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Mãe!, de Darren Aronofsky – Um Jovem Clássico?

Em Cinema, como em qualquer arte, pode-se discutir infinitamente sobre gosto, sobre a preferência individual, sobre até onde vai a capacidade de julgar objetivamente uma obra e sobre o quanto nossas inclinações pessoais determinam nossa preferência por determinada obra em detrimento de outra. Há até mesmo quem diga que gosto não se discute.

 O fato é que algumas obras resistem ao tempo, tornam-se clássicos. Muitos dirão, em tom acusatório, que a maior parte das obras se tornam ”clássicos” mais pela indulgência de historiadores e críticos, que as elegem como cânone, do que por seus próprios méritos. De certa maneira isso é verdadeiro, pois eleger algumas obras como cânones, tendo em vista que “a vida é breve, a arte é longa”*, pressupõe a exclusão de trabalhos que apresentam tanta qualidade quanto os eleitos e, por vezes, até mais qualidade do que os eleitos. Creio, porém, que não é sem razão que se coloca uma obra num panteão, via de regra as obras escolhidas são capazes de sintetizar seu tempo, são capazes de aglutinar tantos temas relativos à sua época sob arquétipos e questão universais que acabam por se tornar marcos de sua época, ou “clássicos”. Por sua densidade temática e estética, obras clássicas parecem jorrar significados infinitamente, tal como os livros sagrados.

Não sei se isso se realizará, mas me parece que Mãe! (2017), do diretor Darren Aronofsky (Réquiem Para Um Sonho, de 2000, Cisne Negro, de 2010 e Noé, de 2014), apresenta pelo menos algumas das características necessárias para tornar-se um clássico. O filme, em principio, apresenta um casal (Jennifer Lawrence e Javier Barden), que busca viver a frugalidade do campo e reerguer uma casa que havia sido incendiada. Enquanto Ela busca reconstruir a casa, Ele, que é escritor, procura inspiração para iniciar seu novo livro, a inspiração, no entanto, parece sempre distante.  Aos poucos, o filme vai se delineando como um thriller psicológico.

De um dia para outro, surge à porta do casal um homem desconhecido (Ed Harris), um médico que diz ser fã da obra do escritor. O fato anima o escritor, que se sente inspirado. Dias mais tarde, surge também a mulher (Michelle Pfeiffer) do médico. Conforme passam os dias, vai surgindo uma quantidade inimaginável de pessoas, todas ligadas àquele primeiro médico.

A personagem de Jenniffer Lawrence não entende o que se passa e suplica que seu marido faça algo, mas ele, embevecido pela admiração de todos, ignora suas súplicas. Nosso conhecimento sobre a situação insólita é exatamente o mesmo da protagonista, ou seja, nenhum. A câmera está sempre colada à Jennifer Lawrence, de modo que acompanhamos suas investigações pelos corredores e cômodos da casa. Assim, somos chocados a todo momento com um mundo desconhecido, que parece ser regido por regras próprias e alheias a nós. O filme torna-se um thriller psicológico por essa sensação de termos sido jogados aos leões, sendo que os leões nos cumprimentam cordialmente antes de cada mordida. Nesse sentido, e até mesmo tematicamente, o filme remete inevitavelmente ao clássico O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polansky.

Conforme o filme se desenvolve, entretanto, percebe-se que suas pretensões vão muito além de ser um thriller. A partir de agora, direi coisas que podem ser spoilers para quem está interessado no filme, mas ainda não leu nem pesquisou nada sobre ele. Vale dizer que o próprio diretor, em entrevista, disse que as coisas que revelarei aqui não estragam necessariamente a experiência do filme, mas se você for do tipo purista com relação a spoilers, não leia.

De maneira sutil, o filme se revela como uma grande alegoria, sendo uma espécie de releitura da Bíblia, indo do Genesis ao Apocalipse. Vai ficando claro que Ele, o escritor, é Deus, um Deus traduzido em termos bastante humanos, isto é, Ele é falho. Aronofsky escolhe representa-Lo como um homem orgulhoso e tirânico, remetendo ao Deus impiedoso do Velho Testamento. Ela, por sua vez, é a um só tempo a Terra, uma espécie de entidade da Natureza e a Virgem Maria. Não é à toa que a protagonista possui uma relação simbiótica com a Casa que reconstrói, que é o espaço físico a ser habitado, a Terra. O homem e a mulher que chegam à casa, e que mostram-se maus hóspedes desde o início, são Adão e Eva. Mais tarde, até mesmo Abel (Brian Gleeson) e Caim (Domhnall Gleeson) surgem para se enfrentar. Os demais convidados, todos mal comportados, são os descendentes de Adão e Eva, e representam início da humanidade.

Quando a casa promove o Dilúvio, expulsando os visitantes, Deus se sente inspirado pelos acontecimentos a criar e produz suas mais novas obras: um livro sagrado e seu filho, gestado pela Mãe. Mas os humanos voltam e o livro sagrado gera uma nova legião de fãs, ainda mais fanáticos.

Do meio para o final do filme, os conflitos e sofrimentos da humanidade desfilam pela Casa, gerando uma estranheza muito bem construída de que eles não deveriam caber naquele espaço, embora a ilusão de que eles caibam seja tão real que duvidamos do que vemos. Esse é um comentário muito sutil sobre o fato de que, na verdade, esses conflitos não cabem na Casa, pelo menos não sem levar a um colapso total do mundo tal como o conhecemos hoje. Conforme os conflitos do Mundo se desenrolam, Ela, já na condição de Mãe, sofre cada vez mais com a destruição de sua Casa. É então que seu filho nasce, e nasce com o único objetivo de redimir os pecados daqueles que destruíram o lugar em que vivem– o filho nasce para ser crucificado e, no filme, ele é sacrificado pelos fiéis ainda bebê.

Toda essa alegoria arcaizante visa, declaradamente, comentar a contemporaneidade, apresentando questões como a condição do feminino e do masculino na atualidade, o machismo, a adoração de personalidades midiáticas (ironicamente representada pela relação de Deus com seus fiéis), as possibilidades da criação artística hoje, o medo de gerar vida num mundo que só produz morte, etc. O fato, no entanto, é que o projeto de Aronofsky é principalmente sensorial, não é por outra razão que ele nos coloca junto de Jennifer Lawrence durante todo o filme. A intenção é que nos sintamos como ela, é que sintamos como é ter seu lar, erguido com esmero e dedicação, destruído por visitantes que, além de não terem sido chamados, são inconsequentes e ingratos. Ainda que não seja o foco, o filme é guiado por um forte sentimento ecológico. É por isso que o filme não podia ser mais leve, mais idílico ou menos chocante. As pretensões de Aronofsky – mais uma vez – são moralistas, na acepção mais pura do termo. O diretor coloca-se como espécie de Bosch** pós-moderno, pintando um quadro surreal e apocalíptico para repreender o comportamento pouco cristão que temos adotado uns para com os outros e para com nosso lar.

É por essas razões que Mãe! apresenta-se como um clássico em potencial. O filme recorre, de maneira eficiente, a imagens ancestrais e arquetípicas para dar conta de questões próprias de seu tempo, ao mesmo tempo em que delineia um projeto estético muito bem definido. E, embora sua mensagem fundamental esteja bem firmada em sua espinha dorsal, as questões apontadas e as interpretações a cerca de determinados aspectos da obra são tão abertas, que ele permanece sendo uma espécie de enigma, sempre com camadas por desvendar.

*No original, em latim, “Vita brevis, ars longa”. Trata-se de um aforismo escrito pelo médico grego Hipócrates (460 a.C. – 377 a.C.) e popularizado pelo pensador romano Sêneca (4 a.C. – 65).

**Pintor Holandês célebre por pintar quadros recheados de simbolismos obscuros e de forte caráter moralista, cujo objetivo era repreender os pecados e as tentações que representava.

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários