Spike Lee, Vanguarda, Feminismo e Netflix

Ela Quer Tudo (She's Gotta Have It), série da Netflix, de 2017

Dia 23 de novembro estreou no Netflix brasileiro a série Ela Quer Tudo. Uma adaptação do clássico filme de Spike Lee de mesmo nome.

Como a primeira temporada inteira foi dirigida pelo próprio cineasta, as diferenças do longa de 1986 para a série de 2017 são muito evidentes, além de complexas.

A série abre, assim como o filme, com a explicação da protagonista Nola Darling sobre porque ela está ali. Ela vem em defesa do seu direito à sua própria liberdade de escolha e liberdade sexual. Nola sai com três homens e eventualmente uma mulher (na série) ao mesmo tempo, sem se prender em nenhum tipo de relacionamento com nenhum deles.

Esses três homens representam arquétipos masculinos tão bem delimitados, quanto diferentes entre si: Jamie Overstreet, o empresário bem sucedido e maduro; Greer Childs, o vaidoso; e Mars Blackmon o mais engraçado e infantil de todos.

Com cada um Nola estabelece uma relação diferente, agindo em parte pela sua personalidade, em parte pela deles. Mas se no filme o ego desses homens e sua luta pela exclusividade de sua relação com a protagonista são impositivas e até agressivas, na série Nola é, quase todo o tempo, dona da situação.

O Brooklyn de 1986 parece mais opressivo e a estética vanguardista escolhida por Lee para o filme revela uma vida complexa e arrastada. A série de 2017 feita para uma empresa como o Netflix não poderia ser assim. As estéticas das duas obras, ainda que guardem os depoimentos feitos direto para a câmera e os cortes abruptos do estilo de Lee, não poderiam ser mais diferentes.

Ela Quer Tudo (He's Gotta Have It), longa-metragem dirigido por Spike Lee, de 1986 

Quem assiste ao filme com o olhar dos anos 2000 sente o tempo pesar sobre si. As falas e as trocas de cena são muito lentas para a nossa mente acostumada ao Youtube. As relações se mostram violentas pela fala e pelo modo de ser cotidiano, não se fazem necessárias enormes cenas de ação para senti-las e nem explicá-las.

 A protagonista é uma mulher muito bonita e com certeza dentro do padrão, mas ainda muito distante da perfeição da Nola Darling de 2017. As roupas largas da personagem de 86, além do antigo modo de filmar de Lee, faz com que seu corpo não seja colocado em primeiro plano, nem sexualizado o tempo todo, como na série.

Tudo é mais realista no filme, com sua estética mais suja e bruta do que na pasteurizada série da Netflix. Ainda assim, Lee não parece cego a essa diferença.

Toda a série é permeada pela discussão sobre a gentrificação do Brooklyn, a chegada de cada vez mais pessoas brancas e com dinheiro, os hipsters, etc. E junto com isso o debate da melhoria de vida do povo negro nos Estados Unidos.

As perguntas que Spike Lee parece deixar no ar são: Os negros conseguiram de fato melhorar de vida? A vida dos negros e negras está sendo vista de forma mais humana por seu opressor, ou eles apenas os enxergam como potenciais consumidores?

As mesmas perguntas podem ser feitas a respeito do aparentemente novo lugar da mulher na sociedade. E ninguém representa melhor a intersecção desses questionamentos do que a personagem Shemekka, a amiga de Nola que trabalha em uma boate de striptease.

 Em certo momento da série, as amigas Nola, Shemekka e Clorinda (a dona da galeria de arte onde Nola expõe suas obras) discutem sobre se as alterações cirúrgicas do corpo feminino deveriam ser consideradas anti-feministas.

A discussão acaba em um tom de feminismo liberal em que as mulheres devem poder fazer o que quiser com o seu corpo, ainda que isso signifique torná-lo mais dentro dos padrões patriarcais capitalistas, com apenas uma das amigas (Clorinda) discordando enfaticamente.

Nola nunca é impositiva, mas não sente qualquer necessidade de alterar o seu corpo. Enquanto Shemekka acaba indo a uma clínica clandestina injetar silicone nas coxas e na bunda, passando por uma dor terrível só para poder ser mais valorizada como dançarina na boate aonde trabalha.

Algumas cenas depois Nola vai à sua psicanalista e um quadro ao fundo da sala com os dizeres: A vida dos negros está melhorando, soa em tom irônico.

Para além das questões corporais e sexuais, ao redor das quais o filme gira sem se expandir, a série também coloca os questionamentos de Nola como artista.

Em sua primeira exposição um crítico de arte branco a crítica por não ser “política o suficiente” e é só quando seu trabalho de lambes espalhados pelas ruas questionando os assédios que as mulheres sofrem todos os dias é descoberto que seu trabalho parece ter algum valor.

Nola é livre, tão livre que às vezes a série parece carecer de drama e de conflito, mas esse é o seu propósito. Para ela o poliamor não é um dilema e sua arte é política simplesmente por retratar pessoas negras e ressaltar sua existência enquanto indivíduos.

 Como diz a personagem Joelle da série Cara Gente Branca (2017): às vezes a maior vitória para uma pessoa negra é só poder viver, sem ter que se estressar com tudo. E isso provavelmente vale para todos os grupos oprimidos.

 

Julia Gimenes é  formada em cinema e trabalha como montadora e fotógrafa desde então. Apesar do amor por fazer cinema, pensar sobre ele também sempre a encantou.