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Do relacionamento e da interdependência entre Diretor Cinematográfico e Compositor

Quando se observa a expectativa dos aspirantes à direção cinematográfica em relação à futura criação da trilha sonora, constata-se que duas tendências bem distintas e contrastantes orientam-lhes o comportamento e a concepção de sua própria posição em face do problema.

De um lado, haverá os que se crêem na obrigação de determinar, dirigir, supervisionar todo o processo de criação da música, prescrevendo ao compositor instruções bem precisas no geral e no detalhe: consequentemente, despendem todos os esforços no sentido de se preparar para tal. No outro extremo situam-se os que, à falta de relação mais assídua com a música, ou por não lhe concederem grande importância, ou por outra razão qualquer, desejariam não precisar se pronunciar a respeito; confiam pouco na própria musicalidade e imaginam-se em situações embaraçosas diante do músico.

Seja-nos permitido desiludir os primeiros e sossegar os últimos. Na verdade, raríssimos serão os casos em que o diretor exercerá controle absoluto sobre a criação da música, e arriscamos mesmo afirmar que não haverá componente do filme em relação ao qual ele se sinta mais desassistido e necessitado de ajuda; várias razões concorrem para tanto.

Expliquemo-nos: quando alguém se propõe a dirigir um filme, ainda que o primeiro, é evidente que já acumulou, senão experiência, pelo menos conhecimento de todas as fases e aspectos da direção (seja pela prática, seja pelo estudo); registre-se ainda o caso, não raro, de o diretor ser um profissional oriundo de alguma das especializações técnicas, ou seja, antes de dirigir, ter sido montador, cenógrafo, ator, etc. A experiência e, portanto, a convivência, por vezes de anos com o processo de filmagem, ou mesmo o estudo aplicado, lhe possibilitará exercer controle relativamente amplo de todas as fases (filmagem, direção de atores, cenografia, iluminação, montagem, etc.).

Em relação à trilha sonora, tudo é diferente. Dificilmente a música terá feito parte de seu dia-a-dia, raramente ele terá desenvolvido relação mais profunda do que o ouvinte comum e, consequentemente, carecerá de base sólida para determinar com segurança como deve ser, aonde deve estar e, até mesmo, se deve haver música.

Esta incerteza é reforçada pelo fato de a música ser, via de regra, um elemento quase estranho ao complexo da filmagem, já que, na realidade, é inserida após a conclusão dos trabalhos, elaborada por um profissional que normalmente não participou em nenhum momento (nem antes, nem durante) na realização do filme (veja-se mais adiante, quando se explanar o papel do compositor, algumas considerações relativas a este último ponto).

A experiência nos indica que na grande maioria dos casos, quando o diretor encontra-se com o músico (e aqui referimo-nos ao compositor de música de filme habitual, não ao eventual), está tão disposto a ouvir quanto a dizer como deverá ser a parte musical de seu filme. É evidente que o diretor pode ter alguma idéia em mente, pelo menos em traços gerais ( o que seria, de resto, muito desejável); ainda assim, e devido à linguagem extremamente especializada da música, apresenta-se outra dificuldade: como expressar ao músico esta idéia, talvez vaga, que lhe vai no espírito? Com efeito, é extremamente difícil, senão impossível, ao não músico exprimir-se em termos musicais, e esta é a razão de peso para que o diretor necessite auxílio e orientação.

Assinale-se, como curiosidade, que destas restrições naturais, não escapam nem as celebridades, e é esta, seguramente, a razão pela qual se estabelecem duplas famosas de compositores-diretores, não raro atuando juntos durante décadas. Isto significa que, em determinado ponto da carreira, o diretor deparou com o compositor que melhor lhe supre as lacunas musicais, que mais lhe apresenta sugestões (e, mais do que isso, soluções), e com mais acuidade adivinha-lhe e realiza-lhe as intenções, ainda que vagas; é evidente que no seu entendimento, um auxiliar desta valia merece ser conservado, de preferência para sempre (também a este respeito, algumas considerações mais adiante).

Uma circunstância excepcional autorizaria questionar todo o acima exposto: Se o próprio diretor fosse músico. Ainda assim, dificilmente reuniria a competência musical exigível para determinar de maneira categórica e absoluta o processo de criação da música.

Chegado a este ponto, e seguindo esta ordem de idéias, é inevitável que uma dúvida se instale no espírito do estudante de cinema: Ora, se para tratar futuramente da música de seu filme tiver que se debater nestas dificuldades, se ao compositor de confiança fica reservado o papel maior no curso do trabalho, e se de antemão sabe que em maior ou menor medida a música pode escapar-lhe ao controle, não será perda de tempo expender energia, reflexão e estudo sobre este problema? Não será mais útil voltar a atenção aos aspectos mais práticos e familiares da direção? Não será mais fácil delegar definitivamente ao compositor a responsabilidade total da música?

A resposta a essas perguntas deve ser, em nosso entendimento, um categórico não, e por motivos vários:

Primeiro: o diretor é, ou deve ser, o grande responsável pelo resultado artístico do filme como um todo; se transferisse para qualquer profissional envolvido no trabalho a faculdade de criar ao próprio gosto, estaria admitindo co-direção, ainda que apenas numa parte da obra, o que seria subverter a hierarquia natural das atribuições.

Segundo: tal disposição poderia incitar ao acomodamento diante do problema, atitude que, sem dúvida, resultaria extremamente nefasta a seu próprio processo de evolução artística. 

Terceiro: o diretor, em todo caso, deverá estar preparado para estabelecer pelo menos o que não deseja em termos de música, e isto não conseguirá sem um mínimo de bom-senso musical.

O que se poderia, em definitivo, recomendar ao estudioso de cinema que deseja um dia tirar o maior proveito possível da música, este ingrediente extremamente especializado da arte cinematográfica? Poderíamos oferecer a melhor sugestão recorrendo a um verbo: musicalizar-se.

Musicalizar-se significa empreender estreita relação com a música, e isto em diversos níveis. Inicialmente, exercitar em caráter permanente a própria capacidade receptiva em relação a ela, ou, em outras palavras, estabelecer o hábito de ouvir música o quanto possível, de todos os gêneros, estilos, épocas e finalidades. Este hábito, com o correr do tempo, aguçará e refinará a natural sensibilidade musical do ouvinte, que passa automaticamente a captar mais e mais sugestões na música.

Assim, pouco a pouco, através deste processo, o aspirante à direção poderá restringir cada vez mais aquelas limitações naturais a que aludimos mais acima. Outra conseqüência extremamente benéfica e duradoura desta atividade é o acúmulo do conhecimento musical armazenado, o que lhe poderá ser útil em mais de uma ocasião. Veja-se o caso, por exemplo, do diretor que quer expressar as idéias com clareza ao compositor e pouco consegue; quantas vezes a simples lembrança ou citação de uma obra, deste ou daquele fragmento de música (cinematográfico ou não) resolveu e esclareceu a situação? Recordemos, além disso, os notáveis exemplos de emprego de grandes obras musicais no cinema, alguns dos quais já comentados na ocasião apropriada; como se poderia chegar a tão brilhantes resultados senão pelo conhecimento musical prévio e pela capacidade associativa dos respectivos diretores?

Não é preciso mencionar o quanto tudo isto sobe de importância quando aplicado à música cinematográfica, pois é natural que o diretor fixe melhor no espírito a música aplicada a um meio que já lhe seja familiar; neste terreno, a observação e estudo detalhados da música serão particularmente úteis, já que servirão mais para estimular-lhe a imaginação. Acrescentemos que, nesta era do vídeo, o estudioso poderá se dedicar a um exercício extremamente útil, qual seja, o de experimentar montar sua própria trilha sonora no filme que desejar e confrontar o resultado com o trabalho original, e no curso desta mesma atividade, acostumar-se a perguntar o porque da presença de cada fragmento musical; ao ir reconhecendo as diferentes funções e aspectos que pode assumir a música cinematográfica, estará o futuro diretor cada vez mais próximo de saber o que realmente quererá neste setor.

E quanto ao compositor, o que se poderia observar, sempre em termos gerais?
Em primeiro lugar, digamos que convém ser profissional experiente, basicamente por duas razões: Primeiro, pela própria segurança que a atividade contínua lhe permite e, segundo, para que possa estar em condições de ajudar e aconselhar o diretor da melhor maneira possível; é fácil deduzir o quanto a experiência facilita-lhe esta tarefa. Isto não quer dizer que a larga prática seja condição indeclinável para que o músico capaz componha música cinematográfica, é apenas condição preferível; de um modo ou de outro, sempre deverá haver um começo.

Se recomendamos pouco acima que o diretor acumule o maior conhecimento possível de música, cinematográfica ou não, imagine-se que é lícito exigir ao compositor neste particular; deixe-se claro, todavia, que a ninguém é dado conhecer toda a música, todos os gêneros musicais em existência, e na hipótese do músico se defrontar com a necessidade de criar um gênero musical que lhe seja pouco ou nada familiar (e o caso não é raro), deverá, quando menos, através de pesquisa e colaboração, apresentar a solução final ao diretor.

Neste ponto, é útil fazer uma observação sobre o que se assinalou a respeito das duplas fixas diretor-compositor. O relacionamento profissional desta índole pode, às vezes, trazer inconvenientes; com efeito, um dia, numa determinada produção, pode ser necessária música num gênero que não seja exatamente o forte do compositor, e é prevendo isto que alguns diretores fazem empenho em não trabalhar exclusivamente com um único profissional.

De maneira alguma desprezível é também o conhecimento de estúdio que o músico possa ter, pois isto lhe proporcionará a obtenção de muitos resultados e efeitos possíveis somente por meio do processo de gravação (cortes, duplicação, emendas, reforços, determinação prévia das etapas de trabalho, etc.); acrescenta-se ainda, relacionada a este ponto, a habilidade de trabalhar com o cronômetro, ou seja, de adequar suas idéias musicais aos tempos exatos das cenas.

Outra qualificação do compositor extremamente desejável na maioria das circunstâncias é a capacidade de trabalhar com poucos recursos; é sabido que nos dias de hoje, particularmente, a escassez de meios atormenta boa parte da indústria cinematográfica, o que se reflete de maneira especial na música. Dificilmente o músico terá a seu dispor, por exemplo, a quantidade de músicos que julgar necessário; por isso, será importantíssimo que planeje e realize sua música sabendo, se necessário, escolher o menor contingente instrumental possível e dele extrair o máximo em resultados e variedades.

Todas essas qualidades, todavia, pouco ou nada valeriam, não fosse o músico portador da mais importante de todas: a disposição franca em colaborar e assessorar o diretor de todas as maneiras. Assegure-se, sem medo de errar, que a presença passiva do compositor junto ao diretor, a moviola, é de muito pouca ajuda a este último; o trabalho conjunto de ambos só será frutífero se marcado pela troca de idéias, pelo raciocínio conjunto, pelas indicações, sugestões e alternativas trazidas à discussão, sobretudo pelo compositor. Afinal, ressalvados os obstáculos naturais encontrados pelo diretor neste particular, quem mais tem a obrigação de lhe oferecer base sólida de opção?

A todas estas considerações poderíamos aduzir que o músico pode, em muitas circunstâncias, ser melhor aproveitado do que habitualmente. Por exemplo, porque não acompanhar a elaboração do roteiro, ou mesmo de parte, mais ou menos extensa, da filmagem? Não poderia surgir uma idéia mais precisa de se tratar a música, ou mesmo, não poderia alguma cena ser elaborada ou modificada em função dela? Esta prática, apesar de lógica e racional, está longe de ser comum; ao contrário, o que mais se constata é o detestável hábito de submeter o músico ao indescritível tormento da falta de tempo adequado para trabalhar, decorrência direta da pouca importância que ainda se concede, na maioria das vezes, à música, via de regra, o último componente do filme a ser considerado.

Deixemos bem sublinhado que a corrida contra o relógio é o maior inimigo do compositor de cinema, o fator mais desgastante e a causa maior de não poucas decepções artísticas. Na realidade, pressionado por um cronograma de trabalho irracional, o compositor vai escrevendo o que lhe vem à mente, e isto conduz quase sempre à conclusão mais triste e frustrante para o artista: avaliar o resultado final de seu trabalho e intimamente reconhecer: "poderia ter saído melhor!"

 

Mauro Giorgetti é compositor e professor de Trilha Sonora no Curso de Cinema da FAAP