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41ª Mostra - Aqueles que Restam, de Eliane Raheb

Admito que a questão da guerra civil libanesa não me era familiar antes de eu ver esse filme, fico quase feliz dessa condição inicial de ignorância, pois o filme de Eliane Raheb me permitiu entrar em contato com as consequências de tal evento de uma maneira profundamente sensibilizante.

 Não que o filme tenha me ensinado algo sobre o conflito em um sentido acadêmico, como talvez um documentário mais típico tentaria, mas sim que ele tenha me mostrado as profundas cicatrizes que permaneceram na terra e em suas pessoas. O filme, que como essa íntima relação se conecta com a história da guerra civil e suas consequências devastadoras para um país que nunca terminou seu processo de recuperação. Assim como a ditadura de Pinochet no Chile, o massacre dos comunistas na Indonésia, ou outros inúmeros eventos catastróficos na história de uma centena de países, a guerra civil no Líbano paira sobre as almas de seus cidadãos como um fantasma. Raheb investiga aqui a relação particular que um homem, um fazendeiro cristão chamado Haykal, tem com a terra que habita, com os povos a sua volta e com a história destes.

Haykal é um homem interessante, sua esposa o deixou e levou seus filhos junto, pois não aguentava a vida no campo, agora ele constrói uma casa enorme, pedra por pedra, e se agarra a esperança de que eles irão retornar quando ele a terminar. Durante o filme ele consegue completar sua casa, mas ninguém retorna, é visível sob seu semblante calmo que essa solidão estilhaça sua alma, Raheb consegue capturar uma honestidade emocional na expressão de Haykal que se torna ainda mais potente por se tratar de um documentário.

O trabalho de câmera de Eliane é fenomenal, a documentarista possui uma sensibilidade estética que dá às paisagens já naturalmente idílicas do distrito de Akkar uma nova camada poética que transmite a calma da natureza intocada e seus ciclos. Aqueles que Restam (2016) é um filme lento, que assim como os agricultores que acompanha, sabe respirar e tomar seu tempo. Porém, é indissociável da lentidão contemplativa com que a câmera filma o vale, uma sensação de melancolia, de incerteza sobre seu futuro.

Os cidadãos do punhado de vilarejos que povoam o vale são profundamente divididos em suas crenças, mas o principal conflito que é retratado no filme é aquele entre os cristãos maronitas e os muçulmanos sunni, Eliane permanece quase exclusivamente do lado cristão do conflito, as únicas pessoas muçulmanas que vemos são alguns convidados que que chegam ao restaurante de Haykal. Chama a atenção em particular, uma garota cujo nome me escapa, que é prima ou irmã da empregada de Haykal, ela, contrariando o grande estereótipo  da mulher muçulmana, possui uma confiança exuberante, tem a língua afiada e assume com otimismo sua própria sensualidade através de uma cena de dança. No outro extremo dos “entrevistados”, e eu coloco a palavra entre aspas, pois não é exatamente uma entrevista que ocorre, pelo menos não em um sentido clássico, estão alguns representantes de grupos fascistas cristãos. Estes grupos temem a incursão de muçulmanos em suas vilas, mesmo que estes tenham comprado legalmente a terra de antigos moradores, e os expulsam violentamente. Eles defendem suas ações dizendo que estão combatendo o desaparecimento de seu próprio povo, é um discurso furado, muito popular entre fascistas e neonazistas do mundo inteiro. É bastante claro que Eliane não concorda com estes pontos de vista, mas ainda sim é digno de nota a maneira aberta como ela procura entender a raiz do conflito ouvindo até mesmo pessoas assim. Essa é uma das maneiras com que Raheb traz um pouco do elemento jornalístico para dentro de sua reflexão muito mais poética do lugar.

Aqueles que Restam retrata uma série de embates culturais e questões de identidade. Além dos já mencionados, há ainda o caso da legalidade da possessão de Haykal sobre sua terra que a família de seu amigo de infância reivindica, a questão política da corrupção do governo libanês comentada pelos fazendeiros, o êxodo rural e o medo de que esse lindo lugar que possui uma história milenar desapareça pois ninguém mais quer morar lá, a empregada de Haykal que fugiu aos dezoito anos de sua família para trabalhar em seu restaurante, até mesmo a questão ecológica expressada através de um desejo de se viver em harmonia com a natureza. Todas essas questões fazem parte do local, da vida de Haykal, e, portanto, fazem parte do filme. É no ímpeto da reflexão sobre tais questões que a diretora busca o título de seu filme: muitas vezes ela pergunta a Haykal qual deveria ser o nome da obra, os nomes descartados se tornam subtítulos das diferentes partes do filme, é uma situação bastante carinhosa em que a diretora e Haykal compartilham do ato criativo, o filme é, pelo menos nesses curtos momentos, uma obra compartilhada.

Depois de assistir Aqueles que Restam não sai com muitas respostas, mas isso não é algo ruim, a intenção da obra é muito mais ser um processo de contemplação desse resquício antigo e esquecido de mundo e das pessoas que lá permanecem, e definitivamente se encontra uma grande beleza dentro desse local.

 

Matheus Saboya estuda cinema na FAAP, foi primeiro assistente de direção de dois curtas-metragens universitários e está fazendo direção de arte de seu terceiro curta.