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Filme histórico: gênero ou diálogos?

“Dúbio devido à sua real ausência, inacessível embora intimamente conhecido, o caráter do passado depende de como – e de quando – é conscientemente apreendido” [3] 

 

O filme histórico, por sua própria característica não pode ser analisado dentro de uma única tradição, ou gênero cinematográfico pois estabelece uma série de diálogos que não podem ser ignorados. Diálogos tanto com outros filmes, outras artes, pintura, teatro, literatura, e com a historiografia de diversas épocas. Assim, carrega também diversas temporalidades: tanto está impregnado pelo presente, como também pode ter referencias a diversos passados. Tentarei aqui abordar esses diversos diálogos. Introdução - História e cinema: uma briga de campos? Hilda Machado defende a autonomia do filme histórico como gênero, assim como o romance histórico, que estaria sujeito às suas próprias leis internas e não à interferência do conhecimento acadêmico da história. Para ela, “...o campo historiográfico do filme como representação do passado trouxe imensas demandas ao gênero que enfrenta crescentes reivindicações de autenticidade histórica”. Claro que essas reivindicações de autenticidade do filme histórico seriam descabidas se pensarmos na representação do passado no cinema como um gênero cinematográfico e não algo que esteja dentro dos limites de atuação do historiador. No entanto, podemos analisar os filmes historicamente não buscando autenticidade, mas os seus diálogos e temporalidades. Sendo a história acadêmica uma disciplina que foi se constituindo como um campo de saber e o filme histórico um gênero artístico que se desenvolveu a partir do romance histórico, então, ambas fazem parte de tradições diferentes e possuem autonomia enquanto área. Nesse sentido, a “intervenção” excessiva dos historiadores seria fora de propósito, pois não detém a autoridade em todas as manifestações sobre o passado. A necessidade de história é algo que faz parte do ser humano. Segundo Lowenthal, que aborda muito bem a questão, a “consciência do passado é, por inúmeras razões, essencial ao nosso bem estar.”[4] A tradição de representação da história no cinema é algo que também faz parte dessa necessidade. No entanto, estudar as manifestações dessa consciência histórica também faz parte do campo do historiador. Se pensarmos no desenvolvimento da disciplina histórica, podemos perceber que nem sempre esteve desligadas do romance histórico, da ficção, e do que Bann denomina de “desejo pela história”. Para ele, essa nova cultura histórica está ligada o Romantismo, quando as manifestações históricas se proliferam: A “novela histórica”, a “pintura histórica”, espetáculos populares, museus, numa verdadeira proliferação do gênero. E esse “desejo pela história” não é apenas uma falsa consciência histórica, como muitos especialistas podem denominar, mas é também fruto de uma complexidade histórica. A história ultrapassa as barreiras da disciplina acadêmica e torna-se, muitas vezes, base para as manifestações culturais. A noção do passado como algo longínquo foi democratizado no romantismo. O culto do romance histórico começa com Walter Scott. As representações do passado no cinema e o gosto do público por tais representações poderiam ser encaixadas nesse mesmo movimento. O filme histórico seria uma continuidade do gênero, em um certo sentido, mas em novo suporte. Ao mesmo tempo em que há essa difusão da “consciência histórica”, como demonstra Bann, há também a institucionalização da mesma com a criação das disciplinas, os livros didáticos, arquivos, academias, publicação de fontes, manuais... Tendo em vista que a disciplina acadêmica da história se constituiu como um campo de saber, com suas regras e formas de legitimação, que exclui as outras formas “não-legitimas”, até para a manutenção da própria soberania, ainda considero importante diferenciar as construções da história no cinema não para condenar uma ou outra mas para refletir sobre o assunto, não tanto em termos acadêmicos, mas em termos de consciência histórica. Reflexão esta que não se restringe aos historiadores e faz parte também de muitos cineastas. O conhecimento histórico não está restrito aos acadêmicos, “...as divergências entre a história como uma disciplina e conhecimento histórico (...) são numerosas e significativas”[5]. Se refletimos sobre a constituição da disciplina histórica, percebemos também que ela não está tão distante da ficção. Ou seja, os campos estão cada vez mais misturados. A disciplina que conhecemos hoje é fruto de um processo de construção ao longo do tempo, que se originou de três linhas: literária, filosófica e erudita. A primeira é a mais antiga e pretende estabelecer exemplos e modelos. A história como mestra da vida. Nesse caso, era importante contar bem para conseguir passar a moral. A partir do século XVII, essa história assume um aspecto mais político. A maneira filosófica não é considerada como tal pois ou pende para a filosofia ou para as filosofias da história. A terceira linha, a erudita, ou dos antiquários, é herdeira dos humanistas renascentistas. Ela está junto com uma tendência de formação de gabinetes de antiguidades, antiquários, museus. Esses eruditos não se preocupam com a narrativa, não querem convencer ninguém, nem passar moral nenhuma. Nem estão preocupados com as explicações filosóficas. Em 1776, com a obra de Gibbon, essas três perspectivas são combinadas: ele é um erudito, conhecido como um dos grandes estilistas da linha inglesa e amigo dos enciclopedistas. No entanto, Ranke foi quem teve a fama de fundador da disciplina moderna. A sua forma de fazer aproximava a história da prática empírica, podendo encaixa-la na ciência. Essa constante especialização da história foi cada vez mais afastando-a da ficção, “a separação entre a narrativa histórica e ficcional foi um subproduto do final da Renascença, voltada para a veracidade e precisão das fontes históricas”[6] “E à medida que a história retirou-se para os áridos confins do rigor empírico, os romancistas assumiram os mais ricos, senão os mais fantasiosos aspectos do passado que os historiadores abandonaram.”[7] Mais recentemente, alguns historiadores procuraram transformar sua narrativa em algo legível para o público em geral, não “especializado”, aproximando-se das técnicas da narrativa ficcional, como Ladurie, Carlo Ginsburg, Natalie Zemon Davis. Atualmente os campos se misturam e a separação entre os gêneros é bem mais sutil. Os romances históricos também desempenharam um papel importante na formação de determinadas imagens do passado. Posteriormente, o cinema ocupou (e ocupa) um lugar preponderante na representação desse passado. Assim, as narrativas sobre o passado ultrapassam o terreno da disciplina acadêmica. Inclusive, segundo Lowenthal, o romance histórico era tão difundido, e tão importante que alguns historiadores se tornaram romancistas. “...a ficção histórica encontrou seu mais fiel defensor em um historiador do século XX . ‘O passado como ele existe para nós é historia sintetizada pela imaginação e fixada em um quadro por algo que equivale à ficçao’, escreveu Butterfield”[8]. Ou seja, a história e ficção estão muito relacionadas, o que não pode ser ignorado numa reflexão sobre a representação da história no cinema. As diferentes formas de representar a história no cinema Rosenstone classifica os filmes em três categorias: tradicionais, documentais e experimentais. Os filmes experimentais mesclam tanto documentários quanto ficções que tem em comum não seguir o estilo de Hollywood. “Todos combatem los códigos de representacion de los films tradicionales e, em definitiva, todos rechazan la consideración de la pantalla como una limpida ventana a un mundo ‘real’”[9] Ele elenca alguns elementos presentes nos filmes históricos tradicionais e suas contraposições possíveis. O filme tradicional cria uma narração, com inicio, meio e fim e traz a idéia de progresso humano. Se o filme tradicional explica a história através das ações dos indivíduos, personificadas, sem abordar questões sociais, Einsenstein, por exemplo, representa em seus filmes, ações coletivas, não personificadas. Mostrando assim que a história não necessariamente precisa ser vista como uma ação de heróis individuais. Contra uma idéia de filmes históricos onde o passado parece fechado e simples, alguns cineastas optam, por exemplo, por filmes pensamentos, filmes teses, ou episódicos, para criar uma variedade de pontos de vista. Tornando, desta forma, a imagem do passado em algo mais amplo e complexo. Se os filmes históricos optam pela constante criação de emoções na história, os filmes experimentais podem criar representações “desdramatizadas”. Nesse ponto, cita Glauber Rocha, que em Deus e o Diabo na terra do sol, “cria um passado brechtiano, distante y carente de emoción”. Um outro aspecto presente nos filmes históricos tradicionais é a criação de “imagens do passado”, o que cria uma “falsa historicidade” advinda da reconstituição. No entanto, os filmes podem falar sobre o passado sem mostrar uma imagem sequer que o represente, como foi feito em Shoah. E, por ultimo, contra a idéia da história como processo, os filmes podem adotar, em detrimento da linearidade, uma justaposição de imagens. Se pensarmos nesses distinções feitas por Rosenstone, dentro desse debate, podemos chamar o filme experimental de “filme histórico” das vanguardas cinematográficas. Ou seja, aparece aí a disputa entre filme hollywoodiano e seus oponentes. “La historia experimental no nos ofrece lo mismo que el film realista. En vez de abrir una ventana al pasado, expone una forma diferente de reflexionar sobre él. Su objetivo no es explicarlo todo, sino señalar algunos hechos, establecer un diálogo sobre el pasado o explciar por qué la historia tiene un sentido en el presente.” (p.55) Talvez o importante na análise do filme de história/histórico seja refletir sobre os significados da história e sobre as intenções ao fazer o filme, sem se preocupar com as convenções dramáticas ou convenções do gênero. Segundo Patrice Pavis, um “...gênero é constituído – além das normas exigidas pelas poéticas – por um conjunto de codificações que informam sobre a realidade que se supõe que o texto represente, que decidem sobre o nível da verosimilhança da ação.”[10] O gênero também dá uma chave de leitura, ou firma um contrato de leitura com o leitor/espectador. “Detectando o gênero do texto, o leitor tem em mente um certo numero de expectativas, de figuras obrigatórias que codificam e amplificam o real, permitindo ao autor não recapitular as regras do jogo e do gênero supostamente conhecido por todos, autorizando-o a satisfazer, mas também a ultrapassar essas expectativas, afastando seu texto do modelo canônico”[11]. Se a configuração de um gênero ocorre pela codificação de determinados elementos, que dão chaves de leitura para o espectador, talvez possamos usar essa classificação para filmes históricos. Podemos considerar que há algumas regras que estão presentes nos filmes, principalmente nos mais clássicos. Por exemplo, uma certa preocupação com a reconstituição, cenários, figurinos, tipos de personagens, etc...Por outro lado, podemos argumentar que muitos filmes não se inserem em um gênero, e que procuram uma outra forma de representação da história. Desta forma, talvez não seja tão produtivo essa classificação visto que pode reduzir a análise e dificultar a percepção dos vários diálogos dos filmes para além dos limites do gênero. Gênero ou diálogos? Dialogando com os presentes Um diálogo importante dos filmes históricos é aquele estabelecido com o seu presente. E pode se dar de diversas maneiras. Em várias análises, e em vários filmes, a história pode ser mais ou menos alegórica, mais ou menos presentificada. Em alguns textos podemos perceber a análise dos filmes no aspecto em que a história que representa se relaciona com o seu presente, e com seu país. É o caso, por exemplo, de Michel Éloy quando analisa a história grega no cinema. Em muitos filmes é possível fazer essa relação direta, metafórica e alegórica. Há alguns temas tratados pelo cinema, da história grega, por exemplo, cujas escolhas está diretamente relacionado com a “conveniência” de quem aborda. As escolhas dos temas históricos tem implicações na época em que está sendo realizado. Isso pode ser percebido, por exemplo, das diferentes percepções da história antiga (greco-romana) pelos americanos ou italianos. Se pensarmos, por exemplo, no atual Alexander é difícil também não tentar pensar sobre os motivos pelos quais tal filme foi feito, como foi feito e por que foi feito dessa maneira. O que significa, na história americana recente, “resgatar” um herói guerreiro que viajou por várias terras distantes expandindo uma cultura “mais civilizada”? Pensando no cinema brasileiro dos anos 60-70 que abordam a história, o uso da alegoria era constante, e “justificável”. Como explica Arnaldo Jabor, de forma bastante didática, na versão VHS de seu filme Pindorama, a necessidade do uso da alegoria para fugir da censura. E deixa claro: a alegoria era de Pindorama como o Brasil, Portugal o capital estrangeiro e Sebastião, o militar traído por esse capital. A temática história é recorrente no Cinema Novo, mas de forma diferente da tradicional. Quando os diretores da estética cinemanovista recorrem à história do Brasil fazem-no de forma a associar diretamente a história passada ao momento presente, como é o caso de Os Inconfidentes (Joaquim Pedro, 1972). Os filmes do Cinema Novo em geral são carregados de significados políticos da sua atualidade, e caracterizam-se principalmente pela contestação ao regime vigente. Contestam o regime político, contestam posturas ideológicas, formas culturais e principalmente contestam uma forma cinematográfica tradicional, a estética naturalista, importada de Hollywood. Ao tratar de temas 'históricos' adotam essa mesma postura de contestação. Glauber Rocha por exemplo, propõe em seus filmes releituras e ressignificações da história[12]. Ele interpreta, no filme Terra em Transe, o descobrimento do Brasil de forma diferente da tradicional, como escreve José Gatti: "...[o filme] questiona a Carta de Caminha, rejeita a Missa de Meirelles e abre um outro modo de fazer cinema e história..."[13]. Para esse mesmo autor: "O cinema de Glauber, além de não seguir as exigências das narrativas lineares e das estratégias naturalistas, enreda e sincretiza tempos e lugares de modo a (re)situar os eventos históricos, sem pleitear qualquer autenticidade."[14] A história, nesse sentido, era uma forma de falar da história presente sem “dar nome aos bois”, mas, identificando os atores e o cenário histórico com fortes referencias no presente. Não dá para deixar de associar o inicio de Como era gostoso meu francês, a narração “oficial” falando maravilhas e a imagem “real” mostrando o oposto. Está claro a ligação com o presente. Ou, a critica aos intelectuais, diante de uma possível revolução, no filme Os inconfidentes. O filme Xica da Silva também pode ser lido como uma alegoria da burguesia brasileira que é vendida e se associa aos elementos errados: em vez de se associar ao povo da terra, aos estudantes que lutam contra a coroa, prefere ser algo que não é vestindo roupas da corte e se associando ao elemento estrangeiro e do poder estabelecido. Mas, é claro no filme que, se Xica da Silva tem seus momentos de poder, esse também é muito limitado, não vai além do entorno da sua vida. E, no final das contas, só pode contar com o estudante para lhe amparar. E é interessante pensar também a historicidade do filme nas suas proprias escolhas. Dependendo dos acontecimentos presentes o filme pode ser feito de uma forma ou de outra, e, interpretado de uma forma ou de outra. Um caso clássico são as diferentes interpretações para o filme A Regra do Jogo nos períodos críticos das guerras. No caso da produção, podemos citar o recente Entre atos, que, acredito, se tivesse sido montado logo após a eleição de Lula, provavelmente o tom do filme seria mais entusiasta e menos dúbio do que é. Há outros exemplos em que o presente define determinadas escolhas pontuais do filme que podem levar a interpretações diversas. Ou seja, a historicidade do filme não está apenas em onde é realizado mas em quando é realizado. Ao analisar as representações da História Grega no cinema, Éloy escreve sobre as diferentes representações da história de acordo com o país. A história romana é representada de forma muito diferente pelos americanos, ou pelos italianos. Esse autor enumera as várias “adaptações”, poderíamos dizer assim, da história grega e romana no cinema. E em vários momentos identifica a abordagem dos filmes com sua época contemporânea: “comment ne pas reconnaître dans La bataille de Thermopyles une fable patriotique grecque (le patron de la Fox est, alors, Spyros Skouras, coincidence?) dédiée à la “Grande Idée” qui a subi un terrible revers `Amyrne en 1921, et s’appretê à en subir un outre à Chypre (1974) quand Leónidas rétorque fièrement à l’ennemi, et en grec moderne: (...) (“Viens les prendre [mes armes]!”) inscription qui partout en Grèce, desThermopyles à Mistra, figure sur le socle des estatues du héros” Podemos citar também o exemplo das polêmicas geradas em torno de Danton, o processo da revolução (Andrzej Wajda, 1983). Robert Darton analisa como o filme foi questionado de um forma na Polônia, e de outras na França, de acordo com as diferentes análises do filme. Na Polônia faziam relações diretas que viam entre os personagens e os políticos da época, o que levou a declaração de Wajda, contra a simplificação da análise, ao Le Monde: “Danton não é Lech Walesa e Robespierre não é Juruzelski!”. No entanto, a representação da Revolução Francesa, os significados e as escolhas do filme levaram a polêmicas acirradas na França por aqueles que querem controlar a memória da Revolução. E isso também teve uma relação direta com o momento político em que o filme foi visto.Como escreveu Darton, “O filme poderia ser visto de maneiras completamente diferentes. Não foi o mesmo em Varsóvia e Paris. Sua capacidade de gerar um duplo sentido sugere que o próprio significado é modelado pelo contexto e que a significação da Revolução Francesa nunca se esgotará. O debate pode parecer uma inofensiva luta de sombras, mas ainda assim há vida nas sombras”.[15] Se, por um lado, a história presente se apresente como metáfora em alguns filmes filmes, Pasolini faz uma outra leitura do presente, por exemplo, em Evangelho, e aborda uma outra historicidade. Ele filma a história naquilo que permanece ao longo do tempo. Como afirma Amoroso, “é bem verdade que o cuidado em mais sugerir um clima do que fazer reconstrução histórica já estava presente em certa estilização, obtida pela luz e pela fotografia, mesmo quando Pasolini filmava a periferia romana. Mas agora, a partir do Evangelho, os filmes passarão a ser cada vez mais poéticos” [16] Parece que busca, nessa poesia “elevar à superfície, todas as camadas da história que foram se acumulando”[17].O presente, o que existe na contemporaneidade, é também fruto e herança, não mensurável, de um complexo desenrolar do tempo. Não, evidentemente, que o presente seja resultado, numa relação simplista de causa e efeito, do passado, mas, de alguma forma permanece... “São elementos historicamente mortos mas humanamente vivos que nos compõem. Penso que seria ingênuo, superficial, faccioso negar ou ignorar sua existência. Eu, pessoalmente, sou anticlerical (não tenho medo de afirma-lo), mas sei que sobre mim pesam 2 mil anos de cristianismo...”, como afirmou Pasolini[18]. Claro que não pretendo aqui discutir a obra de Pasolini, um artista tão amplo e complexo, mas abordar esse aspecto da “presentificação” dos cenários históricos em seus filmes. A negação da reconstituição, nesse caso se faz de forma interessante. Pasolini visava ficar o mais longe possível do filme realista. Diferente da grande maioria dos filmes históricos que fazem questão de uma reconstituição pretensamente minuciosa, e impossível, de fato. Como escreve Amoroso, quando escolhia as locações para seu filme Evangelho, Pasolini, depois de uma viagem a Palestina, “...descarta totalmente a possibilidade de filmar o Evangelho no local. A região ser alterara tanto que seria inútil tentar vê-la capaz de sugerir um espaço antigo, como descrito pelo Novo Testamento. Opta pelo sul da Itália, parte do país que ainda vive fora da modernidade e apresenta nos rostos de seus habitantes a mesma aridez e os mesmos traços primitivos”[19]. Nesse caso, esse passado ao qual pretende remontar, da Bíblia, pode ser presenciado no sul da Itália. Ali ele poderia sugerir, sem reconstituir, o clima que pretendia. Um filme como São Jerônimo (Julio Bressane) parece seguir essa mesma linha. O deserto no qual São Jerônimo viveu, na idade média, é um sertão brasileiro. E as músicas também ajudam nessa identificação. Se o físico do filme é identificado no presente, com cenários, música, fala das personagens em português, o texto, a fala das personagens, é remetida à problemática de São Jerônimo, seu processo de martírio e a latinização da Bíblia. Ou seja, o presente, nesses filmes, não aparece apenas em referencias alegóricas, mas também de forma palpável, material. E essa postura problematiza, a meu ver, a reconstituição impossível tentada nos filmes históricos. Aqui entramos em uma questão importante: a da reconstituição. Nesse aspecto podemos abordar a tentativa de criar uma identificação com o espectador, visto que ela daria uma falsa impressão de que é uma “janela para o passado”. E, por outro lado, o diálogo dos filmes com pinturas históricas, já que muitas vezes essas são as fontes materiais e visuais para a construção do filme. Vejamos rapidamente essa questão das pinturas históricas[20]. Dialogando com as imagens Segundo Mariarosaria Fabris, “...a pintura forneceu à nova arte figurativa uma série de soluções no que diz respeito a problemas de perspectiva, enquadramento, composição, iluminação e até mesmo interpretação...”[21]. A mesma autora, analisando apenas o cinema italiano, comenta que nos anos 1930 e 1940, “...a mise-en-scène dos filmes de ambientação histórica foi revista em base a uma vasta pesquisa das fontes iconográficas... “[22]. Muitos filmes históricos estabelecem esse diálogo com fontes iconográficas e pinturas de história, o principal gênero das artes plásticas na Academia Francesa[23], durante muito tempo. Esse gênero de pintura esteve presente na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, que nasceu e se desenvolveu durante o Império “...como um projeto político-estético.”[24] Por onde passaram Victor Meireles e Pedro Américo.Segundo Tomaz Perez Vejo a pintura histórica foi desenvolvida juntamente com a formação do Estado nacional em meados do século XIX. Podendo ser considerado como “la representación del pasado de la nación y de sus obsesiones colectivas. La nación, nuevo sujeto religioso, necesitaba una plasmación plástica y esto es lo que hace la pintura de historia: dar imágenes a la nueva religión.”[25]. Os pintores mais significativos do gênero, no Brasil, foram Jean Baptiste Debret, Victor Meirelles e Pedro Américo[26]. Sem entrar em detalhes, é, no entanto, importante compreender que ocupam um espaço na história oficial e contribuem para criar um discurso sobre o passado nacional. Em vários filmes essas imagens aparecem como documentos, no entanto, documentos que precisam ser autênticos. Como ressalta Morettin, no caso do filme Os Bandeirantes, a iconografia usada é autenticada por Afonso de Taunay, diretor do Museu Paulista: “...este estatuto é atribuído tanto pela existência de efígies antigas de um personagem, se possível contemporâneas a ele, ou pelas qualidades do artista que recompõe um período a partir das poucas informações de que dispõe.”[27]. No clássico Independência ou Morte, por exemplo, a iconografia funciona neste sentido, como busca de autenticação e também como um diálogo com uma história oficial. No clímax do filme o quadro de Pedro Américo é reproduzido na tentativa de conter o máximo de precisão, incluindo o camponês e o carro de boi, que aparecem no canto inferior esquerdo e a pequena casa, no canto superior direito. É interessante notar que o camponês permanece no mesmo lugar, estático, assistindo, durante toda a composição da cena. Essa espera é semelhante à espera do click de uma máquina fotográfica. Assim, é como se o quadro de Pedro Américo[28], reproduzido no filme, fosse uma foto do momento.[29] Uma imagem bastante vulgarizada sobre a independência e, dentre outras representações, “...a que mais profundamente enraizou-se no imaginário social, tornando-se parte integrante de nossas heranças culturais tanto quanto o episódio que procurou perpetuar.”[30] Mas, por que a escolha e não de outra, como o quadro a Proclamação da Independência (1844)[31] de François-René Moreaux? A imagem escolhida foi aquela mais conhecida e divulgada como sendo a “verdade” e a que ocupa este “lugar de memória”. Se nos determos um pouco na confecção do quadro de Pedro Américo, através da análise de um texto muito esclarecedor escrito pelo pintor, como justificativa da sua pintura, talvez possamos compreender melhor as escolhas por trás da criação deste “lugar de memória”. No início do texto, ele já anuncia o que pensa sobre esse tipo de pintura. E, ao mesmo tempo que declara a necessidade de estar “baseado na verdade”, não teme defender as seleções e omissões para que o objetivo do pintor seja alcançado: “E se o historiador afasta dos seus quadros todos os incidentes perturbadores da clareza das suas lições e da magnitude de seus fins, com muito mais razão o faz o artista, que procede dominado pela idéia da impressão estética que deverá produzir no espectador a sua obra”.[32] Ele explica melhor citando as suas próprias omissões. Refere-se à possibilidade de D.Pedro estar montando, no dia do famoso grito, em vez de um belo cavalo, um asno. Porém, diante das duas possibilidades “...não há dúvida que o pintor, no interesse moral e artístico do seu trabalho, deverá preferir a primeira afirmativa...”[33], a qual dizia que D. Pedro montava um cavalo (zaino). Essa questão do interesse moral fica mais clara quando se refere ao incômodo gástrico de D. Pedro e fala como deveria representar a ilustre personagem: “... não deveria o artista alterar desfavoravelmente os traços do augusto moço naquele momento solene; porque se tal ocorrência foi com efeito real, e até mereceu a atenção do cronista, ela é indigna da história, contrária à intenção moral da pintura, e por conseqüência imerecedora da contemplação dos pósteros.”[34] O incômodo de D. Pedro é indigno da história, mesmo tendo acontecido, tal desconcerto não pode aparecer na pintura. Assim, fica clara a frase: “A realidade inspira, e não escraviza o pintor. Inspira-o naquilo que ela encerra digno de ser oferecido à contemplação pública, mas não o escraviza o quanto encobre.”[35]. O que está em jogo na representação é a imagem que se quer criar de tal personagem e a imagem que se quer deixar para o futuro. E aqueles que a reproduzem como um testemunho da realidade, não percebem, ou não querem perceber, o jogo e as intenções por trás de tal criação, limitando-se, apenas, a perpetuar esse discurso.A autora Cecília H. Salles[36] mapeia algumas questões que envolveram a realização do quadro. A sua difusão, reprodução e vulgarização ocultam as contradições e interesses presentes nas construções de memória. E o filme adota esta mesma postura: o quadro é tratado como uma síntese e a verdade sobre a independência. Não há questionamentos. E é interessante notar, através de depoimentos dos realizadores, que a escolha pela reprodução deste quadro não é uma opção ignorante, mas uma opção política. Tanto o produtor quanto o diretor mostraram[37] conhecer, por exemplo, a montaria de D.Pedro, o suposto asno, e sua suposta disfunção intestinal no dia do grito. No entanto, declararam que tal representação estaria contra os anseios do filme: homenagear um momento histórico. Declaração esta semelhante a do pintor em um texto que justifica as suas escolhas em função de um objetivo mais nobre. Esta aparente contradição, em Pedro Américo, é explicada por Claudia Valladão Mattos como sendo uma tentativa de conciliação das duas tendências conflitantes na época, realismo e idealismo para a pintura de história. E a proposta do artista seria “...’realismo’ no detalhe, ‘idealismo’ no conjunto da composição...”[38]. Em ambos há uma mistura entre a conveniência de fazer alterações em função de um determinado objetivo e a elaboração de um discurso que proclama veracidade.[39] Em um artigo, o autor toca no cerne da questão, ao tentar defender o filme de ataques que questionavam a “reconstituição perfeita” do quadro de Pedro Américo e sua reprodução no filme. E justifica que, mesmo havendo falhas no quadro, este não poderia deixar de ser usado como base, pois “(...) de tal forma se vulgarizou a tela de Pedro Américo que se tornou, por assim dizer, a versão oficial do acontecimento. Deixar de seguir à risca a disposição de suas figuras e de obedecer aos figurinos que ele criou representaria para o grande público uma fuga à realidade histórica, mesmo tendo entrado, nessa composição, alguma fantasia, como em geral acontece nas interpretações artísticas de batalhas e outros feitos históricos.”[40](grifo meu) Ou seja, não é uma questão de somente reproduzir fielmente um passado histórico, mas de reproduzir aquele passado conhecido das pessoas. Dialogo com o público: identificação ou estranhamento? Os filmes históricos buscam, em geral, estabelecer uma verossimilhança com o que o público considera como sendo a história representada, ou seja, a representação não pode fugir do que o público imagina que seja aquele período histórico. Nesse aspecto, funcionaria como gênero pelo diálogo que os filmes estabelecem entre si. Pois muitas das imagens do passado histórico presentes na mente do espectador são construídas pelos próprios filmes. A imagem que se tem de Roma foi construída pelos inúmeros filmes sobre o período. Esse diálogo entre representação filmica e o “senso comum” pode ser percebido em vários filmes. Por exemplo, na reconstituição do filme Independência ou morte, foi escolhido o prédio do Itamaraty como cenário, apesar das constantes proclamações de que seriam utilizados os “locais onde realmente aconteceram os fatos”. No entanto, esses “locais verdadeiros” (Palácio São Cristóvão, por exemplo), estava descaracterizado, por isso, escolheram aquele que poderia estar de acordo com a imagem do público a respeito de uma corte: muito ouro, castiçais, cortinas de veludo. Importando assim, não o “local verdadeiro” mas estar de acordo com a imagem que o público tem a respeito do passado. Outro exemplo é o caso da textura da imagem de Xangô de Baker Street que foi pensada para criar uma identificação com a imagem que o público tem sobre aquele momento histórico, baseado em pinturas de viajantes. Assim, a direção de arte procurou reproduzir materialmente a imagem do filme imitando a textura das pinturas. Poderíamos citar também o caso da “franja na testa” dos romanos do filme Julio César (Joseph Mankiewicz, 1953 – EUA/p&b). Aí, a franja na testa também estava de acordo com um determinado estereótipo que o público aceita como sendo “os romanos”. Roland Barthes, em Mitologias, critica essa representação. E acredito que esta crítica aponta alguns dos procedimentos desse gênero cinematográfico. Para Barthes, o “signo opera aqui abertamente. A madeixa na testa torna tudo bem claro, ninguém pode duvidar de que está na Roma antiga. (...) todos se sentem seguros, instalados na tranqüila certeza de um universo sem duplicidade, onde os romanos são romanos pelo signo mais visível, o cabelo na testa”[41]. Para ele, o signo só deveria ser apresentado de duas formas: ou totalmente explicita (como no teatro chinês: uma bandeira é igual a um regimento) ou tão integrado na representação que chega a ser imperceptível. “Mas o signo intermediário (a franja da romanidade ou a transpiração do pensamento) denuncia um espetáculo degradado que teme tanto a verdade ingênua quanto o artifício total.” O espetáculo burguês, “entre o signo intelectual e o signo visceral, esta arte coloca hipocritamente um signo bastardo, simultaneamente elíptico e pretensioso que batiza com o nome pomposo de ‘natural’”. Essa mesma critica de Barthes pode ser estendida à “reconstituição”. Muitas vezes, ela aparece em alguns filmes como “suficiente” para o significado histórico. Por exemplo, a reconstituição em Guerra de Canudos. Podemos comparar a “franja na testa” com a “barba” de Antonio Conselheiro, como se aquela figura grotesca desse conta dos significados atribuídos a Antonio Conselheiro, e fosse suficiente para entender: aquele é Antônio Conselheiro. Inclusive, essa obsessão pela “representação autentica” no cinema, além de dialogar com o “senso comum” do passado, também confunde o espectador que acaba “acreditando” na tela. Além dessa “paixão pela autenticidade” distorcer “o enredo ao ornamentá-lo exageradamente com detalhes autênticos”[42], ainda dificulta a percepção de que são fábulas evidentes, como ocorre nos romances. O “...tom de certeza absoluta, envolta em anonimato autorizado, empresta a essas sagas o caráter de verdade revelada. Nas histórias escritas, logo de inicio, a voz do autor no alerta para sua perspectiva; nas sagas exibidas na televisão [cinema], a apresentação elimina a especificidade e responsabilidades autorais”[43] filme histórico, que se insere no gênero, podem ser associados, na maior parte das vezes, aos filmes de representação clássica e naturalista. E nesse ponto, a critica de Jean Claude Bernardet é bastante pertinente. Há uma relação muito estreita entre um pensamento histórico, que busca a objetividade, com a maneira como são feitos os filmes na estética naturalista, e aí se encaixam os de temas históricos tradicionais. Segundo Ramos e Bernardet, esta é a principal característica do filme histórico. ...o filme histórico naturalista oferece às pessoas a ilusão de estarem diante dos fatos narrados (...) Há aqui o ocultamento da linguagem, pois esta adquire total transparência. Desta maneira, o espectador não se pergunta em qual linha teórica a história do filme está sendo contada. Ela é mostrada como se fosse a única interpretação do fato, e a linguagem assume papel fundamental.[44] Rosenstone também faz uma crítica semelhante. Os filmes históricos tradicionais nos traz “la idéia de que podemos ver directamente um mundo ‘real’, ya sea presente o pasado, a través de la pantalla. Esta ‘ficcion’ es semejante a otra de la historia escrita, a saber: que su base documental y empirica certifica la ‘realidad’ del mundo que crea e analiza.”[45] A reconstituição é um elemento importante pela sua presença ou ausência. Alguns filmes tentam subverter essa representação, como Carlota Joaquina, Satirycon, Medeia. Acredito que a postura de Pasolini de não reconstituir traz o elemento importante do estranhamento. Talvez um dos problemas desse tipo de representação seja a identificação. E, sendo a consciência histórica formada também pela noção de que o passado é diferente do presente, a busca pela identificação do filme com o público quebra essa noção. O efeito de estranhamento, Efeito-V, é caracterizado como “o contrário do efeito de real. O efeito de estranhamento mostra, cita e critica um elemento da representação; ele o ‘desconstroi’, coloca-o à distancia por sua aparência pouco habitual e pela referencia explicita a seu caráter artificial e artístico.”[46] Se voltarmos aos filmes Carlota, Satiricon e Medeia, eles tentam ir contra a representação costumeira do passado, criando um choque entre o que aparece na tela e o que o espectador espera ver. Esse é um elemento estético importante, a meu ver, para refletir sobre o passado. O estranhamento, pela proposta de Brecht, é muito apropriado para história. Frederic Jameson propõe uma abordagem do Efeito-V: “...o familiar ou habitual é ...identificado com o “natural’, e seu estranhamento desvela aquela aparência, que sugere o imutável e o eterno, e mostra que o objeto é ‘histórico’. A isso deve-se acrescentar, como corolário político, que é feito ou construído por seres humanos e, assim sendo, também pode ser mudado por eles ou completamente substituído”[47]. Ou seja, é uma utilização do estranhamento totalmente apropriada para a abordagem da história. Quando Barthes critica a “franja” na testa dos romanos, está criticando também essa naturalização do signo. Sendo, então, o cinema uma das formas de manifestação sobre o passado, ele também atua na formação de uma consciência histórica. Nesse sentido, dependendo da maneira como é construído, pode influenciar diretamente na atuação dos indivíduos no tempo presente e futuro. Dialogando com as letras Um outro diálogo importante estabelecido pelos filmes históricos são as diversas recriações, adaptações, encenações da história. Tanto pela literatura, teatro, cinema e pelas pesquisas históricas. Assim como muitos filmes estabelecem essa relação com a história presente ao qual está vinculado, também estabelece relações com uma determinada tradição, com determinada literatura ou historiografia. E, da mesma forma, essas obras se relacionam com o próprio presente. Assim, quando são escolhidas como bases para filmes atuais, carregam também outras temporalidades e historicidades.Por exemplo, Wike analisa o filme Spartacus, de George Kleine e vai questionando os diversos diálogos que o filme estabelece. E como essa história do escravo guerreiro que se rebelou contra o Estado repressor tem muito mais a ver com o período quando o debate sobre a abolição da escravatura estava em constante debate do que propriamente com a época em que ocorreu. Mas, também estabelece outros diálogos e se vincula a tradições de perpetuações de determinadas histórias, igualmente históricas. Como escreve Wike, “the tradition on which George Kleine drew to launch an Italian film about Spartacus on the American market stems from de mid-eighteenth century, when Spartacus began to be elevated in Western European literature, historiography, political rhetoric, and visual art into an idealized champion of both the oppressed and the enslaved”[48]. Esse autor cita e analisa também as relações do filme, com, por exemplo, o romance escrito por Raffaelo Giovagnoli, em 1874.Nesse ponto, há uma questão interessante sobre as possibilidades de representação da história e suas temporalidades. Se, a “adaptação” dessa história de Spartacus não é “verossímil” com o passado que representa, é, no entanto, relacionado a um outro passado, o da abolição. Claro que a relação não é tão direta com um passado especifico, mas pode estabelecer relações com vários passados, e ao retomar os vários diálogos que o filme estabelece é possível perceber esses vários outros passados que carrega. No caso, por exemplo, de Carlota Joaquina, a analise dos seus diálogos com a historiografia ou literatura nos possibilita compreender as escolhas do filme. “Ao comparar as obras listadas na bibliografia com o filme é possível perceber a preponderância, por exemplo, no uso de alguns livros, principalmente, Bertita Harding, O Trono do Amazonas, Luiz Edmundo, Dom João VI no Rio de Janeiro e A Infanta Carlota Joaquina de Chrysanthème” [49]. A diretora e roteirista, a partir de vários livros foram selecionando e compondo as cenas do filme. Claro que não adianta identificar simplesmente essas obras no intuito de buscar veracidade, mas no intuito de identificar e problematizar os diálogos do filme e suas temporalidades. Concluindo... Um filme histórico, mesmo com seu alto grau de ficccionalização carrega, necessariamente, diversas temporalidades. A expressão de Marc Ferro “todo filme é histórico” aborda uma das temporalidades que pode ser analisada em todos os filmes, por isso históricos, que é o presente. No entanto, o filme histórico dialoga com o presente, com o passado, aborda o presente das obras de base passadas, e pode, inclusive, problematizar a história. Da mesma maneira que os historiadores voltam-se para as narrativas ficcionais utilizando as suas formas tanto para expressar, quanto para compreender a sua própria narrativa, há atualmente historiadores que fazem o mesmo movimento em direção ao cinema. Ou seja, acreditam no cinema (ficcional/documental) como forma de exposição de suas considerações. Se, como escreve Pavis, a verdade histórica é muito diferente da dramática, como poderia a história se adequar aos formatos fílmicos? Se todos concordam que no trabalho historiográfico também há vários níveis de ficcionalização, então, ela poderia ser ampliada ao cinema. Nesse sentido, as preocupações de Robert Rosenstone são fundamentais. Para ele, o cinema pode auxiliar o historiador na compreensão do passado. E acredita na possibilidade deste meio como ferramenta para o conhecimento histórico. Para ele, o cinema é “...o meio de expressão contemporâneo capaz de tratar o passado e de atrair a grandes audiências. Não parece evidente que este é o formato para se elaborar trabalhos históricos que cheguem ao grande público? Pode-se fazer filmes históricos que satisfaçam ao que temos dedicado nossas vidas: a entender, analisar e recriar o passado com palavras? “[50]Para ele, apesar de toda a controvérsia que gera, a história pode satisfatoriamente ser representada no cinema.Segundo ele, “...em todas as partes, incluso en Hollywood, ha habido focos de resistencia, directores que han huido de las convenciones de los films populares, cineastas como Carl Dreyer, Segei Eisenstein y Roberto Rosselini. En sus mejores obras – La pasión de Juana de Arco, Octubre, La toma del poder de Luis XIV – el pasado no es un marco para una serie de aventuras, sino que tiene un valor sociológico.”[51] Lowenthal, ao abordar a distinção entre história e ficção, escreve que “...os historiadores que afirmam fidelidade única ao passado e escritores de ficção que reivindicam total isenção dessa fidelidade enganam a si próprios e a seus leitores. A diferença entre história e ficção reside mais no propósito do que no conteúdo.”[52] Talvez possamos adotar aqui a mesma diferenciação: a diferença entre os filmes estariam no propósito.


REFERÊNCIAS:
[1] é parte de uma pesquisa de doutorado desenvolvida no departamento de História da Universidade Federal Fluminense, sob orientação da prof. Dra. Ana Maria Mauad, com financiamento da Capes.
[2] Doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense
[3] LOWENTHAL, David. “Como conhecemos o passado” in: Proj. História, n.17/nov.1998 - S.Paulo:EDUC, 1981- p.75
[4] LOWENTHAL, p.64
[5] LOWENTHAL, op.cit. p.107
[6] LOWENTHAL, p.127
[7] LOWENTHAL, p.127
[8] LOWENTHAL, p.129
[9] ROSENSTONE, El pasado...p.49
[10] PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.182
[11] PAVIS, p.182
[12]GATTI, José. "(Re)descobrimentos do Brasil" in: Cinemais Revista de cinema e outras questões audiovisuais. Número 16 - março/abril de 1999 -Ministério da Cultura/Sec. Desenvolvimento do Audiovisual - pp.59-74.
[13] GATTI, op.cit. p. 72
[14] GATTI, op.cit p.73
[15] DARTON, Robert. O Beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.63
[16] AMOROSO, Maria Betânia. Píer Paolo Pasolini. São Paulo:Cosac&Naify, 2002, p.54
[17] idem
[18] idem, p.55
[19] idem, p.52
[20] Questão desenvolvida na dissertação de mestrado FONSECA, Vitória A. História Imaginada no Cinema. Unicamp, 2002.
[21] FABRIS, Mariarosaria. “Relações entre cinema e pintura: Senso e os macchiaioli” in: Porto Alegre Revista de Artes Visuais – Porto Alegre, v.5, n.8, pp-25-31, nov.1993 – p.25
[22] FABRIS, Mariarosaria. Idem – p.26
[23] Segundo MATTOS, in: OLIVEIRA, Cecília H.S e MATTOS, Cláudia Valladão (orgs). O Brado do Ipiranga. São Paulo: Editora da Univ. São Paulo, 1999 - p. 122 e COLI, Jorge. “A pintura e o olhar sobre si: Victor Meirelles e a invenção de uma história visual no século XIX brasileiro” in: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1988 – p.375-404. – p.376
[24] MATTOS, C.V. “Imagem e Palavra” in: O Brado do Ipiranga. São Paulo: Editora da Univ. São Paulo, 1999 – p.80
[25] VEJO, Tomas Perez. “La pintura de historia y la invención de las naciones” in: Locus revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Editora UFJF, 1999 – vol.5, no. 1 – pp.139-159 – p.151
[26] Pedro Américo de Figueiredo e Melo, nasceu em 1843 na cidade de Areias-Paraíba e morreu em 1905 (Florença/Itália). Estudou na Academia de Belas Artes em Paris e na Universidade de Bruxelas. Dados do Instituto Cultural Itaú – Artes Visuais.
[27]MORETTIN, Quadros em movimento... op.cit, p.120
[28] Independência ou Morte! Óleo sobre tela, 7,60x4,15, 1888 – Acervo do Museu Paulista. In: OLIVEIRA, Cecília H.S e MATTOS, Cláudia Valladão (orgs). O Brado do Ipiranga. São Paulo: Editora da Univ. São Paulo, 1999 – p.63 - Sobre a reprodução do quadro no filme veja o item "reconstituição em filmes históricos".
[29] Em Sinfonia de uma metrópole, segundo Morettin, este quadro aparece como um “pause” do videocassete.
[30] OLIVEIRA, Cecília H.S. “O Brado do Ipiranga: Apontamentos sobre a Obra de Pedro Américo e a Configuração da Memória da Independencia” in: OLIVEIRA, op.cit., p.64
[31] Mattos faz uma comparação interessante destes dois quadros e mostra como em Moreaux há uma concepção diferente de poder pois este emana do céu; diferentemente de Pedro Américo que valoriza a ação do governante, do ser humano, numa atitude heróica.
[32] AMÉRICO, Pedro “o Brado do Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil” in: OLIVEIRA, Cecília H.S e MATTOS, Cláudia Valladão (orgs). O Brado do Ipiranga. São Paulo: Editora da Univ. São Paulo, 1999 – p.19
[33] AMÉRICO, Pedro, idem, p.20
[34] idem
[35] AMÉRICO, Pedro op.cit., p.19
[36] MATTOS, Cláudia Valladão. “Algumas Palabras acerca do Texto ‘O Brado do Ipiranga’ e de Sua Ligação com a Tradição Acadêmica.” In: OLIVEIRA, Cecília H.S e MATTOS, Cláudia Valladão (orgs). Op.cit., p.132
[37] Oswaldo Massaini (produtor), depoimento em vídeo do acervo do Museu de Imagem e Som de São Paulo. Carlos Coimbra (diretor), em entrevista concedida para esta pesquisa. Pedro Américo em texto explicativo do quadro. O quadro foi reproduzido em OLIVEIRA, Cecília H.S e MATTOS, Cláudia Valladão (orgs). O Brado do Ipiranga. São Paulo: Editora da Univ. São Paulo, 1999.
[38] OLIVEIRA, Cecília H.S e MATTOS, Cláudia Valladão (orgs). O Brado do Ipiranga. São Paulo: Editora da Univ. São Paulo, 1999.
[39] Questão melhor abordada no tópico “A reconstituição’ em filmes históricos’, capítulo 3.
[40] Magalhães Junior. “Independência ou morte!” Revista O Cruzeiro (?) p.89
[41] BARTHES, Roland. Mitologias, p.21
[42] LOWENTHAL, p. 137
[43] LOWENTHAL, p.,137
[44] Ramos, Alcides e Bernardet, J.Claude. Cinema e História do Brasil . S. Paulo: Contexto, 1988. p.15
[45] ROSENSTONE, El pasado... p.49
[46] PAVIS, op.cit. p.119
[47] JAMESON, Frederic. O método Brecht. Petrópolis: Ed. Vozes, 1999 – p.65
[48] WIKE, Maria “Spartacus: Testing the Strength of the body Politic”, p.36 in:
[49] Analise desenvolvida na dissertação de mestrado Fonseca, Vitória A. História Imaginada no cinema. Unicamp, 2002
[50] ROSENSTONE, Robert. “História em imagens História em palavras – reflexões sobre as possibilidades de plasmar a história em imagens. In: Revista O Olho da História. N.5, 1988.pp.105-116- p.107
[51] ROSENSTONE, Robert. El pasado en imágenes – el desafio del cine a nuestra idea de la historia. Editorial Ariel: Barcelona, 1997 – p.18
[52] LOWENTHAL, p.134