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Cinema brasileiro: entre exigências econômicas e humores políticos

Resenha da obra: Cinema brasileiro a partir da retomada – aspectos econômicos e políticos, de Marcelo Ikeda. Editora Summus, 2015.


O cinema é uma das formas de expressão no âmbito da cultura e do entretenimento que mais envolve o público em geral no Brasil. Nos mais diferentes níveis sociais e de formação observa-se que as pessoas falam sobre filmes de modo apaixonado, como se tratassem de gosto sobre combinação de cores no uso de roupas ou de escolhas futebolísticas. Malgrado, o mercado de livros não reflete a disposição casuística com que o assunto cinema pauta as conversas mais prosaicas. O tema cinema é olhado de esguelha pelos principais editores do país, e em decorrência nas grandes livrarias o espaço que lhe é dedicado resume-se a poucas prateleiras. Por isso, vejo com alegria alvissareira a iniciativa da Summus Editorial, que acaba de publicar
Cinema brasileiro a partir da retomada – aspectos econômicos e políticos, de Marcelo Ikeda.

O lançamento da Summus se torna mais importante quando se tem em vista o foco do livro: uma extensa e pormenorizada pesquisa sobre o panorama das políticas públicas voltadas para o cinema no período que vai de 1990 a 2010. Nesse recorte temporal, o cinema brasileiro saiu de um momento de terra arrasada, com sua produção praticamente estagnada, para a retomada cada vez mais crescente de filmes lançados no circuito comercial. O livro de Ikeda cobre um período que, em razão de humores no estabelecimento de políticas públicas, oscilou entre a incontida euforia e crises sazonais. Considerada a importância do assunto, então, o investimento levado a cabo por ele é um marco. Portanto, a ser devidamente discutido e posto na ordem do dia, quando se fala em cinema brasileiro em suas injunções econômicas e políticas.

Ikeda organizou o livro de modo a se ter o quadro político, de forte acento liberal, nos anos do governo Collor (1990-1992), que extinguiu órgãos como a Embrafilme e assim deixou a produção cinematográfica a mingua. Mas Ikeda realça igualmente que, ao mesmo tempo em que o governo Collor se atém à questão da acomodação do papel do Estado no âmbito da cultura, em seu governo foi criada a primeira iniciativa de incentivo cultural por meio de renúncia fiscal – a Lei Rouanet. Esta lei, assim como a do Audiovisual criada no governo Itamar Franco, posteriormente no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) será determinante para impulsionar a retomada do cinema brasileiro.

Feita a exposição do quadro político que levou à estagnação da produção, e dos condicionantes que propiciaram a retomada, o livro expõe de modo minucioso como se deu a consolidação do modelo estatal nos anos 2000. A ênfase no estudo volta-se para a formação de um tripé institucional: o Conselho Superior de Cinema (CSC), responsável pela formação de políticas no setor; a Ancine, a quem cabe regular, fiscalizar e fomentar a atividade cinematográfica brasileira; e a Secretaria de Audiovisual (SAv), responsável pela produção de curtas e médias metragens, formação de mão de obra, difusão de filmes por meio de festivais de cinema no país, preservação e restauração do acervo cinematográfico brasileiro. É em torno desse tripé que gravitam as questões de fundo tratadas por Ikeda. Estas, por sua vez, envolvem uma dinâmica na qual se confrontam o papel do Estado como regulador e a realização de filmes conforme exigências em escala industrial.

Na sequência do livro, em razão da consolidação do tripé institucional nos anos finais do governo Fernando Henrique Cardoso, Ikeda procede a um exame das ações políticas para o cinema brasileiro no novo quadro político durante o governo Lula (2002-2010).  Nesse momento, com o crescimento contínuo da produção, deixa de ter sentido falar em retomada. E com a nova configuração de poder em decorrência da ascensão do PT, passa-se a questionar o papel de uma agência reguladora como a Ancine. Nos anos do governo Lula, Ikeda dá atenção à abortada tentativa de criação da Ancinav, que substituiria a Ancine, às resistências às mudanças de perfil do Estado e, finalmente, à quebra do tripé institucional: escaramuças entre Ancine e SAv provocaram o fortalecimento desta última.

Expostas e desenvolvidas as questões norteadoras do livro – o modo como entre os governos Collor e Lula se confrontam o papel do Estado na adoção de políticas públicas para o cinema e a produção de uma filmografia com olho no mercado – o livro se completa com um amplo estudo sobre o impacto das leis de incentivo no mercado cinematográfico e com instigantes apontamentos sobre mecanismos de fomento direto. A respeito do impacto das leis de incentivo, Ikeda dá amplo destaque às transformações no setor de distribuição e exibição. Para tanto, ele realça a fragilidade de uma política que garanta a exibição de filmes nacionais na televisão; assim como trata de maneira incisiva, com cruzamentos exaustivos de dados estatísticos, sobre o abismo entre filmes que superam a casa dos milhões de espectadores e o que ele chama de “filme de nicho”.

Por fim, um tópico com questões que se abrem para discussões sobre a criação de mecanismos automáticos para obtenção de recursos e a regulamentação de um decreto que garante o fomento direto seletivo, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Como meio de se garantir o processo de produção cinematográfica, durante o governo Lula foram criados o Prêmio Adicional de Renda (PAR) e o Programa de Incentivo à Qualidade do Cinema Brasileiro (PAQ). O primeiro mecanismo destinado a produtores, distribuidores e exibidores segundo critério de renda bruta na bilheteria; já o segundo destinado a produtores e baseado em participação e premiações em festivais nacionais e internacionais. O FSA, por sua vez, é um mecanismo seletivo: por meio dele o Estado assume o controle direto no financiamento da produção, pois é ele quem estabelece os critérios de seleção dos projetos fílmicos.

Cinema brasileiro a partir da retomada possui dois méritos que creio são inquestionáveis: oferece um painel tão amplo quanto detalhado dos caminhos da produção cinematográfica nacional ao longo de duas décadas, nas quais se confrontam uma maior ou menor intervenção do Estado e razões de mercado; exibe a grande habilidade do autor para organizar, estruturar e sintetizar de maneira clara e precisa o vasto e sinuoso material de pesquisa levantado. Trata-se, portanto, de imprescindível fonte de consulta para especialistas e leigos que se sintam motivados a entender os laços entre economia, política e cinema; trata-se igualmente de um trabalho com grande poder de concisão e rigor conceitual: a escrita de Ikeda mantém um padrão expositivo de sorte a não deixar pontos desatados, linhas soltas que não se articulem ao eixo central do tema pesquisado.

Há dificuldades subterrâneas, no entanto, que percorrem o livro de modo subliminar e creio merecem ser apontadas. Uma delas é que pensar o cinema a partir de exigências de mercado, de produção em escala industrial, implica na padronização de modelos fílmicos; com isso, a inevitável inércia do gosto médio. O propósito do livro não é o de se ater ao viés de gosto, ou de apreciação estética, mas ele pode provocar no leitor a seguinte indagação: o mero sucesso de bilheteria não traria o risco de distorções sobre as qualidades artísticas de um filme? Ora, se no afã de conquista do mercado há todo um jogo econômico e político que envolve humores de distribuição e exibição, a “carreira” de um filme ficaria exposta a nuances de publicidade que persuadiriam e convenceriam o espectador sobre seu valor artístico; mas como consequência, paradoxalmente, poderia esconder eventuais qualidades indesejadas: a fim de não afugentar o público, um filme de apelo social ser vendido como um drama inofensivo.

No livro, essa questão se torna bastante melindrosa quando Ikeda aborda o abismo entre blockbuster e filme de nicho. É difícil por em pauta esse abismo e não ponderar que ele se insere numa discussão mais ampla a respeito da indústria cultural: no que se refere à música, Theodor Adorno chamou de “regressão da audição” o resultado da repetição padronizada, recebida de modo fetichizado pelo ouvinte. Ou seja, no caso do cinema, conformar um filme à reação positiva do público que o consumiria. Assim, me parece, a busca pelo sucesso nas bilheterias diz respeito aos condicionantes de mercado e apenas lateralmente ao eventual valor artístico, ou selo de qualidade estética de um filme. Ikeda é bem cauteloso ao tratar desta questão, mas ela percorre sorrateiramente as linhas de seu livro. De modo que a controversa fronteira entre performance nas bilheterias e qualidade artística inadvertidamente subsome os aspectos econômicos e políticos do subtítulo do livro. 

Humberto Pereira da Silva é professor de filosofia e semiótica na FAAP, crítico de cinema na Revista de Cinema, colunista do site Cinequanon e autor de “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editora)