3.2. Cinema experimental: A Música Visual de Oskar Fischinger Paralelamente às experiências do som no cinema de animação, especificamente no desenho animado, uma outra corrente de criação cinematográfica despontou para os mesmos pressupostos através de paradigmas diferentes: o chamado cinema experimental. Embora hoje o termo seja bastante abrangente, durante todo o período anterior aos anos 60, o cinema experimental foi um gênero específico cuja proposição era dar ênfase especificamente à qualidade visual, criando uma linha narrativa absolutamente poética e abstrata (algumas referências sobre este gênero descrevem-no como "imagens geométricas e não objetivas" (nota #5)). Um dos principais criadores nesta área foi o alemão Oskar Fischinger (1900-1967), artista plástico e animador que teve seu interesse voltado para o cinema e a música, trabalhando especificamente com estes dois suportes; obras visuais inspiradas em obras musicais, criando o conceito de Música Visual (Visual Music). Apesar de ser pouco conhecido no meio cinematográfico, seu currículo é extenso e digno de nota: co-produziu uma companhia de animação em Munique em 1922, planejou e realizou os efeitos especiais do Woman on the Moon (1929) de Fritz Lang, em 1936 emigrou para os EUA em virtude da perseguição nazista, criando curtas-metragens para a Paramount e MGM. Trabalhou um ano nos estúdios Disney colaborando com Fantasia, e ainda teve participação no Mercury Theatre de Orson Welles, que também o indicou para curadoria do Guggelheim Museum. Durante os anos na Alemanha, experimentou e construiu diversos acessórios para o desenvolvimento da animação, e que lhe rendeu algumas inovações técnicas para este fim. Gary Morris (1998) exalta a condição de Fischinger desta maneira:
Apesar de sua importância capital, há muito pouca bibliografia publicada, a maioria artigos em revistas especializadas, cujas referências se devem particularmente ao trabalho de William Moritz, doutor pela USC, professor de animação da CalArts school, e seu principal biógrafo. De fato, Fischinger não desponta no cenário artístico contemporâneo por ter sido tratado durante toda a sua vida como artista experimental, pois o próprio Moritz designou-o como "o primeiro artista underground do cinema" (vide Grush, 1999). Mas o mesmo artigo de Gary Morris enfatiza seu pioneirismo citando que já nos anos 20, Fischinger experimentou projeções múltiplas sobrepostas em concertos multimídia ao vivo, sendo ele o precursor das estéticas dos anos 60 "incluindo animação abstrata, Andy Warhol, Op art, psicodelia e outros fenômenos sensoriais modernos" (idem, 1999). Entretanto, sua mais relevante contribuição, que o faz ser amplamente citado por isso, é a criação do conceito de Música Visual. Todas as idéias de Fischinger geravam em torno deste núcleo, ou fazendo filmes mudos inspirados em música (jazz ou erudita, eventualmente com performances ao vivo) ou, já na era do filme sonoro, a perfeita união e sincronismo de imagens com música, realizando, ainda no final dos anos 30, algumas experiências com sonorização direta sobre a película Movietone, técnica desenvolvida mais tarde por Norman McLaren. Seus filmes da fase européia dividem-se em mudos e sonoros, merecendo citação Spiritual Constructions (1927), uma série de 9 estudos (Studies 1-9), de 1929 a 1931, Liebesspiel (1931), mais 4 estudos (Studies 10-12, 1932), Circles (1933) Squares (1934) e Composition in Blue (1935). Depois, emigrou para os EUA, pois seus filmes foram taxados de 'degenerados' pelo Partido Nazista, e em solo americano produziu Allegretto (1936, para a Paramount), Optical Poem (1937), American March (1941) e Motion Painting no.1, sua última produção (1947). Fischinger ainda fez um filme publicitário, em 1934, ainda na Alemanha, para uma companhia de cigarros. Este filme, chamado Muratti Grief Ein, mostra vários cigarros tomando vida e marchando furiosamente em rígida formação, tanto satirizando o exército nacional socialista como sendo o precursor direto da seção do Aprendiz de Feiticeiro de Fantasia (muito provavelmente os animadores da Disney conheceram este trabalho de Fischinger em sua passagem pelos estúdios, ou ainda antes).
Os pressupostos de Fischinger para esta união da música e da imagem, são descritos no artigo de Moritz intitulado The Private World of Oskar Fischinger, em que um curioso encontro de Fischinger com John Cage nos remete à essência de seu pensamento estético:
Parece que foi esse o cerne do pensamento estético de Fischinger, mas não no intuito de 'ilustrar' a música (tanto que em alguns filmes mudos apenas a inspiração das imagens foi suscitada pela música), e sim para que a dimensão absoluta da imagem e da música pudesse ser vislumbrada pelo espectador em sua mais universal acepção, ou como o próprio Moritz enfatiza,
De qualquer maneira, a proposição de Fischinger gerou uma ampla base de estudos relacionados especificamente à união da música com a imagem, mas muito diferentemente da instância representada pelo estudo da trilha sonora de um filme, e sim do ponto de vista de sua essência, ou de ambas relacionadas, através do abstrato e universal, da sinestesia própria resultante desta união sensível. Tal inter-relação chama justamente a atenção pelo uso quase que exclusivo da chamada 'música absoluta', o que praticamente obriga o espectador a tratar uma obra deste tipo apenas em nível sensível. Desta forma, todas as sensações geradas pelas imagens saltam e predominam sobre uma possível interpretação simbólica, aproximando esta experiência da idéia platônica de caráter, ficando este em evidência. As sensações descritas pelos efeitos da Visual Music são notáveis, como as de Byron Grush:
Grush ainda menciona a riqueza do contraponto rítmico das formas visuais com as formas musicais, a beleza e a harmonia de suas criações com um interesse especial pela 'espiritualidade' de sua obra, conectada com a qualidade mágica de suas abstrações. Esta busca pela harmonia entre ambas, através da abstração sensível, nos parece uma maneira bastante recorrente de tratar a dimensão significante de sons ou imagens sem a necessidade da análise intelectual, cerebral e simbólica (Kandinsky, citado mais adiante, foi enfático nestes aspectos). Isso se daria, a princípio, por ser a percepção dos caráteres um elemento sensível, ou seja, não deduzido racionalmente? O fato de Grush relacionar as formas de Fischinger a elementos concretos de seu cotidiano não seria justamente uma maneira de tornar racional, inteligível, esta sensação? De qualquer forma, é notável a sentença de Grush ao perceber que a imagem de Fischinger não possui perspectiva, é vaga e solta pelo espaço como a música sustentada em si mesma, como se não houvesse a presença de nada que denotasse a técnica utilizada - a ponto de simular a percepção de tridimensionalidade. Sem dúvida, a arte de Fischinger abriu as portas para um novo universo de percepção possível, que sempre fez parte da apreciação estética mas que nunca na modernidade havia sido colocado de maneira tão transparente, a inteligibilidade sensível. Frente à todo este universo, temos já alguns elementos agrupados de maneira a fazer certo sentido: a sinestesia entre o som e a imagem, aqui utilizando o termo no sentido de sua inter-relação, tem aspectos naturais (neurológicos, digamos) que aproximam ambos os suportes, uma vez que são estruturas vibratórias reconhecíveis dentro de certas faixas pelo cérebro. Mas têm também aspectos psicológicos, na medida em que as relações entre estas freqüências são arbitrárias e não correspondem a uma escala comparativa termo-a-termo (v. adiante, no capítulo 4.3.). Destarte, pela relação de freqüência, que se traduziria na cor visual e na altura sonora, as impressões são mais subjetivas e têm afinidades próprias em cada contexto, conforme analisamos as tentativas de aproximar as cores das notas no decorrer da história. Contudo, podemos, em outras instâncias de comparação, situar afinidades naturais, cuja confluência é patente no filme Fantasia de Walt Disney. copyright©2002 Filipe Salles |
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