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Lee Miller (1907–1977): as faces do mal, fotografias de guerra

por Fabiola Notari

Lee Miller, Elizabeth "Lee" Miller, posteriormente conhecida como Lady Penrose, escondeu durante anos suas “memórias” de guerra...

 

Disse o SENHOR a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a tua mão. E Satanás saiu da presença do Senhor.” (Jó 1:12)

A história de Jó está presente em todos os livros religiosos, nela há a penetrante e persistente presença da violência e da brutalidade, da injustiça e da crueldade. Para Primo Levi (1919-1987), é uma história que se repete e que uma vez ocorrida, sempre poderá ser refeita. Nessa história, o leitor é convidado a compreender a realidade em que vive o ser humano em toda a sua crueza e sem concessões, de modo que ele deveria refletir sobre as tensões existentes na vida, em busca de um melhor caminho para a compreensão de si mesmo e dos princípios que ordenam o mundo. Da mesma forma a fotografia torna-se a escritura do século XX, testemunho das atrocidades que o homem pode ser capaz de realizar contra a si próprio.

Lee Miller, Elizabeth "Lee" Miller, posteriormente conhecida como Lady Penrose, escondeu durante anos suas “memórias” de guerra, até que a esposa de seu filho, Suzzana, as encontrou no sótão da casa da família, eram negativos e fotografias referentes à II Guerra Mundial e de seu momento posterior. Desde então, seu filho, Antony Penrose (1947 – ) dedica sua vida à tarefa de permanecer viva a incrível e inspiradora história de sua mãe.

Sua carreira como fotógrafa inicia-se quando ainda é muito jovem. Em Paris, em meados do início da década de 1930, o Surrealismo foi sua grande influência. Tornou-se reconhecido pelos seus retratos e fotografias de moda. Miller retorna a Nova Iorque em 1932, onde durante 2 anos tem um estúdio fotográfico bem sucedido. Ao casar-se com o empresário egípcio Aziz Eloui Bey, muda-se para o Cairo, Egito. Suas lentes buscavam agora as paisagens desérticas e as aldeias isoladas. As fotografias desse período tornam-se anunciações do que as mesmas lentes iriam registrar anos depois, só que ao invés de ruínas arquitetônicas ela encontraria o próprio ser humano como uma ruína, como o fragmento de uma existência. Em1937, ela conheceu Roland Penrose (1900-1984), o artista surrealista que viria a ser seu segundo marido, dois anos depois mudou-se para Londres, onde trabalhou como fotógrafa freelancer da Vogue.

Em 1944, tornou-se correspondente credenciada do Exército dos Estados Unidos da América unindo-se ao fotógrafo David E. Scherman (1916-1997) da Revista Life. No dia Dia D (6 de junho de 1944) acompanhou de perto as tropas norte-americanas no exterior. Miller foi provavelmente a única mulher fotojornalista na linha de frente do combate na Europa. Suas lentes testemunharam entre tantos combates, a libertação de Paris, de Buchenwald e de Dachau. Após a queda dos nazistas, junto com o fotógrafo Dave E. Sherman fotografaram as ruínas de Munique, e entre essas fotografias está uma das mais simbólicas, na qual Miller, despida de sua roupa, parecer tomar banho na banheira do apartamento de Adolf Hitler (1889-1945) e Eva Braun (1912-1945) que, no mesmo instante em que Hitler suicidava-se em seu bunker em Berlim.

Penetrando profundamente na Europa Oriental, ela cobriu cenas angustiantes de crianças que morrem em Viena, a vida camponesa na Hungria pós-guerra e, finalmente, a execução do primeiro-ministro Lazlo Bárdossy (1890-1946). Suas lentes registraram o inarrável, na tarefa-renúncia de combater a guerra com a única arma que tinha – a câmera fotográfica. Suas fotografias mostraram ao mundo as várias faces do mal. E desse mal ela nunca mais se recuperou. As imagens de dor, sofrimento e morte a perseguiram por toda a vida, como um preço a pagar pelo dom que recebeu – ser fotógrafa.

Devemos ser escutados: acima de nossas experiências individuais, fomos coletivamente testemunhas de um evento fundamental e inesperado, fundamental justamente porque inesperado, não previsto por ninguém. Aconteceu contra toda previsão; aconteceu na Europa; incrivelmente, aconteceu que todo um povo civilizado, recém-saído do intenso florescimento de Weimar, seguisse um histrião cuja figura, hoje, leva ao riso; no entanto, Adolf Hitler foi obedecido e incensado até a catástrofe. Aconteceu, logo pode acontecer de novo: este é o ponto principal de tudo quanto temos a dizer (LEVI, 1990, p. 124).

 

Lee Miller - Lee Miller in Adolf Hitler's bathtub, Munich, 1945

 

Lee Miller - Ruínas de Saint Malo, 1944

 

Lee Miller - Capela bombardeada, 1940

 

Lee Miller - Mulher italiana observando morto, 1944

 

Lee Miller - Criança morta do exército alemão, 1945

 

Lee Miller - Oficial da SS num canal, perto de Dachau, 1945

 

Referências:

BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Trad. de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes.Trad. de Luiz Sérgio Henrique. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1990.

THE LIFE OF LEE MILLER. Produção de Penrose Ltd. Direção de Robin Lough. 60 min, sonoro, colorido. Inglês.

Lee Miller Archives

http://www.leemiller.co.uk/

Acessado em 18 de janeiro de 2016, às 15:40.

The Guardian

http://www.theguardian.com/artanddesign/2013/apr/22/lee-miller-war-peace-pythons

Acessado em 18 de janeiro de 2016, 14:15.

 

Fabiola B. Notari é artista visual e pesquisadora. É doutora em Literatura e Cultura Russa no Departamento de Letras Orientais (DLO/FFLCH/USP) e mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM/ASM). Leciona História da Fotografia e Fotomontagem no Curso Superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e coordena o Grupo de Estudos Livros de artista, livros-objetos: entre vestígios e apagamentos na Casa Contemporânea.

http://casacontemporanea370.com/article/Grupo-de-Estudos-Livros-de-artista-livros-objetos-.html

Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1828197136276074