logo mnemocine

blowup.png

           facebookm   b contato  

41ª Mostra - O Pacto de Adriana, de Lissette Orozco

O filme de Lissette Orozco é uma obra potente, carregada de conflito pessoal e de reflexões históricas sobre a ditadura chilena. No documentário, a diretora realiza uma investigação sobre a vida de sua própria tia, Adriana Rivas, e, inevitavelmente, sobre sua relação com ela.

“Chany”, apelido carinhoso dado a Adriana por Orozco, foi presa em 2006 - quando a diretora estava no primeiro ano da faculdade de cinema -, para ser julgada por seu suposto envolvimento com a DINA, polícia secreta do brutal regime de Pinochet. Até então, a imagem que Orozco tinha de sua tia era de uma mulher elegante, que sempre vinha da Austrália bem vestida e trazendo os “melhores presentes”. Toda família ia sempre recebê-la no aeroporto, é inegável que a diretora amava profundamente sua tia.

Inicialmente, Adriana nega qualquer conhecimento dos crimes cometidos pelo governo, ela diz que trabalhava apenas como uma secretária e que, jovem como era, estava deslumbrada pelo glamour da vida aristocrática. Neste ponto, Orozco ainda acredita na inocência de sua tia, e eu compartilhei de sua opinião, a alternativa era tão terrível que parecia bizarra. Não é fácil, então, culpar a diretora, pois quando se vê aquela doce senhora chilena que ama tanto sua sobrinha, se é inundado por um desejo de que tudo não passe de um mal-entendido. Adriana, conforme evidências contra ela vão se acumulando, faz pequenas alterações em sua história e passa a agir como se ela sempre houvesse falado dessa maneira, isso marca um processo de esquiva que caracterizará a tentativa de sustentar a tese de sua própria inocência, mas que também é o primeiro sinal de sua culpa.

É difícil dizer, inicialmente, porque Lissette Orozco decide fazer seu filme. Quando começa a filmar as conversas de Skype com sua tia, que concentram grande parte da potência dramática da obra, ela não está completamente convencida da inocência de sua tia, mas também não de sua culpa. A diretora inicia sua jornada documental em um estado de indecisão, buscando mais um esclarecimento do que uma condenação, mas esta indecisão é algo que será dissipado ao longo do filme. Adriana foge em 2010 para a Austrália e, como se tornará recorrente durante o filme, ela não dá justificativa convincente para tal ato. Para nós, essa já é uma confirmação de sua culpa, mas aos olhos de Orozco, que ainda quer acreditar na inocência de sua tia, os motivos não são tão claros. O filme assim revela com uma potência avassaladora, mas de maneira metódica, o descobrimento progressivo que a diretora tem sobre as ações de sua tia.

Cada passo que a diretora dá em suas investigações é mais um no qual ela tem de se confronta interiormente com os atos horríveis de Adriana. Não existe um ponto exato onde ocorre a perda da inocência, essa perda é um processo gradativo e dolorosamente lento, contado através de conversas tristes, mas gentis, no computador. A linguagem do filme é bastante informal, não existe uma busca estética pelo deslumbramento, o que aqui trabalha a favor da obra, que ganha uma dimensão íntima. Isso não significa que não há planos belos no filme, um em especial me vem à mente: Orozco, de pé, assiste a uma entrevista de sua tia projetada em uma sala vazia, a projeção se sobrepõe ao seu rosto que está marcado por uma tristeza profunda, enquanto Adriana afirma sua inocência, algo que nós e Orozco já sabemos ser mentira.

Mesmo quando se descobre que Adriana estava conscientemente envolvida em um regime ditatorial extremamente violento, a escala de sua participação é algo que apenas se torna claro mais adiante, a tia da diretora não foi somente uma secretaria, mas sim uma torturadora. Em um dos pontos mais emblemáticos do filme, Orozco vai ao encontro de um homem que também havia colaborado com a ditadura, mas que confessou seus crimes. O homem conta que Adriana frequentemente espancava suas vítimas até quase matá-las, muitas dessas sessões de tortura não tinham nenhum propósito expresso e as informações já eram muitas vezes sabidas, as sessões eram movimentadas apenas por ódio e crueldade. Nesse momento, fica mais do que claro que Orozco nunca mais vai ver “Chany da mesma maneira”.

Existe, no filme, um paralelo poético entre a avó da diretora, que possui Alzheimer, e o povo chileno. Há uma resistência em lembrar a ditadura, e existem grupos que sentem falta do período. Em parte, pois inicialmente houve uma bonanza econômica, mas principalmente pelo ódio ao comunismo que o regime propagava. Para esses grupos, que fazem saudações nazistas em frente a imagens de Pinochet, todas as crueldades ocorridas foram justificadas, principalmente aquelas feitas contra os comunistas. A resistência mnemônica é principalmente visível na fala da própria Adriana, que nega veementemente, durante o filme inteiro, sua participação nos crimes da ditadura, mesmo que se contradizendo. De certa maneira, sua amnésia é quase involuntária, ela não pode se permitir reconhecer seus atos, pois isso a invalidaria como ser humano, a crueldade é tamanha que o sofrimento de tal reconhecimento seria insuportável. O seu esquecimento é uma farsa pior do que o de sua mãe.

Adriana, talvez inconscientemente, age de maneira manipuladora com Orozco, o que é assustador se levarmos em conta seu passado. É irônico pensar que foi através de sua experiência como torturadora que ela conseguiu afirmar tão convincentemente sua própria inocência. De certa maneira, Adriana manipula também a nós espectadores, pois é através de suas recomendações que o processo documental se inicia: Orozco busca as pessoas que Adriana a diz para buscar. Ela é a uma das forças ativas que guiam o documentário que acaba por condená-la. Mas não se pode negar a coragem necessária de Orozco para produzir esse filme que é um forte confronto com o passado sombrio de seu país. A diretora parece reconhecer que é mais importante sua responsabilidade para com aqueles que sofreram nas mãos da ditadura, do que o amor que nutre por sua tia. Em vários pontos difíceis de sua jornada de cinco anos, Orozco poderia ter desistido, mas ela concluiu o filme, mesmo que agora a relação afetiva com um ente querido esteja para sempre perdida.

 

Matheus Saboya estuda cinema na FAAP, foi primeiro assistente de direção de dois curtas-metragens universitários e está fazendo direção de arte de seu terceiro curta.