Julia Margaret Cameron (1815-1879): a câmera-narradora

Toda fotografia conta uma história, mas, e quando a fotografia é a própria história? Este pequeno texto poderia iniciar-se com um “era uma vez” como todo conto de fadas. Personagens fantásticos num tempo e espaço indeterminados. Príncipes e princesas, anjos e seres maravilhosos imersos numa atmosfera enevoada. As fotografias de Julia Margaret Cameron não apenas registram pessoas e instantes, elas revelam a preocupação da fotógrafa em apresentar composições expressivas por meio da perfeita utilização da técnica escolhida.

 Cameron utilizava colódio úmido sobre placas de vidro – entre 30,48 x 25,4 cm e 38,1 x 30,48 cm – como negativo. Este era um processo complexo e exigente, um pequeno erro em qualquer fase da preparação do negativo ou na sua reveleção poderia afetar drasticamente a aparência de fotografia final e sua permanência no negativo, além de muito periogoso, pois sua composição era altamente inflamável – dissolução de algodão-pólvora (ácido sulfúrico e nítrico) em mistura de álcool e éter.

Na etapa da revelação do negativo, era utilizado um papel liso revestido por uma camada de clara de ovo e solução de nitrato de prata. Quando seco, o papel era colocado em contato com o negativo por meio de um quadro-sanduíche que pressionava um contra o outro. Expostos à luz do dia, a imagem surgia através do efeito da luz sobre o papel fotosensibilizado. Assim, o tamanho do negativo geralmente determinado o tamanho da impressão. Em sua finalização, a imagem revelada era então tonalizada, tornando-se permanente.

Mesmo com tantas regras a serem seguidas, Cameron foi além, se deixou levar pela experimentação tratando seus negativos e revelações de maneira menos ortodoxa o que possibilitou a descoberta de diversos efeitos, os quais estavam diretamente relacionados com o tema escolhido. Esses efeitos pictóricos e o uso distinto do foco, no caso o desfoque, fez com que muitos fotógrafos contemporâneos a desqualificassem por causa desses “defeitos”. Essa atitude repulsiva de alguns fez com que Cameron se associasse a fotógrafos ligados ao movimento conhecido como Pictorialismo.

No contexto onde a fotografia buscava seu reconhecimento como linguagem artística, o Pictorialismo apropriava-se de temas da tradição da pintura, como paisagens, figuras femininas idealizadas, nus, alegorias, retratos, naturezas-mortas com o intuito de equiparar a fotografia à arte maior da pintura, alicerçando assim a visualidade fotográfica em qualidades plásticas e na capacidade de criar luminosidade.

A imagem fotográfica era manipulada para abranger os efeitos da realidade, na busca pela idealização do real. Mesmo com as limitações impostas pelo caráter mecânico da câmera fotográfica, o fotógrafo não se diferenciava do pintor, pois tal como ele o fotógrafo deveria possuir um sentido instintivo da beleza da linha, da forma e da cor, obtendo a síntese pela eliminação e agrupamento dos elementos, trazendo a sensação de prazer para o espectador, como era o esperado com a pintura.

Julia Margaret Cameron com seus retratos e cenas alegóricas inspiradas em obras religiosas e literárias trouxe para a fotografia a possibilidade de narrar histórias. Com sua maneira peculiar de tratar a imagem mesclando subjetividade e teatralidade, a luminosidade de suas imagens fotográficas sempre envoltas de atmosferas insólitas, fez com que seus personagens permanecessem eternos,cujos olhares alcançassem outros olhares, cativando e encantando espectadores e fotógrafos até os dias de hoje.

2015 é ano do bicentenário do nascimento de Cameron, e em comemoração Victoria and Alfred Museum exibirá 100 fotografias de seu acervo com o intuito de refletir sobre as trocas culturais que a fotógrafa tinha com o fundador do museu, Sir Henry Cole (1808-1882), o qual organizou a primeira exposição do museu com os trabalhos da fotógrafa. Também estarão inclusos trabalhos dados e vendidos ao museu e correspondências entre ela e o diretor, as quais revelam suas reflexões sobre técnicas e práticas da fotografia. A exposição ocorrerá entre 28 de novembro de 2015 e 14 de fevereiro de 2016.

 

 

Morte de Elaine; Elaine antes do Rei, 1875. Victoria and Albert Museum.



 Eu espero, 1872. The J. Paul Getty Museum.


 
Venus repreendendo Cupido e removendo suas asas, 1872. MOMA


  A Anunciação, 1868. The Metropolitan Museum Of Art.

 

Referências:

FABRIS, Annateresa. Na encruzilhada: arte e fotografia no começo do século XX. In: O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

BRÄCHER, Andréa. Julia Margaret Cameron e a fotografia de madonas. In: 21° ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 2012, Rio de Janeiro-RJ. Anais do Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Rio de Janeiro: ANPAP, 2012, p. 1352-1361.

http://www.anpap.org.br/anais/2012/pdf/simposio8/andrea_bracher.pdf

Acessado em 25 de março de 2015, às 11:40

Victoria e Albert Museum

http://www.vam.ac.uk/page/j/julia-margaret-cameron/

Acessado em 25 de março de 2015, às 12:40.

 


[1] Fabiola B. Notari é artista visual e pesquisadora. É doutoranda em Literatura e Cultura Russa no Departamento de Letras Orientais (DLO/FFLCH/USP) e mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM/ASM). Leciona História da Fotografia e Fotomontagem no Curso Superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e coordena o Grupo de Estudos Livros de artista, livros-objetos: entre vestígios e apagamentos na Casa Contemporânea. www.fabiolanotari.com