O Formidável – O Feitiço Contra o Feiticeiro

Jean-Luc Godard se pôs a serviço da iconoclastia de maneira radical. No entanto, Godard, ele mesmo, tornou-se um ícone, de modo que, mais cedo ou mais tarde (e ele plantou muitos motivos para isso), a iconoclastia iria se voltar contra ele.

É verdade, porém, que o radicalismo a que levou sua iconoclastia – revestida de forte e estratégica auto-ironia -, transforma-o num alvo difícil de se atingir efetivamente, mas O Formidável (2017), de Michel Hazanavicius (O Artista, de 2011) é um exercício interessante de desconstrução do mito Godard.

O filme é baseado no livro Un An Après (2015), em que a escritora e atriz Anne Wiazemsky relata o relacionamento com seu ex-marido Godard. Anne havia participado de A Grande Testemunha (1966), de Robert Bresson, e foi chamada por Godard para protagonizar seu primeiro filme mais claramente político, A Chinesa (1967), que é também o filme que encerra a primeira fase da carreira do diretor. Foi por ocasião das filmagens de A Chinesa que Anne e Godard deram início a um relacionamento que atravessaria os ventos revolucionários de Maio de 1968 - ventos esses que o casal respirava com empolgação – e que terminaria um pouco depois de Godard, junto com o intelectual de extrema-esquerda Jean-Pierre Gorin, fundar o grupo Dziga Vertov, cujo propósito era criar um cinema político não só em seu conteúdo, mas também em sua forma e em sua produção. É exatamente esse período que O Formidável abarca.

O Formidável busca emular o tom auto-irônico do parodiado, além de fazer uso de várias das marcas formais da primeira fase do cinema godardiano, tais como a dramaturgia minimalista, a direção de arte marcada por cenários excessivamente brancos e cheios de objetos em cores primárias, a quebra da quarta parede, a metalinguagem (usada por Hazanavicius como gracejo e não como distanciamento brechtiano*), as frases de efeito, o uso de letreiros, e o estilo de decupagem, chegando mesmo a reconstituir planos dos filmes de Godard, sobretudo de O Desprezo (1963). Essa escolha também carrega certo caráter metalinguístico, pois assim como O Desprezo examina a derrocada amorosa de seus personagens, O Formidável examina a derrocada do amor entre Godard e Anne.         

Anne Wiazemsky era neta do escritor François Mauriac, notório apoiador do governo do general De Gaulle e, portanto, figura pouco quista pela esquerda revolucionária, ainda mais às portas de Maio de 1968. O Formidável brinca constantemente com as contradições entre o ímpeto revolucionário de Godard e seu meio inevitavelmente burguês. Logo na abertura, depois que Anne nos apresenta a Godard numa narração em off, Godard nos apresenta Anne também numa narração em off e a classifica como “demasiadamente burguesa”, para logo depois dizer que estavam apaixonados. O que o filme omite, reiterando constantemente o burguesismo da jovem Anne (interpretada por Stacy Martin), então com 20 anos, é que ela mesma era ligada a grupos anarquistas, e foi amplamente responsável por colocar Godard, então já com 37 anos, em contato com a juventude que encabeçaria Maio de 1968.

Mesmo para uma paródia, caracterizadas por personagens mais próximos de tipos, o filme acaba esvaziando seus personagens excessivamente. A representação de Anne Wiazemsky, apesar de a própria ter originado todo o relato que dá base ao filme, é destituída de força; e Godard é sempre um bufão inconsequente. A eles raramente é dada a chance de ser mais do que isso. Essa postura é compreensível do ponto de vista da investida iconoclasta que o filme busca dirigir a Godard, mas torna-se incompreensível quando se trata da representação de Anne.

O filme acerta, por outro lado, ao assumir-se abertamente como paródia e não como uma cinebiografia clássica. Além disso, O Formidável consegue reavaliar Maio de 1968 de um ponto de vista crítico e quase tão insolente (porque talvez não seja possível mais ser tão insolente) quanto o daqueles jovens revolucionários. Assim, o filme demonstra como o feitiço de Godard, que na verdade pode ser traduzido em termos da busca modernista pelo absolutamente novo, volta-se contra o feiticeiro. O diretor, afinal, aos quase 40 anos, estava adentrando numa típica crise de meia-idade, e, entre outras coisas, é por ressaltar essa crise terrivelmente ordinária que o filme faz troça do formidável. Godard que desde sua época como crítico da Cahiers du Cinema havia se voltado à destituição do cinema francês clássico e que sempre se vinculou às vanguardas políticas e artísticas de seu tempo, esteve continuamente voltado a destituição de um passado consolidado. Mas, já em 1967, ele se vê como passado consolidado e busca ultrapassar seus interlocutores mais jovens, motivo pelo qual passa a renegar toda a obra que havia realizado até então. É assim que o diretor ganha a pecha de “ridículo bancando o revolucionário”.

 A certa altura, Godard resume sua própria tragédia de maneira pontual: ele odeia velhos, o problema é que ele se tornou o velho. De maneira geral, o Maio de 1968 é lido pelo filme como um movimento que ansiava uma renovação do mundo maior do que era capaz de levar a cabo, além de não compreender plenamente suas contradições e sua origem burguesas, ou, mais precisamente, capaz de compreendê-las apenas para negá-las, em nome da “consciência de classes”. De alguma forma, essa é a postura exata do Godard em crise, que apenas a exagera, buscando um cinema mais político que ele só encontraria, e ainda assim temporariamente, na produção do grupo Dziga Vertov.

A caricatura do “ridículo bancando o revolucionário” é construída aos poucos, Luis Garrel encarna um Godard de língua presa para reforçar a postura infantilóide do parodiado. Ao contrário do homem cheio de certezas, genial e altivo, o que vemos é uma criança crescida, autoritária, carente e arrogante. É possível que as duas visões sobre o diretor sejam verdadeiras, e o filme deixa isso claro ao fazer tanto uma sátira de como uma homenagem à Godard. Mas o filme se faz ainda mais claro quanto à intenção de derrubar o diretor enquanto mito, enquanto totem, enquanto criatura deificada: as incontáveis vezes em que os famosos óculos de Jean-Luc são destruídos servem, por metonímia, como representação dessa destruição gradual do ícone.

Essa desconstrução gradual rende momentos engraçados que revisitam momentos do passado recente, tanto quanto recolocam questões relevantes sobre política e arte (como a questão da nudez no cinema), porém, como dito inicialmente, a reputação e as estratégias auto-irônicas de Godard o transformem num alvo difícil. De qualquer forma, parte da intelectualidade sentiu-se afrontada com a graciosa brincadeira de Hazanavicius. A brincadeira de Hazanavicius, porém, de fato não tem nada de inocente. É uma defesa de seu modo de fazer cinema, radicalmente oposta àquela busca pelo novo e pelo cinema político: O Formidável é uma defesa do ilusionismo, do culto ao passado e do pastiche nostálgico, características patentes tanto do filme em questão quanto de O Artista. Assim, O Formidável busca virar, uma última vez, o feitiço contra o feiticeiro.

*Em linhas gerais, o distanciamento diz respeito à estratégia estética elaborada pelo dramaturgo Bertold Brecht que consiste em deixar claro ao público que ele está diante de uma obra de arte. O distanciamento pode ser realizado de várias maneiras, a metalinguagem é uma delas. Essa estratégia foi transposta para o cinema por diversos autores dos assim chamados Cinemas Novos.

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários