Cinema hollywoodiano no processo de construção da civilidade moderna - São Paulo, 1920

São Paulo na década de 20 passava por transformações de todas as naturezas: econômicas, sociais, administrativas e principalmente culturais. Seu semblante não era totalmente reconhecível pois ainda se formava, apoiado, por um lado na influência do modelo civilizador e modernizador da Belle Époqué européia - particularmente a francesa - e de outro numa sólida herança cultural, advinda das nossas raízes coloniais. 

A despeito do processo de ‘regeneração’, caracterizado pela reforma urbana do Rio de Janeiro, pela modernização do porto, pela campanha saneadora da vacina obrigatória e a Grande Exposição Nacional; frente a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de exclusão dos grupos populares da área central da cidade, e um cosmopolitismo profundamente identificado com a vida parisiense; o que se via em São Paulo na mesma época divergia completamente desse quadro. 


A cidade de São Paulo era caracterizada por um cosmopolitismo marcado pelos tensionamentos advindos da coexistência de diferentes temporalidades, onde conviviam lado a lado nas produções e reproduções da vida cotidiana, o arcaico e o moderno, o novo e o velho, configurando diversos ritmos sociais que imprimiam à cidade uma feição heterogênea. Nos anos 20, São Paulo encarnava a imagem de uma metrópole moderna e de um país periférico, das enchentes e da pobreza, equilibrando-se entre um modelo europeu de urbanidade e a convivência inventiva e improvisada entre inúmeras etnias e entre os novos grupos que se formavam.

As camadas médias iam consolidando-se com trabalhadores dos setores ferroviário, dos serviços urbanos, como empresas de energia, transportes, água, telefone, comércio importador, construção civil, que cresciam junto com a cidade. Engrossavam as camadas médias, os pequenos proprietários rurais empobrecidos que, na cidade, passaram a ocupar os cargos mais elevados do aparelho burocrático ou tornaram-se profissionais liberais. Os brasileiros de origem mais pobre e os imigrantes ocupavam os cargos inferiores no funcionalismo público, nos serviços de escritório, nos setores bancário e comercial.
A essas transformações sociais e urbanas correspondia uma nova experimentação do viver na cidade. São Paulo transformava-se numa metrópole moderna, ainda que contraditória, cuja principal característica era a de ser um espaço ao mesmo tempo arregimentador e fragmentário, convidativo e ameaçador, "(...) a metrópole moderna recebe uma representação ambivalente como o local de origem de um caos avassalador e a matriz de uma nova vitalidade emancipadora"(SEVCENKO, 1992 p.18).

Em meio a esse panorama, imagens de cunho futurista alinham-se ao longo de inúmeros textos de propaganda de uma São Paulo moderna, propondo equivalências objetivas entre a cidade, a modernidade a uma nova cultura. Numa sobreposição otimista e freqüentemente acrítica, destacam-se as visões da cidade tentacular, da cidade em crescimento, da cidade industrial, da cidade, enfim moderna, à qual não falta nenhum dos atributos exteriores que definem o processo de modernização acelerado desde o início do século XX.

Na visão dos modernistas, como Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia; a cidade era definida pela sua audaciosa verticalização, suas ruas de fábricas e seus conjuntos de palácios americanos, destacando-se o caráter de ‘metrópole febril, milionária, imprevistamente enorme’. Essa visão futurista é também característica marcante da percepção do poeta Blaise Cendrars, que transforma São Paulo no epítome do espírito moderno, na concretização da "cidade futurista", ritmada pelo trânsito, pelas multidões, caracterizada por um paisagem artificial, na qual soam buzinas e piscam letreiros.

Existia, por parte dos modernistas, o afã propagandístico da modernidade, dos novos modos de vida nessa metrópole americana e da construção da figura de um novo homem, cosmopolita e atualizado, diferente do tipo brasileiro convencional.

Menotti del Picchia era um entusiasta da imagem heróica da modernidade de São Paulo, recorrendo à visão modernista da cidade e do homem moderno, usando para isso toda sorte de recursos retóricos. Em artigos como "Matemos Peri!" (Jornal do Comércio, 23/01/1921) e "Peri" (Correio Paulistano 02/02/1921), Menotti desfecha um ataque virulento contra "nosso absurdo e ingênuo amor pelo passado, que mata as aspirações de fórmulas novas - na política, na economia, na finança, na ética, na literatura". Como bem observa Annateresa Fabris, Menotti, "em seu ataque aos resquícios do passado - romantismo, regionalismo, parnasianismo - ele deixa transparecer uma concepção não apenas estética, mas social e racial.

A figura histórica do bandeirante é transposta e aplicada aos fazendeiros, aos industriais, aos "criadores de fortuna", aos self-made, isto é, àqueles "indivíduos práticos, de gênio claro e positivo", que se erguem como contraponto aos "gramáticos e bacharéis", aos "críticos e doutores" que pululam pelo resto do país.
Para os entusiastas da arte nova, sequiosos de destacar o papel da Paulicéia no contexto brasileiro e, até mesmo, latino-americano, não é difícil construir um imenso caleidoscópio, uma montagem de fatos e sensações que estruturam um retrato eloqüente de um fenômeno inédito para o país.

Assim, segundo as perspectivas modernistas e a despeito da sua heterogeneidade - que nos desvenda nuances, quase que uníssonas - sobre a interpretação e a representação dessa modernidade forjada no interior de seus discursos; se o Rio de Janeiro era a capital política, São Paulo configura-se nitidamente como a cidade da construção, avessa aos velhos cenários e aos velhos costumes do Brasil oitocentista e rural. Dessa forma, a cidade encontra expressão em imagens fortemente conotadas com a modernidade, com seus ritmos, com sua efervescência, constituindo um painel em que não há lugar para dúvidas e hesitações e sim tão-somente para a visão prospectiva, para a "vocação futurista" de um "povo de mil origens, arribado em mil barcos, com desastres e ânsias." (Oswald de Andrade "Reforma Literária" in Jornal do Comércio, SP 19/05/1921)

De fato, o processo modernizador trouxe consigo a racionalização de condutas, a proposta de homogeneização de costumes e de consumo, ao mesmo tempo que a multiplicação das escalas do ambiente urbano tinha como contrapartida o encolhimento da figura humana e a projeção da coletividade como um personagem em si mesmo, anunciando o surgimento da sociedade de massa.

A partir do final do século XIX, as funções de socialização foram transferidas do âmbito mais íntimo e privativo para a esfera pública, seja pela ação do Estado, das corporações empresariais, seja pela influência da imprensa, da publicidade, do cinema e outros meios de comunicação de massa. Com isso, uma subjetividade formada no âmbito das atividades de lazer e do consumismo cultural, numa ´esfera pública que passa a assumir ela mesma formas de intimidade´ é a conseqüência desse processo. Dessa forma, as subjetividades se formam, então, nos espaços de convivência coletiva, opiniões e comportamento privados são formados no âmbito público.

Temos assim um quadro revelador da nova sensibilidade que se vai definindo na cidade e crescendo em escala fenomenal. Manifesta-se a natureza especialmente forte e coesiva das experiências de ação coordenada coletiva, envolvendo multidões de indivíduos que, embora estranhos entre si, se submetem a um mesmo conjunto de motivações e estímulos para a ação. "O fato de serem estranhos que adquirem uma nova identidade capaz de exaltá-los e libertá-los, graças a uma fonte externa e artificial de incitamento, é que faz dessa experiência algo diverso dos rituais tradicionais e típico da nova ambiência metropolitana.". (SEVCENKO, 1992)

O crescimento das indústrias e a produção em larga escala de produtos para abastecer essa sociedade de consumo emergente fez surgir ainda um outro morador dessa cidade: o operário. As fábricas eram os locais onde um número cada vez maior de pessoas passava a maior parte de seu tempo, vendendo sua força de trabalho em troca do que mais tarde seria gasto no feérico mercado de consumo. A contrapartida dessa escala industrial estava nas ruas: as greves, a agitação social, as conspirações, a "figura soturna do terrorista real e manipulada".
O surgimento, ainda que incipiente, de camadas médias cuja atividade profissional podia gerar um rendimento capaz de manter um consumo superior ao mínimo necessário para a sobrevivência, somado à disposição de nossas elites em adotar um estilo de vida urbano, possibilitou à cidade de São Paulo o incremento da vida urbana e a intensificação dos hábitos de consumo, fatores que caracterizavam a civilidade e a modernização na época.
Para acompanhar esse mundo de mudanças rápidas, proporcionadas pelo avanço cada vez maior da tecnologia, das fábricas e de seus apitos, fazia-se mister que as tecnologias de lazer avançassem na mesma direção se quisessem atrair mais consumidores para seu mercado, devendo adaptar-se às poucas horas de lazer que restava ao homem moderno.

Nesse contexto, já não mais satisfazia os circos de cavalinhos e nem as peças encenadas no Teatro: eram consideradas artes morosas, sem o glamour do moderno, do novo, enfim, sem movimento; além do que, na visão dos modernistas, eram relacionadas diretamente aos costumes atrasados e a um passado não-moderno, não-urbano. Ao contrário, o movimento - desvendado pelo maquinismo e suas engrenagens, - era lembrado pelas máquinas incessantes nas linhas de produção, pelos transeuntes apressados frente aos apitos das fábricas que os lembravam o dever, pelos poucos automóveis que circulavam nas ruas estreitas do centro, pelo tic-tac do relógio; enfim, tudo era movimento.

Dessa forma se pode entender melhor o sucesso que fazia a projeção de uma película de cena muda: era a arte do movimento, era pois desprovida da retórica que amargava as peças teatrais para, ao invés disso, fiar-se no movimento dos corpos, e tratar de temas que povoavam o cotidiano, de uma forma ficcional.
Em 1912 já funcionavam no centro da cidade três cinemas: o Bijou Theatre, na rua São João, o Radium, na São Bento, e o Iris Theatre, na 15 de novembro. Nos bairros, o High Life e o Smart, na Vila Buarque, o Rio Branco e o Brasil em Santa Efigênia, e Edison e o Eden, na Luz, o Pavilhão dos Campos Elíseos, nos Campos Elíseos, o Iris, o Popular e o Piratininga, no Brás, e o Avenida, na Liberdade, incluindo ainda as sessões cinematográficas de graça proporcionadas por algumas confeitarias de luxo aos seus fregueses (Domingos Angerami e Antônio Fonseca, Guia do Estado de São Paulo(1912) pgs. 210, 222)

O deslumbramento pelo moderno e pela novidade, o desenvolvimento das tecnologias de lazer bem como os novos ritmos urbanos emergentes corroboram de certa forma para que o cinema seja visto como o corolário da modernidade, como a encarnação do futuro, pois consegue aliar todos os ingredientes que caracterizam esse novo tempo e se distancia cada vez mais das visões de outrora.

Assim, o cinema, consentâneo com as mudanças que a nova sociedade industrial provocara no ritmo da vida cotidiana, privilegia a velocidade, a ação, o bom humor "(...)O cinema, assim como os bondes e os estádios, alinha multidões de estranhos enfileirados ombro a ombro num arranjo tão fortuito e normativo como a linha de montagem. Os bondes, contudo, lhes dão mobilidade, os estádios estímulos, os cinemas fantasias e as linhas de montagem subsistência". (SEVCENKO, 1992)

As cobranças da vida moderna eram muitas e o cinema funcionava como o divertimento despretensioso, evocando aspectos que caracterizavam o status de homem moderno como a esportividade, a aventura, a puerilidade, caminhando assim contrariamente às artes intelectualizadas, como por exemplo a literatura e o teatro.
Após a II Guerra Mundial, a indústria cinematográfica norte-americana começava a se moldar seguindo a lógica industrial de produção e organizar-se em função do "sistema de estúdio". Começaram a produzir películas em série e a penetrar nos mercados externos, na Europa e sobretudo na América Latina. No Brasil, na década de 20, as películas exibidas nas salas de projeção eram em sua grande maioria norte-americanas. Houve, nessa época, uma mudança de eixo divulgador e precursor das influências de modernidade, urbanidade e civilidade, passando da Europa, mais especificamente Paris, para os Estados Unidos, que representavam um mundo desenraizado das tradições pesantes, das raízes aristocráticas, que privilegiavam o novo, o despretensioso, o moderno, o humour.

Leitores dos periódicos sobre cinema, bem como dos jornais da época nos mostram seu favoritismo em relação ao gênero cômico, representado por um tipo de visão e postura perante os problemas e contratempos da vida moderna, servindo muitas vezes como ´válvula de escape´ para os problemas apresentados por essa modernidade contraditória:

É interessante notar que o cinema, enquanto disseminador de hábitos e criador de moda foi muito mais eficiente do que qualquer outro veículo que se propôs exclusivamente a isso na época, tanto assim que jornais e revistas especializadas cada vez mais abriam espaço, não só para fazer a crítica ou a chamada de um filme, mas principalmente para fazer perpetuar através das lembranças das imagens de certa cena, alguns produtos ou costumes.

A ditadura da moda veiculada pelo cinema hollywoodiano e seus atores sobre o senso comum é comprovada quando se verifica a construção de verdadeiros manuais de moda, como nos mostra algumas das colunas diárias assinadas por Guilherme de Almeida no jornal O Estado de São Paulo, durante toda a década de 20, entitulada Cinematógraphos.

A moda é ditada pelo cinema, pelas estrelas hollywoodianas, passando a ser a mais forte arma de propaganda para o consumo de objetos, roupas, perfumes, como por exemplo o "gomex" dos cabelos de Rudolph Valentino, ou ainda os modelos de maiôs de praia usados pelas atrizes em cenas mais ousadas.
A influência do cinema hollywoodiano no Brasil, decisiva para a construção da cultura cosmopolita, enveredou-se por vários caminhos: substituíu a coroa dos reis pela auréola efêmera das estrelas da terra, construindo um mundo idealizado e romântico, onde a moda e os costumes passaram a ser apreendidos não mais na tradição familiar ou no contato com os meios tradicionais de educação (escola, igreja, catecismo etc), mas antes através de uma grande tela, que figurava um mundo novo a ser imitado.

Avulta nas crônicas cinematográficas da época temáticas do universo feminino, pois que é indiscutível que o universo cultural hollywoodiano, já nessa época, representava fonte inexaurível de padrões de hábitos, costumes, comportamentos, valores, moda; enfim, de um "modus vivendi" feminino.

O cinema, segundo Mário de Andrade, "a criação artística mais representativa de nossa época" parece também emergir extremamente sintonizado com os discursos ‘modernos´ que conformam o perfil da mulher. Como exemplificar o fascínio e o pânico frente às imagens das novas divas das telas, envoltas numa aura de sedução e perigo que as novas câmeras do cinematógrafo criavam? O ´close-up´, inovação permitida pelas novas técnicas do cinema, bem como o ´ëmbrulhar no negro´ das salas de exibição passam a definir o papel prioritário do cinematógrafo enquanto instrumento de sondagem da alma e das zonas escondidas da vida cotidiana Num dos primeiros textos sobre cinema, Hugo Munsterberg compara a ampliação possibilitada pelo close-up ao momento em que ´no auge da emoção no palco o espectador de teatro recorre aos binóculos para captar a sutil emoção dos lábios, a paixão ou o terror expressos no olhar, o tremor das faces´. É essa arte da modernidade que traz em sua natureza a marca de um olhar fortemente erotizado que vai produzir, num mundo hermeticamente fechado e onírico, as imagens e os mistérios das estrelas do nosso cinema.

Por sua vez, a denominação ´estrela", emprestada especificamente às atrizes do cinema, procura recuperar o valor de culto perdido pela ausência da presença física no palco, investindo nos sentidos de exílio, distância e inacessibilidade que o termo permite.

Na política do estrelismo, modelo do sucesso implantado pela indústria de Hollywood e divulgado pelas revistas cinematográficas americanas e nacionais, dois eixos discursivos orientavam a imposição de um padrão de beleza e de atração exercido pelas atrizes (e atores) na conquista do público: a lei dos tipos e a fotogenia. A elas somava-se o ´espectro característico´, definidor da personalidade dos artistas e articulador dos predicados indispensáveis à conquista de um lugar de destaque no firmamento cinematográfico (XAVIER, 1978).

As estrelas de cinema, cuja vida particular fora das telas é sinônimo de veneração e bisbilhotagem, despertava o interesse da platéia frente a seus hábitos mais corriqueiros, a fim de imitar-lhes também na vida real.. Os padrões estéticos que ditavam os contornos do corpo feminino também sofrem a inferência dos modismos ditados pelo cinema:

Revistas especializadas da época, como por exemplo a Cinearte, tentam difundir um modelo de atração e sensualidade uniformizador das preferências dos fãs: ´It´, ´sex-appeal´, ´sofisma´, ´malícia´, ´personalidade´, ´spleen´, idéias chaves disseminadas pela mídia americana e que apresentam popularidade entre nós. Por volta dos anos 20, juntamente com a evolução técnica do cinema e o aperfeiçoamento de sua linguagem, os paradigmas que constituem a lei dos tipos, ou seja, a ´ Vamp´, a ´Ingênua´ e a ´Flapper´(a maliciosa) também procuram se modernizar. Assim "(...)a Vamp brasileira, ainda que retivesse o significado de ameaça e a atmosfera de irresistível sedução, tradicionalmente seu traço identificador não se diferencia muito da ´flapper´, insinuante ´protótipo moderno´, habituada ao ´sofisma´ e a ´malícia´, como se dizia na época."

Nas fitas a vamp-moderna usa roupas de Paris, dirige carros em alta velocidade, joga tênis, dança, fuma, bebe ´gin´, sendo seu maior veneno demolidor sua própria característica enquanto personagem feminino, pois desestabiliza a família e desafia os preceitos da moral cristã, sendo mesmo " um contraponto aos costumes ´modernos´, sugerindo uma liberdade um pouco excessiva e conseqüente questionamento dos preceitos sociais´.

O tipo ´Vamp´, forma abreviada de vampiro, traduz invariavelmente um sentido de ambigüidade entre a vida e a morte, a noite e o dia, a sombra e a luz, a sexualidade e a punição, o vampiro não pode ver seu reflexo, não consegue jamais ter a sua própria imagem refletida no espelho, pois no espelho só aparece o outro, ou seja, só se torna possível olhar para si mesmo através da mediação do outro (Maria Lúcia de Barros Camargo. Atrás dos olhos pardos. Tese de doutoramento/USP,1990).

É precisamente essa ambigüidade, a de ser o reflexo do olhar do outro, que a elege como o ´tipo´ por excelência de invenção de uma indústria cultural emergente e torna possível a projeção das ansiedades de um tempo.
Em paralelo a ascenção do star system houve uma alteração nos temas dos filmes hollywoodianos. Um exame dos enredos listados nos maiores jornais de comércio de 1907 a 1919 revela uma mudança aguda. De 1908 a 1912 os photoplays feitos por independentes tinham temas Vitorianos, tornados populares por Griffith. Pouco tempo depois, a tradição anglo-saxônica passou a ser questionada e cada vez mais os enredos apresentavam personagens que caiam em pecados antes atribuídos a estrangeiros, vilões ou aristocratas. Geralmente, o herói ou a heroína superava perigos como bebida, gastos em excesso e mulheres sensuais.

A figura da ´Vamp´ foi muito popular principalmente entre os anos de 1914 e 1916 nas produções hollywoodianas, sendo que a mais famosa foi Theda Bara, que ao contrário das jovens virgens loiras do período anterior era voluptuosa e morena. Bara interpretou Cleópatra, Salomé e Madame de Pompadour, mulheres cuja fascinação erótica destruíram homens que dominavam vastos reinos. A ´Vamp´, portanto, incorporava o mais eminente dos avisos dos cruzados anti-vícios: o sexo pode destruir a ordem social.

Era muito claro que as mulheres estavam reelaborando seus papéis dentro da sociedade moderna. As revistas de fãs apresentavam repetidamente artigos sobre jovens mulheres e as identificavam com a juventude e a modernidade em si. A cultura de massas, especialmente o cinema, apelava para essa imagem feminina pois ela se opunha frontalmente às mulheres do lar provinciano, arcaico, e representava antes de tudo a mulher moderna, que trabalha fora e que participa ativamente da vida pública.

Os novos critérios da fotogenia, ´valor essencial´ da imagem luminosa projetada na tela, passam a definir o padrão de beleza feminina proposto pelas revistas de cinema e disseminado pelos primeiros concursos de Miss Brasil, em profunda sintonia com a política eugênia que permeava o debate civilizatório nacional. "(...) a quase totalidade dos filmes brasileiros produzidos na época do cinema mudo revelam o subtexto que articula a ´perfeição racial´ com a ´aptidão para o cinema´ e com a adequação aos tempos modernos"

Ainda segundo Ismail Xavier "a fotogenia, indicadora do específico cinematográfico e depósito de suas verdades mais profundas, transforma-se em atributo poético de em conceito epidérmico de beleza, associado a luxo, higiene e juventude.(...) Combinando aspecto característico, fotogenia e lei dos tipos, temos o tripé de um modelo aristocrático de perfeição racial e da preferência estética pelos bem dotados, sendo os povos divididos entre os que tem charme e os que não têm. Evidentemente o impulso ´patriótico´ sempre colocou o Brasil, sua natureza e a parcela branca e rica de seu povo, como um país apto para o cinema e para a modernidade.(XAVIER, 1978 p.180)
Mas é sobretudo a moda das atrizes de cinema, o traço cultural que mais influi nos costumes das paulistanas. Muitas vezes era uma moda copiada das telas de cinema e reinventada de acordo com a experiência e a memória, num arranjo das práticas cotidianas dos diferentes grupos sociais e étnicos no novo espaço urbano.
Em uma situação de muitas mudanças - a despeito de algumas permanências - nos padrões de vida no início deste século, o cinema desempenhou um papel importante na consolidação de status e de valores de referências, exercendo importante influência ao divulgar e consolidar comportamentos e influenciar numa certa domesticação de gostos e costumes. Entretanto, ele só pôde desempenhar esse papel porque respondia, ao mesmo tempo, às necessidades do discurso de legitimação do projeto civilizador das elites paulistanas e às necessidades da população. "(...) os personagens desse mundo em ebulição carecem, com urgência, de um eixo de solidez que lhes dê base, energias e um repertório capaz de impor sentidos a um meio intoleravelmente inconsistente" (SEVCENKO, 1992,p.31).

Assim, o cinema teve ação relevante na urbanização da cidade de São Paulo, estabelecendo com seu público uma relação circular, de influência mútua e troca de informações no jogo cotidiano da reelaboração. Dessa maneira, o caráter normativo ou ideológico das representações criadas no cinema é sempre filtrado pelo uso que delas fazem os espectadores.

Se é certo que o cinema constitui um sistema de poder simbólico que legitima a ordem social existente, não é menos certo que os sentidos que produziu variaram de acordo com os mais diversos grupos que se formavam na cidade e que sua recepção dependeu do embate constante entre o discurso normativo e a inventividade de suas práticas cotidianas.

Além da moda, dos comportamentos e dos costumes, outros aspectos da sociabilidade paulistana foram reformulados em função do cinema, que viabilizou interações sociais tipicamente efêmeras e urbanos., como por exemplo o flirt:

Assim, mais do que ´escola de flirt´, o cinema foi utilizado sobretudo como um precioso instrumento de intervenção social na elaboração do "novo homem", do homem moderno e civilizado, consentâneo com o ritmo de vida urbana e industrial, de uma nação homogênea, higiênica, moralizada e disciplinada.

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