� havia sido
sincronizado muito antes: em 1889, o kinetosc�pio de Edison havia sido
adaptado para funcionar em sincronismo com o fon�grafo. � interessante
sublinhar o quanto a id�ia de reproduzir som estava (ou sempre esteve)
associada � id�ia de reproduzir imagens, uma vez que o pr�prio Edison
considerava o kinetosc�pio como uma conseq��ncia direta do fon�grafo,
e provavelmente uma id�ia tenha levado � outra (idem 1995:82).
A possibilidade de sincronismo e reprodu��o do som concomitante � imagem
era poss�vel no kinetosc�pio na medida em que as m�quinas de proje��o
eram individuais e o som reproduzido em fones de ouvido. Quando Auguste
e Louis Lumi�re combinaram o princ�pio do kinetosc�pio � lanterna m�gica
e inventaram o que chamamos propriamente de cinema, a proje��o p�blica
em tela grande demandava uma amplifica��o e reprodu��o sonora que a tecnologia
da �poca ainda n�o tinha condi��es de resolver. Em pequenas salas de exibi��o,
entretanto, as experi�ncias de sincronismo e reprodu��o do som no cinema
foram bem-sucedidas antes mesmo da virada do s�culo. Na Exposi��o de Paris
de 1900, foi apresentada uma vers�o de m�quina projetora capaz de sincronizar
o fon�grafo, inventada por Gaumont, o Chronom�gaphone. Pouco depois,
outras vers�es foram sendo lan�adas, denominadas Phonorama, Vivaphone
e Cinephonograph. Entretanto, a necessidade de trocar o disco no
meio da proje��o, e o desgaste do cilindro de cera fizeram com que estes
sistemas n�o tivessem vida longa. Na mesma medida, o cinema come�ou a
ser projetado para p�blicos cada vez maiores, e que demandavam, consequentemente,
salas mais amplas, e o som sincronizado foi radicalmente substitu�do pela
performance musical ao vivo.
 |
 |
FIGURA
4: Dois cartazes publicitários de projeções sonorizadas,
o Chronomégaphone e o Biophonógraphe, do início
do século XX. |
De in�cio, a m�sica que acompanhava uma proje��o era executada por um
pianista (ou pequeno conjunto), cuja responsabilidade era a de refor�ar
o potencial dram�tico da imagem, enfatizando o clima das cenas. A maioria
destes primeiros pianistas trabalhava sobre um repert�rio conhecido, m�sica
de compositores familiares ao grande p�blico, como Schubert, Chopin, Tchaikovsky
e Johann Strauss Jr, ou ainda temas de can��es populares. Quando executadas
durante sess�es que se mantinham dentro do alcance de controle dos est�dios
produtores, havia um roteiro para a trilha sonora, um repert�rio espec�fico
que o pianista deveria seguir. Mas, na expans�o da ind�stria cinematogr�fica,
muitas proje��es em cidades distantes tinham que contar com o bom senso
e a capacidade de improvisa��o dos m�sicos, at� que a id�ia de criar m�sica
especificamente para o cinema foi posta em pr�tica em larga escala. A
m�sica em tal situa��o ainda era muito mais uma redund�ncia da imagem
do que propriamente um elemento dram�tico no sentido narrativo, uma esp�cie
de �nfase ret�rica. O m�ximo de sofistica��o era conseguido quando alguns
cineastas, especialmente europeus, encomendavam m�sica para acompanhar
seus filmes a compositores consagrados, como O assassinato do Duque
de Guise (1908), de Henri Lav�dan, com m�sica de Saint-Sa�ns, considerada
a primeira 'm�sica original' composta para filmes.
Mas o custo de uma produ��o cinematogr�fica era substancialmente aumentado
na sua exibi��o, uma vez que deveria haver pelo menos um m�sico contratado
que pudesse acompanhar cada proje��o, pr�tica que come�ou a se tornar
comercialmente desfavor�vel quando os filmes passaram a adotar o padr�o
de longa-metragem, com mais de uma hora e meia de proje��o. Embora os
sistemas de sincronismo j� no final da d�cada de 1910 tivessem se aperfei�oado,
sendo inclusive testadas as proje��es com som gravado na pel�cula, somente
em 1927 o sistema de sincronismo, ainda via fon�grafo, foi implementado
comercialmente. Era o sistema Vitaphone, (Fig. 5) uma enorme e
desajeitada m�quina de proje��o que imortalizou o filme The Jazz Singer
(1927), com Al Jonson, se utilizando de um disco de 78 rota��es, um
pouco melhor que aquele usado no fon�grafo de Edison. Suas inconveni�ncias
eram grandes, a baixa qualidade da amplifica��o da �poca, o chiado do
disco e a eminente possibilidade do disco riscar com o tempo e tirar o
filme de sincronismo. Mas foi um sistema pioneiro que, prescindindo do
m�sico in presentia, fez com que toda a conquista dos m�sicos at�
aquele momento precisasse recuar aos prim�rdios do som para o cinema,
repensar a fun��o dram�tica do som, que agora poderia incluir n�o s� m�sica,
mas tamb�m di�logos e ru�dos.
Figura
5: o Vitaphone
|
Mas, j� em 1930, os est�dios, vislumbrando o enorme potencial financeiro
que os filmes sonoros poderiam render (estando os EUA na fase mais negra
da depress�o ap�s o crash da bolsa de 1929), optaram pelo sistema Movietone,
ou grava��o na pr�pria pel�cula, atrav�s de uma c�lula fotoel�trica que
transformava as ondas sonoras em impulsos luminosos, registrando o som
fotograficamente, t�cnica que ainda hoje � a mais comum na sonoriza��o
de pel�culas.
Entretanto, mesmo com tal recurso, as experi�ncias com o som come�aram
de maneira bastante comedida, primeiro por causa da inexperi�ncia dos
atores em tratar com di�logos. Muitos deles, na fase muda do cinema, n�o
tinham sequer forma��o teatral, pois bastavam-lhes determinadas condi��es
f�sicas para compor personagens, e a maioria mostrou-se incapaz de declamar
textos, obrigando os est�dios a reciclar todo o contingente de astros,
o Star System hollywoodiano. Segundo, nem todos os problemas t�cnicos
estavam resolvidos, as c�meras e os projetores ainda eram extremamente
barulhentos, e prejudicavam a capta��o do som (uma boa ilustra��o dos
inconvenientes desta �poca � mostrada no filme "Cantando na Chuva", Singin'
in the Rain 1952), de tal maneira que nem todos os filmes eram completamente
falados ou cantados. E, por �ltimo, o grande problema de ordem est�tica,
pois, afinal, o que fazer com a m�sica, agora que era poss�vel fixar determinado
acompanhamento sonoro em qualquer proje��o? A simples "ilustra��o" musical
redundante passou a ser vista como um terreno promissor de possibilidades.
O cinema, ao descobrir o sincronismo entre som e imagem, a capacidade
de exibir filmes sem orquestra ou pianistas, trouxe este problema est�tico
� tona. O que fazer com o som? Onde ele pode ajudar na narrativa? At�
onde ele � apenas mais um elemento decorativo, como a cenografia? Uma
lenta evolu��o levou o cinema a encontrar uma forma ideal de utilizar
o som de maneira apropriada � sua linguagem.
Charlie Chaplin foi um dos primeiros diretores nos Estados Unidos a sentir
a necessidade de uma adequa��o mais precisa da m�sica � imagem projetada,
n�o querendo depender do senso est�tico dos pianistas em cada proje��o
de seus curtas. Para tanto, comp�s ele mesmo partituras para acompanhar
seus filmes.
Enquanto Chaplin trabalhava de maneira muito pr�tica e intuitiva, sem
conhecimentos profundos de composi��o e est�tica musical, na Uni�o Sovi�tica,
Sergei Eisenstein desenvolvia um trabalho similar, por�m baseado em complexas
teorias de montagem dram�tica, em que a m�sica deveria responder de maneira
equivalente. Eisenstein pensava a montagem de uma maneira 'org�nica',
como uma entidade viva, cujas rela��es entre as partes deveriam formar
um uno todo e coeso (como j� mencionava Arist�teles na Po�tica)
regidos por uma inten��o dram�tica comum. Seus escritos, para ilustrar
tais id�ias, se utilizam de met�foras comparando o cinema com a poesia
e a m�sica, cujas tens�es harm�nicas e o jogo de palavras lhes s�o semelhantes.
Destarte, j� n�o cabia a filmes como Alexander Nevsky, Outubro
ou Ivan o Terr�vel a possibilidade de uma trilha sonora eventual,
dependente de um repert�rio aleatoriamente recolhido conforme a regi�o
em que o filme era projetado. Por isso, Eisenstein encomendou trilhas
originais para seus filmes a compositores consagrados, Prokofiev e Shostakovich.
Imagine-se ent�o, antes da inven��o do movietone os problemas que um empreendimento
deste tipo causaria, pois por ser um filme mudo, precisaria da orquestra
inteira em cada sess�o. Afinal, nestes casos arranjos para piano empobreceriam
demais o impacto da m�sica e da imagem. Pode-se dizer, portanto, que o
advento do som ao filme foi crucial para o desenvolvimento da narrativa
cinematogr�fica, como atestam mesmo as experi�ncias pr�ticas descritas
pelo pr�prio Eisenstein em O Sentido do Filme e A Forma do Filme
(Eisenstein 1990).
Entretanto, as geniais teorias de Eisenstein ficariam durante muito tempo
relegadas a c�rculos intelectuais fechados na Europa e pouco influenciaram
a ind�stria americana, fazendo com que a trilha sonora propriamente dita
precisasse de dez anos a mais nos Estados Unidos at� que se tomasse consci�ncia
de seu poder enf�tico na imagem. Durante os anos que se seguiram ao Jazz
Singer, o cinema americano caminhou muito lentamente do ponto de vista
musical, para alcan�ar a significa��o que � hoje inerente a todas as produ��es.
"O que fazer com a m�sica?", era o que, afinal, os produtores se perguntavam,
pois na mesma propor��o em que antes s� podiam contar com ela, agora,
podendo incluir ru�dos e di�logos, e acabaram por deix�-la nos bastidores
do som no cinema. Assim, o cinema passou a utilizar o som de duas maneiras:
Como elemento clim�tico e como foco da a��o (os musicais). Os primeiros
s�o justamente os que dar�o emprego aos compositores eruditos, e os segundos
s�o aqueles em que a m�sica conduz a narrativa, ou ela est� subordinada
� m�sica. Os musicais cinematogr�ficos, famosos na d�cada de 50, podem
ser comparados a �pera, cuja a��o tamb�m se desenrola em fun��o da m�sica.
Ali�s, a deriva��o mais popular da �pera, a opereta, ir� ter uma grande
influ�ncia na pr�pria composi��o das m�sicas e na concep��o geral do argumento
destes musicais. Mas o outro caso � particularmente mais interessante,
pois � nele que o cinema encontrar� as bases da utiliza��o do som para
formar o ambiente.
Havia basicamente duas fun��es priorit�rias para as quais a m�sica servia,
redundar a imagem com onomatop�ias e preencher os 'buracos' sem di�logos.
Afora algumas produ��es mais ambiciosas, que colocaram a m�sica em plano
de import�ncia dram�tica - e cujo extremo foi o g�nero musical - a m�sica
acabou sendo relegada a um plano ilustrativo, pois seu uso caiu em detrimento
por causa dos di�logos, do texto e do argumento, que poderiam exaltar
a interpreta��o dram�tica do ator.
A grande guinada p�s-Eisenstein foi dada nada menos que pela produ��o
de Walt Disney de 1940, Fantasia. Um ano depois que Orson Welles
trabalhava no seu Cidad�o Kane, e que da mesma forma tinha revolucionado
a narrativa do cinema americano, Fantasia complementa a vanguarda
mostrando a todos a imensa capacidade significante da m�sica, fazendo
com que a a��o dos personagens animados no desenho seja subordinada �
narrativa da m�sica. Em outras palavras, o roteiro de Fantasia
� a pr�pria m�sica. Embora isso j� desponte, ainda que de forma apenas
conseq�ente, nas teorias de Eisenstein, e tamb�m em outras experi�ncias
no chamado, muito a prop�sito, 'cinema experimental', � em Fantasia
que � feita a s�ntese mais eloq�ente deste aspecto da rela��o m�sica/imagem.
A hist�ria da sincroniza��o musical com imagens em desenhos animados remonta
desde os prim�rdios do cinema; al�m das experi�ncias do praxinosc�pio
de Reynaud, o desenho animado sempre pareceu mais pr�ximo do universo
sonoro, n�o s� pela possibilidade de utiliza��o, mistura e cria��o de
timbres n�o necessariamente veross�meis fora de seu contexto, como tamb�m
pelo uso mel�dico de onomatop�ias e outros efeitos que ampliavam o potencial
ret�rico e humor�stico do desenho animado. Fantasia encontra um
lugar de destaque frente a estas pr�ticas por n�o ter a proposi��o de
um desenho convencional, de divers�o passageira, e sim a ambi��o de uma
obra de arte antes nunca imaginada na dimens�o do cinema de anima��o.
Para tanto, se utiliza de m�sica erudita sem nenhum recurso sonoro extra-musical,
como os ru�dos e os di�logos. Apenas uma narra��o explicativa costura
as 8 se��es do filme, com um breve interl�dio apresentando a 'banda sonora'.
Os diversos g�neros musicais s�o divididos, para os fins propostos em
Fantasia, em 3: m�sica absoluta (a Toccata e Fuga em r� menor
de Bach, e em certo sentido a Ave Maria de Schubert), m�sica puramente
descritiva (O Aprendiz de Feiticeiro, de Paul Dukas, a Noite
no Monte Calvo de Mussorgsky) e m�sica que "pinta um quadro" (segundo
a pr�pria narra��o no filme), que se traduz basicamente por m�sicas escritas
originalmente para coreografia (O Quebra-Nozes de Tchaikovsky,
A Sagra��o da Primavera de Stravinsky e a Dan�a das Horas
de Ponchielli), que, embora conte uma hist�ria, uma narrativa coreogr�fica,
teve seus argumentos modificados livremente, traduzindo outros aspectos
da m�sica que, embora extremamente compat�veis com ela, n�o faziam parte,
at� ent�o, da gama de significados poss�veis para estas m�sicas. A equipe
de Disney ampliou a significa��o de formas j� existentes, tendo seu exemplo
de maior maestria a vers�o da Sinfonia Pastoral de Beethoven, (a
�nica do quesito "m�sica que pinta um quadro" que n�o foi escrita com
inten��es coreogr�ficas) epis�dio em Fantasia que encontra, numa
sinfonia que se prop�e unicamente a traduzir sentimentos da vida no campo,
uma linha narrativa perfeitamente harm�nica com o esp�rito da obra, passando
a vida rural da �ustria do in�cio do s�culo XIX para a Gr�cia mitol�gica
atemporal. E ningu�m pode dizer que Beethoven n�o est� l�, ainda que considerando
os cortes feitos na m�sica por Leopold Stokowski.
O impacto de Fantasia, em termos de p�blico, foi um fracasso. Mas
nenhum criador da �rea cinematogr�fica ficou alheio ao que viu. O primeiro
som estereof�nico (ainda que simulado), gravado com a maior tecnologia
dispon�vel, criou um efeito t�o extraordin�rio que os produtores come�aram
a repensar o som, acrescentando a m�sica como elemento primordial. Tanto
que durante os 20 anos seguintes, quase todas as grandes produ��es se
utilizaram de compositores de forma��o erudita, a maioria europeus.
Chegamos ent�o ao que propriamente chamamos de "trilha sonora" do cinema:
o que se tornou a m�sica erudita nos anos 30 estava longe de ser absorvido
pelo grande p�blico, levando compositores de teatro e opereta a tentarem
a sorte no cinema. Indo de encontro ao que os produtores queriam, foram
recebidos de bra�os abertos nos est�dios, e, por essa raz�o, os primeiros
grandes autores de trilhas s�o europeus: a tradi��o da m�sica sinf�nica
era um elemento de peso, e, como a m�sica europ�ia j� havia desenvolvido
profundamente o estilo sinf�nico descritivo, principalmente a partir do
romantismo, tais concep��es se faziam muito prop�cias para estimular uma
s�rie de paradigmas visuais. A tradi��o rom�ntica j� estava, portanto,
habituada a tratar imagens com sons, dando a estes compositores especiais
condi��es para construir determinados climas, como o cinema queria.
� digno de cita��o alguns destes compositores, de import�ncia �mpar para
o desenvolvimento daquilo que podemos hoje chamar de 'trilha sonora cinematogr�fica':
Max Steiner (1888-1971), come�ou com a trilha sonora de um cl�ssico dos
filmes B, King Kong, de 1933. Seu trabalho foi muito bem apreciado,
e logo se tornou um dos mais requisitados compositores do cinema. Escreveu,
entre outros, ...E o vento levou, Jezebel e Casablanca,
para citar os mais famosos. Claudia Gorbman, em seu Unheard Melodies,
enfatiza o estilo pioneiro de Steiner como sendo o principal formador
de paradigmas do que ainda hoje conhecemos como trilha sonora hollywoodiana,
ou seja, uma s�rie de conven��es musicais que sistematizavam os refor�os
da linha narrativa e dramaticidade do filme. Algumas destas conven��es,
infelizmente, usadas abusivamente, acabaram por se tornarem clich�s. O
fato � que este tipo de trilha ainda eram poemas sinf�nicos p�s-rom�nticos
que pareciam na maioria das vezes mais eloq�entes que o pr�prio filme.
Tinham uma tradi��o europ�ia muito profunda, que, se serviam para �picos
ou romances, eram grandiloq�entes demais para g�ngsters ou filmes noir.
Outro grande compositor, de quem na inf�ncia Richard Strauss elogiou,
Erich Wolfgang Korngold (1897-1957) era austr�aco e n�o se dedicou apenas
ao cinema. � autor de �peras, quartetos, uma bel�ssima Sinfonia em
F� Sustenido Menor, e tamb�m de respeit�veis trilhas como Captain
Blood, The Sea Hawk, Adventures of Robin Hood, Devotion,
etc.. Como Steiner, que era compositor de operetas na �ustria, Korngold
veio para Hollywood fugido da persegui��o nazista, levando toda uma bagagem
de tradi��o europ�ia que serviu n�o s� para mostrar o que a m�sica incidental
era capaz de fazer como aprimorar as t�cnicas musicais sobre os g�neros
que o cinema explora. Korngold representou na Europa o canto do cisne
de uma imensa tradi��o, a queda da supremacia musical que sustentou mais
de cinco s�culos no velho mundo. Da mesma origem compartilha Franz Waxman
(1906-1967), que deu a Billy Wilder a trilha de Sunset Boulevard,
"Crep�sculo dos deuses" (1950). Da R�ssia, precisamente S. Petersburgo,
Dmitri Tiomkin (1894-1979) tamb�m fugiu da revolu��o e estabeleceu-se
em Hollywood, tendo criado a m�sica para Lost Horizon, "Horizonte
Perdido" (1937) de Frank Capra.
A ind�stria cinematogr�fica americana precisava de bons professores nesta
�rea, e se serviu muito bem da oportunidade. At� que o pr�prio cinema
precisou de formas espec�ficas, segundo g�neros igualmente espec�ficos
criados na cinematografia americana. O que escrever para um filme policial?
E um western?
Compositores europeus n�o sabem o que � um western. Era preciso criar
uma gera��o de m�sicos americanos para suprir este tipo de necessidade,
o qu� aut�ntico do pa�s produtor do filme. Esta "nova gera��o t�pica"
ir� surgir apenas no final dos anos 40, concomitante com a hegemonia dos
europeus. Victor Young (1900-1956), Alfred Newmann (1901-1970), Elmer
Bernstein (n.1922) e Leonard Bernstein (1918-1990), e Bernard Herrmann
(1911-1975), um dos mais bem-aventurados compositores de trilhas do cinema.
Mas mesmo tendo, por exemplo, Elmer Bernstein compondo para westerns,
Herrmann em Hitchcocks e Newmann em romances, os �picos continuaram muito
a dever para europeus, justamente por terem uma experi�ncia sinf�nica
muito mais refinada. Miklos Rozsa (1907-1995), h�ngaro, foi um destes
casos, de compet�ncia musical que o levaram � gl�ria da trilha para Ben-Hur
de Wyler. Mesmo Victor Young, que assinou a trilha de Sanson and Delilah,
Around the world in 80 days e Greatest Show on Earth, estudou
no conservat�rio de Vars�via antes de come�ar a compor para cinema.
Assim, aos poucos, a trilha sonora come�ou a ganhar uma forma espec�fica
segundo sua condi��o subjacente � imagem. A trilha dos anos 40� � extremamente
eloq�ente, digna de poemas sinf�nicos � la Richard Strauss, de
car�ter naturalmente �pico. O final da d�cada 40 caracterizou o dom�nio
da trilha em fun��o do g�nero. Os filmes noir, os suspenses e os
romances s�o ambientados musicalmente de formas mais sutis. Nos anos 50,
esta sutileza chega ao extremo: algumas trilhas encaixam t�o bem no esp�rito
de um filme que o diretor "adota" o compositor oficialmente em todas as
suas produ��es. Esta pr�tica j� era natural para o cinema europeu, mas
que os americanos s� perceberam quando abriram espa�o para filmes de autor.
Ent�o caminham lado a lado, a hist�ria e a m�sica. � o caso de Nino Rota
(1911-1979) com Fellini, Herrmann com Hitchcock, John Williams (n.1948)
com Spielberg, e, mais recentemente, Michael Nyman (n.1943) com Peter
Greenaway. Nestes casos o clima � substancialmente bem constru�do, pois
o diretor j� sabe como trabalha o compositor antes mesmo da partitura
estar completa. Os anos 60 trazem a m�sica popular como trilha sonora,
o que nunca havia acontecido antes. Poderiam haver can��es compostas para
o filme, mas sempre o clima era destacado por uma partitura orquestral.
Os anos 60 desmontam esta praxe, colocando a m�sica orquestral apenas
em determinadas fun��es subjacentes, e ent�o come�a o reinado dos compositores
"populares", ou aqueles que criam tanto formas orquestrais para alguns
momentos como tamb�m suaves e cativantes melodias, que, a exemplo da �pera,
nos fazem sair do cinema cantarolando o tema. � o caso de Burt Bacharach
(n.1928), Lalo Schifrin (n.1932) e Henry Mancini (1924-1994). Aos poucos
as can��es foram tomando o lugar da m�sica sinf�nica, e nos anos 70 explodiu
com musicais como Hair, Jesus Christ Superstar, descendentes
de West Side Story, mas com a m�sica pop e o rock'n roll pontuando
a a��o do filme. Os anos 70 e 80 praticamente exploraram toda a vertente
pop da m�sica, at� como clima subjacente, devolvendo, no final dos 80,
com filmes como Amadeus e ET, a partitura orquestral � narrativa
do cinema, concomitante � m�sica pop e � can��o-tema do filme. Assim,
a partir dos anos 90, tornou-se praxe a utiliza��o de ambas, uma (ou v�rias)
can��o-tema e uma partitura instrumental, por vezes ainda requisitando
fun��es orquestrais, coexistindo num mesmo filme, mas cuja necessidade
est�tica varia de filme para filme.
� interessante notar que essa longa caminhada da m�sica no panorama cinematogr�fico
tem fases muito distintas, sendo que todas elas possu�am rela��es muito
pr�ximas entre si. Assim, embora se possa estabelecer passagens espec�ficas,
como da passagem do cinema "mudo" para o "sonoro", a utiliza��o de m�sica
para completar "buracos" sem di�logos e a utiliza��o dram�tica da m�sica
para refor�o das inten��es narrativas, sempre houve a preocupa��o de escolher
m�sica adequada para cada imagem. O mesmo se pode dizer do contr�rio,
ou seja, da inspira��o extra-musical que se traduz no g�nero descritivo
da m�sica; o compositor tamb�m escolhe uma seq��ncia musical 'adequada'
ao tipo de imagem inspiradora. Assim, como na teoria teatral de Constantin
Stanislavski (1999), onde o ator deve procurar a "inten��o" dram�tica
correta, se essa preocupa��o tamb�m atinge a m�sica e seus resultados
satisfazem expectativas imag�ticas, n�o h� por que n�o supor que na m�sica
tamb�m haja uma inten��o bem clara que sirva aos prop�sitos de inten��es
similares. Esta seria a mesma id�ia, com outra roupagem, do car�ter plat�nico
antes enunciado. Assim, a m�sica teria um car�ter, a imagem outro, e a
sobreposi��o de ambos um terceiro, resultante, em conson�ncia ou disson�ncia
com o car�ter que predomina em ambos. Assim, m�sicas que possuam um car�ter
'alegre', quando utilizadas para ilustrar situa��es visuais cujo car�ter
seja 'triste', forma-se uma ant�tese, ou um paradoxo, dependendo do grau
de utiliza��o de ambos. A par�dia, por exemplo, se utiliza largamente
deste recurso, como � o caso da ant�tese de Fantasia, sua excelente s�tira,
o filme italiano Allegro non troppo ("M�sica e Fantasia", 1976,
de Bruno Bozzeto). A� entra o objetivo, ou inten��o est�tica, do autor
cinematogr�fico ao juntar uma imagem � uma m�sica: a resultante entrar�
em conson�ncia ou disson�ncia (em graus diversos, cuja resultante � sempre
uma parte muito peculiar da cria��o art�stica) com o car�ter que se quer
representar de ambas como um conjunto.
Em cinema, entretanto, normalmente a m�sica � subordinada � imagem, sendo
ela redundante em car�ter ao que se v� na tela, como o compositor Mauro
Giorgetti destaca, em artigo intitulado Da Natureza e Poss�veis Fun��es
da M�sica no Cinema:
Sabemos
que o som geral de um filme se distribui em tr�s categorias sonoras
bem distintas, a saber, a dos ru�dos, a dos di�logos e a da m�sica
(quando houver); via de regra, a m�sica vem, hierarquicamente, em
plano inferior �s outras duas categorias (com efeito, dificilmente
se lhe conceder� primazia em rela��o a ru�dos e voz e, se acontecer,
tratar-se-� de caso particular). Como explicar, pois, que a m�sica,
ineg�vel subordinada dentro do complexo sonoro do filme, possa exercer
import�ncia n�o raro decisiva no resultado final do trabalho? (Giorgetti:1998)
|
E temos ent�o,
justamente em Fantasia, um contraponto desta fun��o subordinada
da m�sica � imagem. Aqui, a imagem � que se curva ao car�ter da m�sica.
Portanto, conhecendo a natureza da trilha sonora tradicional, podemos
estabelecer um paralelo de an�lise justamente enfocando o seu oposto,
expresso por Walt Disney em Fantasia.
copyright©2002
Filipe Salles
|