Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002

 

2.2. O cinema e a m�sica

A m�sica de cinema � um exemplo bastante significativo deste aspecto de inter-relacionamento, uma vez que � poss�vel mudar substancialmente o car�ter de uma imagem escolhendo-se diversas m�sicas para seu acompanhamento. H� portanto, certas medidas de car�ter que est�o presentes na m�sica, pois do contr�rio s� sentir�amos a m�sica em fun��o da imagem, e n�o o oposto. Mas a evolu��o do conceito 'm�sica de cinema' passou por diversas fases, e n�o foi simplesmente inventada, de uma hora para outra, a trilha sonora. Basta olhar sua hist�ria:

O cinema, arte t�pica do s�culo XX por ter nascido na entrada do referido s�culo, � uma das poucas em que podemos precisar sua origem. Embora seu sistema tivesse antecedentes imemoriais (o pr�prio desejo do homem em realizar seu simulacro mais perfeito poss�vel), nenhum historiador ignoraria que a m�quina de proje��o individual inventada por Edison, o Kinetosc�pio, foi o precursor da proje��o externa coletiva do Cinemat�grafo dos irm�os Lumi�re (nota #4), que se utilizava basicamente de princ�pios f�sicos h� muito conhecidos, como a c�mara escura, a proje��o luminosa, e outros mais recentes, como o mecanismo da m�quina de costura e a pr�pria fotografia. E o som programado para acompanhar imagens projetadas j� existia mesmo antes da inven��o destes aparelhos, como atesta Parkinson (1995) a respeito do Praxinosc�pio de Reynaud.

Segundo o autor, o franc�s �mile Reynaud (1844-1918), inventor do praxinosc�pio (aparelho que precedeu o cinemat�grafo), desenvolveu uma forma de projet�-los com um tambor de espelhos no centro da m�quina, que refletia os desenhos do praxinosc�pio para uma tela externa e simulava uma das primeiras m�quinas de proje��o cin�tica, e que ele chamou de Pantomimes Lumineuses (Vide figura 3). Parkinson exemplifica a quest�o da import�ncia do som no cinema atrav�s do exemplo de Reynaud: "Os pioneiros do cinema nunca tiveram a inten��o de fazer seus filmes silenciosos. As 'Pantomimes Lumineuses' de Reynaud, por exemplo, foram acompanhadas por m�sicas especialmente compostas por Gaston Paulin." (Parkinson, 1995: 83). Em outras palavras, o cinema sempre foi sonoro.

Fonte: David Parkinson, History of Film (1995)
Fonte: Emanuelle Toulet, Cinématographe, invention du siècle (1995)
FIGURA 3: Émile Reynaud e seu aparelho praxinoscópio, em que projetava suas pantomimas luminosas
Cartaz publicitário das Pantomimas Luminosas


Apesar da nomenclatura comum que designa os filmes produzidos antes de 1928 como sendo "mudos" (silent movies), na verdade, ela diz respeito apenas a uma quest�o t�cnica: antes desta data (a inven��o do vitaphone), o som n�o tinha nenhum v�nculo com a pel�cula projetada, e por essa raz�o toda a proje��o demandava a presen�a f�sica de um ou v�rios m�sicos, quando n�o tamb�m um narrador ou dubladores. Mas o som no cinema j� havia sido sincronizado muito antes: em 1889, o kinetosc�pio de Edison havia sido adaptado para funcionar em sincronismo com o fon�grafo. � interessante sublinhar o quanto a id�ia de reproduzir som estava (ou sempre esteve) associada � id�ia de reproduzir imagens, uma vez que o pr�prio Edison considerava o kinetosc�pio como uma conseq��ncia direta do fon�grafo, e provavelmente uma id�ia tenha levado � outra (idem 1995:82).

A possibilidade de sincronismo e reprodu��o do som concomitante � imagem era poss�vel no kinetosc�pio na medida em que as m�quinas de proje��o eram individuais e o som reproduzido em fones de ouvido. Quando Auguste e Louis Lumi�re combinaram o princ�pio do kinetosc�pio � lanterna m�gica e inventaram o que chamamos propriamente de cinema, a proje��o p�blica em tela grande demandava uma amplifica��o e reprodu��o sonora que a tecnologia da �poca ainda n�o tinha condi��es de resolver. Em pequenas salas de exibi��o, entretanto, as experi�ncias de sincronismo e reprodu��o do som no cinema foram bem-sucedidas antes mesmo da virada do s�culo. Na Exposi��o de Paris de 1900, foi apresentada uma vers�o de m�quina projetora capaz de sincronizar o fon�grafo, inventada por Gaumont, o Chronom�gaphone. Pouco depois, outras vers�es foram sendo lan�adas, denominadas Phonorama, Vivaphone e Cinephonograph. Entretanto, a necessidade de trocar o disco no meio da proje��o, e o desgaste do cilindro de cera fizeram com que estes sistemas n�o tivessem vida longa. Na mesma medida, o cinema come�ou a ser projetado para p�blicos cada vez maiores, e que demandavam, consequentemente, salas mais amplas, e o som sincronizado foi radicalmente substitu�do pela performance musical ao vivo.

FIGURA 4: Dois cartazes publicitários de projeções sonorizadas, o Chronomégaphone e o Biophonógraphe, do início do século XX.


De in�cio, a m�sica que acompanhava uma proje��o era executada por um pianista (ou pequeno conjunto), cuja responsabilidade era a de refor�ar o potencial dram�tico da imagem, enfatizando o clima das cenas. A maioria destes primeiros pianistas trabalhava sobre um repert�rio conhecido, m�sica de compositores familiares ao grande p�blico, como Schubert, Chopin, Tchaikovsky e Johann Strauss Jr, ou ainda temas de can��es populares. Quando executadas durante sess�es que se mantinham dentro do alcance de controle dos est�dios produtores, havia um roteiro para a trilha sonora, um repert�rio espec�fico que o pianista deveria seguir. Mas, na expans�o da ind�stria cinematogr�fica, muitas proje��es em cidades distantes tinham que contar com o bom senso e a capacidade de improvisa��o dos m�sicos, at� que a id�ia de criar m�sica especificamente para o cinema foi posta em pr�tica em larga escala. A m�sica em tal situa��o ainda era muito mais uma redund�ncia da imagem do que propriamente um elemento dram�tico no sentido narrativo, uma esp�cie de �nfase ret�rica. O m�ximo de sofistica��o era conseguido quando alguns cineastas, especialmente europeus, encomendavam m�sica para acompanhar seus filmes a compositores consagrados, como O assassinato do Duque de Guise (1908), de Henri Lav�dan, com m�sica de Saint-Sa�ns, considerada a primeira 'm�sica original' composta para filmes.

Mas o custo de uma produ��o cinematogr�fica era substancialmente aumentado na sua exibi��o, uma vez que deveria haver pelo menos um m�sico contratado que pudesse acompanhar cada proje��o, pr�tica que come�ou a se tornar comercialmente desfavor�vel quando os filmes passaram a adotar o padr�o de longa-metragem, com mais de uma hora e meia de proje��o. Embora os sistemas de sincronismo j� no final da d�cada de 1910 tivessem se aperfei�oado, sendo inclusive testadas as proje��es com som gravado na pel�cula, somente em 1927 o sistema de sincronismo, ainda via fon�grafo, foi implementado comercialmente. Era o sistema Vitaphone, (Fig. 5) uma enorme e desajeitada m�quina de proje��o que imortalizou o filme The Jazz Singer (1927), com Al Jonson, se utilizando de um disco de 78 rota��es, um pouco melhor que aquele usado no fon�grafo de Edison. Suas inconveni�ncias eram grandes, a baixa qualidade da amplifica��o da �poca, o chiado do disco e a eminente possibilidade do disco riscar com o tempo e tirar o filme de sincronismo. Mas foi um sistema pioneiro que, prescindindo do m�sico in presentia, fez com que toda a conquista dos m�sicos at� aquele momento precisasse recuar aos prim�rdios do som para o cinema, repensar a fun��o dram�tica do som, que agora poderia incluir n�o s� m�sica, mas tamb�m di�logos e ru�dos.


Figura 5: o Vitaphone


Mas, j� em 1930, os est�dios, vislumbrando o enorme potencial financeiro que os filmes sonoros poderiam render (estando os EUA na fase mais negra da depress�o ap�s o crash da bolsa de 1929), optaram pelo sistema Movietone, ou grava��o na pr�pria pel�cula, atrav�s de uma c�lula fotoel�trica que transformava as ondas sonoras em impulsos luminosos, registrando o som fotograficamente, t�cnica que ainda hoje � a mais comum na sonoriza��o de pel�culas.

Entretanto, mesmo com tal recurso, as experi�ncias com o som come�aram de maneira bastante comedida, primeiro por causa da inexperi�ncia dos atores em tratar com di�logos. Muitos deles, na fase muda do cinema, n�o tinham sequer forma��o teatral, pois bastavam-lhes determinadas condi��es f�sicas para compor personagens, e a maioria mostrou-se incapaz de declamar textos, obrigando os est�dios a reciclar todo o contingente de astros, o Star System hollywoodiano. Segundo, nem todos os problemas t�cnicos estavam resolvidos, as c�meras e os projetores ainda eram extremamente barulhentos, e prejudicavam a capta��o do som (uma boa ilustra��o dos inconvenientes desta �poca � mostrada no filme "Cantando na Chuva", Singin' in the Rain 1952), de tal maneira que nem todos os filmes eram completamente falados ou cantados. E, por �ltimo, o grande problema de ordem est�tica, pois, afinal, o que fazer com a m�sica, agora que era poss�vel fixar determinado acompanhamento sonoro em qualquer proje��o? A simples "ilustra��o" musical redundante passou a ser vista como um terreno promissor de possibilidades.

O cinema, ao descobrir o sincronismo entre som e imagem, a capacidade de exibir filmes sem orquestra ou pianistas, trouxe este problema est�tico � tona. O que fazer com o som? Onde ele pode ajudar na narrativa? At� onde ele � apenas mais um elemento decorativo, como a cenografia? Uma lenta evolu��o levou o cinema a encontrar uma forma ideal de utilizar o som de maneira apropriada � sua linguagem.

Charlie Chaplin foi um dos primeiros diretores nos Estados Unidos a sentir a necessidade de uma adequa��o mais precisa da m�sica � imagem projetada, n�o querendo depender do senso est�tico dos pianistas em cada proje��o de seus curtas. Para tanto, comp�s ele mesmo partituras para acompanhar seus filmes.

Enquanto Chaplin trabalhava de maneira muito pr�tica e intuitiva, sem conhecimentos profundos de composi��o e est�tica musical, na Uni�o Sovi�tica, Sergei Eisenstein desenvolvia um trabalho similar, por�m baseado em complexas teorias de montagem dram�tica, em que a m�sica deveria responder de maneira equivalente. Eisenstein pensava a montagem de uma maneira 'org�nica', como uma entidade viva, cujas rela��es entre as partes deveriam formar um uno todo e coeso (como j� mencionava Arist�teles na Po�tica) regidos por uma inten��o dram�tica comum. Seus escritos, para ilustrar tais id�ias, se utilizam de met�foras comparando o cinema com a poesia e a m�sica, cujas tens�es harm�nicas e o jogo de palavras lhes s�o semelhantes. Destarte, j� n�o cabia a filmes como Alexander Nevsky, Outubro ou Ivan o Terr�vel a possibilidade de uma trilha sonora eventual, dependente de um repert�rio aleatoriamente recolhido conforme a regi�o em que o filme era projetado. Por isso, Eisenstein encomendou trilhas originais para seus filmes a compositores consagrados, Prokofiev e Shostakovich. Imagine-se ent�o, antes da inven��o do movietone os problemas que um empreendimento deste tipo causaria, pois por ser um filme mudo, precisaria da orquestra inteira em cada sess�o. Afinal, nestes casos arranjos para piano empobreceriam demais o impacto da m�sica e da imagem. Pode-se dizer, portanto, que o advento do som ao filme foi crucial para o desenvolvimento da narrativa cinematogr�fica, como atestam mesmo as experi�ncias pr�ticas descritas pelo pr�prio Eisenstein em O Sentido do Filme e A Forma do Filme (Eisenstein 1990).

Entretanto, as geniais teorias de Eisenstein ficariam durante muito tempo relegadas a c�rculos intelectuais fechados na Europa e pouco influenciaram a ind�stria americana, fazendo com que a trilha sonora propriamente dita precisasse de dez anos a mais nos Estados Unidos at� que se tomasse consci�ncia de seu poder enf�tico na imagem. Durante os anos que se seguiram ao Jazz Singer, o cinema americano caminhou muito lentamente do ponto de vista musical, para alcan�ar a significa��o que � hoje inerente a todas as produ��es. "O que fazer com a m�sica?", era o que, afinal, os produtores se perguntavam, pois na mesma propor��o em que antes s� podiam contar com ela, agora, podendo incluir ru�dos e di�logos, e acabaram por deix�-la nos bastidores do som no cinema. Assim, o cinema passou a utilizar o som de duas maneiras: Como elemento clim�tico e como foco da a��o (os musicais). Os primeiros s�o justamente os que dar�o emprego aos compositores eruditos, e os segundos s�o aqueles em que a m�sica conduz a narrativa, ou ela est� subordinada � m�sica. Os musicais cinematogr�ficos, famosos na d�cada de 50, podem ser comparados a �pera, cuja a��o tamb�m se desenrola em fun��o da m�sica. Ali�s, a deriva��o mais popular da �pera, a opereta, ir� ter uma grande influ�ncia na pr�pria composi��o das m�sicas e na concep��o geral do argumento destes musicais. Mas o outro caso � particularmente mais interessante, pois � nele que o cinema encontrar� as bases da utiliza��o do som para formar o ambiente.

Havia basicamente duas fun��es priorit�rias para as quais a m�sica servia, redundar a imagem com onomatop�ias e preencher os 'buracos' sem di�logos. Afora algumas produ��es mais ambiciosas, que colocaram a m�sica em plano de import�ncia dram�tica - e cujo extremo foi o g�nero musical - a m�sica acabou sendo relegada a um plano ilustrativo, pois seu uso caiu em detrimento por causa dos di�logos, do texto e do argumento, que poderiam exaltar a interpreta��o dram�tica do ator.

A grande guinada p�s-Eisenstein foi dada nada menos que pela produ��o de Walt Disney de 1940, Fantasia. Um ano depois que Orson Welles trabalhava no seu Cidad�o Kane, e que da mesma forma tinha revolucionado a narrativa do cinema americano, Fantasia complementa a vanguarda mostrando a todos a imensa capacidade significante da m�sica, fazendo com que a a��o dos personagens animados no desenho seja subordinada � narrativa da m�sica. Em outras palavras, o roteiro de Fantasia � a pr�pria m�sica. Embora isso j� desponte, ainda que de forma apenas conseq�ente, nas teorias de Eisenstein, e tamb�m em outras experi�ncias no chamado, muito a prop�sito, 'cinema experimental', � em Fantasia que � feita a s�ntese mais eloq�ente deste aspecto da rela��o m�sica/imagem. A hist�ria da sincroniza��o musical com imagens em desenhos animados remonta desde os prim�rdios do cinema; al�m das experi�ncias do praxinosc�pio de Reynaud, o desenho animado sempre pareceu mais pr�ximo do universo sonoro, n�o s� pela possibilidade de utiliza��o, mistura e cria��o de timbres n�o necessariamente veross�meis fora de seu contexto, como tamb�m pelo uso mel�dico de onomatop�ias e outros efeitos que ampliavam o potencial ret�rico e humor�stico do desenho animado. Fantasia encontra um lugar de destaque frente a estas pr�ticas por n�o ter a proposi��o de um desenho convencional, de divers�o passageira, e sim a ambi��o de uma obra de arte antes nunca imaginada na dimens�o do cinema de anima��o. Para tanto, se utiliza de m�sica erudita sem nenhum recurso sonoro extra-musical, como os ru�dos e os di�logos. Apenas uma narra��o explicativa costura as 8 se��es do filme, com um breve interl�dio apresentando a 'banda sonora'. Os diversos g�neros musicais s�o divididos, para os fins propostos em Fantasia, em 3: m�sica absoluta (a Toccata e Fuga em r� menor de Bach, e em certo sentido a Ave Maria de Schubert), m�sica puramente descritiva (O Aprendiz de Feiticeiro, de Paul Dukas, a Noite no Monte Calvo de Mussorgsky) e m�sica que "pinta um quadro" (segundo a pr�pria narra��o no filme), que se traduz basicamente por m�sicas escritas originalmente para coreografia (O Quebra-Nozes de Tchaikovsky, A Sagra��o da Primavera de Stravinsky e a Dan�a das Horas de Ponchielli), que, embora conte uma hist�ria, uma narrativa coreogr�fica, teve seus argumentos modificados livremente, traduzindo outros aspectos da m�sica que, embora extremamente compat�veis com ela, n�o faziam parte, at� ent�o, da gama de significados poss�veis para estas m�sicas. A equipe de Disney ampliou a significa��o de formas j� existentes, tendo seu exemplo de maior maestria a vers�o da Sinfonia Pastoral de Beethoven, (a �nica do quesito "m�sica que pinta um quadro" que n�o foi escrita com inten��es coreogr�ficas) epis�dio em Fantasia que encontra, numa sinfonia que se prop�e unicamente a traduzir sentimentos da vida no campo, uma linha narrativa perfeitamente harm�nica com o esp�rito da obra, passando a vida rural da �ustria do in�cio do s�culo XIX para a Gr�cia mitol�gica atemporal. E ningu�m pode dizer que Beethoven n�o est� l�, ainda que considerando os cortes feitos na m�sica por Leopold Stokowski.

O impacto de Fantasia, em termos de p�blico, foi um fracasso. Mas nenhum criador da �rea cinematogr�fica ficou alheio ao que viu. O primeiro som estereof�nico (ainda que simulado), gravado com a maior tecnologia dispon�vel, criou um efeito t�o extraordin�rio que os produtores come�aram a repensar o som, acrescentando a m�sica como elemento primordial. Tanto que durante os 20 anos seguintes, quase todas as grandes produ��es se utilizaram de compositores de forma��o erudita, a maioria europeus.

Chegamos ent�o ao que propriamente chamamos de "trilha sonora" do cinema: o que se tornou a m�sica erudita nos anos 30 estava longe de ser absorvido pelo grande p�blico, levando compositores de teatro e opereta a tentarem a sorte no cinema. Indo de encontro ao que os produtores queriam, foram recebidos de bra�os abertos nos est�dios, e, por essa raz�o, os primeiros grandes autores de trilhas s�o europeus: a tradi��o da m�sica sinf�nica era um elemento de peso, e, como a m�sica europ�ia j� havia desenvolvido profundamente o estilo sinf�nico descritivo, principalmente a partir do romantismo, tais concep��es se faziam muito prop�cias para estimular uma s�rie de paradigmas visuais. A tradi��o rom�ntica j� estava, portanto, habituada a tratar imagens com sons, dando a estes compositores especiais condi��es para construir determinados climas, como o cinema queria.

� digno de cita��o alguns destes compositores, de import�ncia �mpar para o desenvolvimento daquilo que podemos hoje chamar de 'trilha sonora cinematogr�fica': Max Steiner (1888-1971), come�ou com a trilha sonora de um cl�ssico dos filmes B, King Kong, de 1933. Seu trabalho foi muito bem apreciado, e logo se tornou um dos mais requisitados compositores do cinema. Escreveu, entre outros, ...E o vento levou, Jezebel e Casablanca, para citar os mais famosos. Claudia Gorbman, em seu Unheard Melodies, enfatiza o estilo pioneiro de Steiner como sendo o principal formador de paradigmas do que ainda hoje conhecemos como trilha sonora hollywoodiana, ou seja, uma s�rie de conven��es musicais que sistematizavam os refor�os da linha narrativa e dramaticidade do filme. Algumas destas conven��es, infelizmente, usadas abusivamente, acabaram por se tornarem clich�s. O fato � que este tipo de trilha ainda eram poemas sinf�nicos p�s-rom�nticos que pareciam na maioria das vezes mais eloq�entes que o pr�prio filme. Tinham uma tradi��o europ�ia muito profunda, que, se serviam para �picos ou romances, eram grandiloq�entes demais para g�ngsters ou filmes noir.

Outro grande compositor, de quem na inf�ncia Richard Strauss elogiou, Erich Wolfgang Korngold (1897-1957) era austr�aco e n�o se dedicou apenas ao cinema. � autor de �peras, quartetos, uma bel�ssima Sinfonia em F� Sustenido Menor, e tamb�m de respeit�veis trilhas como Captain Blood, The Sea Hawk, Adventures of Robin Hood, Devotion, etc.. Como Steiner, que era compositor de operetas na �ustria, Korngold veio para Hollywood fugido da persegui��o nazista, levando toda uma bagagem de tradi��o europ�ia que serviu n�o s� para mostrar o que a m�sica incidental era capaz de fazer como aprimorar as t�cnicas musicais sobre os g�neros que o cinema explora. Korngold representou na Europa o canto do cisne de uma imensa tradi��o, a queda da supremacia musical que sustentou mais de cinco s�culos no velho mundo. Da mesma origem compartilha Franz Waxman (1906-1967), que deu a Billy Wilder a trilha de Sunset Boulevard, "Crep�sculo dos deuses" (1950). Da R�ssia, precisamente S. Petersburgo, Dmitri Tiomkin (1894-1979) tamb�m fugiu da revolu��o e estabeleceu-se em Hollywood, tendo criado a m�sica para Lost Horizon, "Horizonte Perdido" (1937) de Frank Capra.

A ind�stria cinematogr�fica americana precisava de bons professores nesta �rea, e se serviu muito bem da oportunidade. At� que o pr�prio cinema precisou de formas espec�ficas, segundo g�neros igualmente espec�ficos criados na cinematografia americana. O que escrever para um filme policial? E um western?

Compositores europeus n�o sabem o que � um western. Era preciso criar uma gera��o de m�sicos americanos para suprir este tipo de necessidade, o qu� aut�ntico do pa�s produtor do filme. Esta "nova gera��o t�pica" ir� surgir apenas no final dos anos 40, concomitante com a hegemonia dos europeus. Victor Young (1900-1956), Alfred Newmann (1901-1970), Elmer Bernstein (n.1922) e Leonard Bernstein (1918-1990), e Bernard Herrmann (1911-1975), um dos mais bem-aventurados compositores de trilhas do cinema. Mas mesmo tendo, por exemplo, Elmer Bernstein compondo para westerns, Herrmann em Hitchcocks e Newmann em romances, os �picos continuaram muito a dever para europeus, justamente por terem uma experi�ncia sinf�nica muito mais refinada. Miklos Rozsa (1907-1995), h�ngaro, foi um destes casos, de compet�ncia musical que o levaram � gl�ria da trilha para Ben-Hur de Wyler. Mesmo Victor Young, que assinou a trilha de Sanson and Delilah, Around the world in 80 days e Greatest Show on Earth, estudou no conservat�rio de Vars�via antes de come�ar a compor para cinema.

Assim, aos poucos, a trilha sonora come�ou a ganhar uma forma espec�fica segundo sua condi��o subjacente � imagem. A trilha dos anos 40� � extremamente eloq�ente, digna de poemas sinf�nicos � la Richard Strauss, de car�ter naturalmente �pico. O final da d�cada 40 caracterizou o dom�nio da trilha em fun��o do g�nero. Os filmes noir, os suspenses e os romances s�o ambientados musicalmente de formas mais sutis. Nos anos 50, esta sutileza chega ao extremo: algumas trilhas encaixam t�o bem no esp�rito de um filme que o diretor "adota" o compositor oficialmente em todas as suas produ��es. Esta pr�tica j� era natural para o cinema europeu, mas que os americanos s� perceberam quando abriram espa�o para filmes de autor. Ent�o caminham lado a lado, a hist�ria e a m�sica. � o caso de Nino Rota (1911-1979) com Fellini, Herrmann com Hitchcock, John Williams (n.1948) com Spielberg, e, mais recentemente, Michael Nyman (n.1943) com Peter Greenaway. Nestes casos o clima � substancialmente bem constru�do, pois o diretor j� sabe como trabalha o compositor antes mesmo da partitura estar completa. Os anos 60 trazem a m�sica popular como trilha sonora, o que nunca havia acontecido antes. Poderiam haver can��es compostas para o filme, mas sempre o clima era destacado por uma partitura orquestral.

Os anos 60 desmontam esta praxe, colocando a m�sica orquestral apenas em determinadas fun��es subjacentes, e ent�o come�a o reinado dos compositores "populares", ou aqueles que criam tanto formas orquestrais para alguns momentos como tamb�m suaves e cativantes melodias, que, a exemplo da �pera, nos fazem sair do cinema cantarolando o tema. � o caso de Burt Bacharach (n.1928), Lalo Schifrin (n.1932) e Henry Mancini (1924-1994). Aos poucos as can��es foram tomando o lugar da m�sica sinf�nica, e nos anos 70 explodiu com musicais como Hair, Jesus Christ Superstar, descendentes de West Side Story, mas com a m�sica pop e o rock'n roll pontuando a a��o do filme. Os anos 70 e 80 praticamente exploraram toda a vertente pop da m�sica, at� como clima subjacente, devolvendo, no final dos 80, com filmes como Amadeus e ET, a partitura orquestral � narrativa do cinema, concomitante � m�sica pop e � can��o-tema do filme. Assim, a partir dos anos 90, tornou-se praxe a utiliza��o de ambas, uma (ou v�rias) can��o-tema e uma partitura instrumental, por vezes ainda requisitando fun��es orquestrais, coexistindo num mesmo filme, mas cuja necessidade est�tica varia de filme para filme.

� interessante notar que essa longa caminhada da m�sica no panorama cinematogr�fico tem fases muito distintas, sendo que todas elas possu�am rela��es muito pr�ximas entre si. Assim, embora se possa estabelecer passagens espec�ficas, como da passagem do cinema "mudo" para o "sonoro", a utiliza��o de m�sica para completar "buracos" sem di�logos e a utiliza��o dram�tica da m�sica para refor�o das inten��es narrativas, sempre houve a preocupa��o de escolher m�sica adequada para cada imagem. O mesmo se pode dizer do contr�rio, ou seja, da inspira��o extra-musical que se traduz no g�nero descritivo da m�sica; o compositor tamb�m escolhe uma seq��ncia musical 'adequada' ao tipo de imagem inspiradora. Assim, como na teoria teatral de Constantin Stanislavski (1999), onde o ator deve procurar a "inten��o" dram�tica correta, se essa preocupa��o tamb�m atinge a m�sica e seus resultados satisfazem expectativas imag�ticas, n�o h� por que n�o supor que na m�sica tamb�m haja uma inten��o bem clara que sirva aos prop�sitos de inten��es similares. Esta seria a mesma id�ia, com outra roupagem, do car�ter plat�nico antes enunciado. Assim, a m�sica teria um car�ter, a imagem outro, e a sobreposi��o de ambos um terceiro, resultante, em conson�ncia ou disson�ncia com o car�ter que predomina em ambos. Assim, m�sicas que possuam um car�ter 'alegre', quando utilizadas para ilustrar situa��es visuais cujo car�ter seja 'triste', forma-se uma ant�tese, ou um paradoxo, dependendo do grau de utiliza��o de ambos. A par�dia, por exemplo, se utiliza largamente deste recurso, como � o caso da ant�tese de Fantasia, sua excelente s�tira, o filme italiano Allegro non troppo ("M�sica e Fantasia", 1976, de Bruno Bozzeto). A� entra o objetivo, ou inten��o est�tica, do autor cinematogr�fico ao juntar uma imagem � uma m�sica: a resultante entrar� em conson�ncia ou disson�ncia (em graus diversos, cuja resultante � sempre uma parte muito peculiar da cria��o art�stica) com o car�ter que se quer representar de ambas como um conjunto.

Em cinema, entretanto, normalmente a m�sica � subordinada � imagem, sendo ela redundante em car�ter ao que se v� na tela, como o compositor Mauro Giorgetti destaca, em artigo intitulado Da Natureza e Poss�veis Fun��es da M�sica no Cinema:

Sabemos que o som geral de um filme se distribui em tr�s categorias sonoras bem distintas, a saber, a dos ru�dos, a dos di�logos e a da m�sica (quando houver); via de regra, a m�sica vem, hierarquicamente, em plano inferior �s outras duas categorias (com efeito, dificilmente se lhe conceder� primazia em rela��o a ru�dos e voz e, se acontecer, tratar-se-� de caso particular). Como explicar, pois, que a m�sica, ineg�vel subordinada dentro do complexo sonoro do filme, possa exercer import�ncia n�o raro decisiva no resultado final do trabalho? (Giorgetti:1998)

E temos ent�o, justamente em Fantasia, um contraponto desta fun��o subordinada da m�sica � imagem. Aqui, a imagem � que se curva ao car�ter da m�sica. Portanto, conhecendo a natureza da trilha sonora tradicional, podemos estabelecer um paralelo de an�lise justamente enfocando o seu oposto, expresso por Walt Disney em Fantasia.


copyright©2002 Filipe Salles

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