Suburbicon: Bem-Vindos Ao Paraíso

Durante os anos 1980, os irmãos Coen esboçavam já um roteiro que ficaria engavetado por muito tempo. O roteiro se passava num subúrbio tipicamente americano, daqueles que surgiram no pós-guerra e que se tornaram a imagem mais acabada do sonho americano, com sua grama verde, cercados brancos, donas de casa dedicadas e chefes de família probos.

Como é típico das histórias dos Coen, no entanto, nada poderia dar mais errado nesse reduto de aparente perfeição. Numa crescente de humor negro progressivamente absurdo, os irmãos comentam a hipocrisia e as contradições do sonho americano.

O responsável por ressuscitar o projeto e realiza-lo é George Clooney que, pouco antes do projeto ser engavetado de vez, teria sido chamado para protagonizar o filme. Agora atrás das câmeras, Clooney encarregou-se de dar os últimos tratamentos ao roteiro com seu parceiro Grant Heslov e também de dirigir Suburbicon: Bem-Vindo Ao Paraíso. À trama original, Clooney e Heslov acrescentaram, sem muita elegância, comentários sobre os crescentes conflitos raciais dos EUA. No roteiro revisitado por Clooney, os ânimos de Suburbicon se agitam progressivamente com a chegada dos Mayer (Leith M. Burke, Karimah Westbrook e Tony Espinosa), a primeira família negra da vizinhança. Os Mayer, por sua vez, vão morar ao lado da família Lodge.

Os Lodge são: Gardner Lodge (Matt Damon), sua mulher Rose - que devido a um acidente de carro anda de cadeira de rodas -, sua cunhada, e gêmea de sua mulher, Magaret (as duas irmãs são interpretadas por Julianne Moore) e seu filho Nick (Noah Jupe, que confirma o talento já mostrado em Extraordinário, também deste ano). Sinteticamente, Lodge e Margaret se juntam para arquitetar planos de enriquecimento rápido e também para se livrar de Rose, o principal obstáculo para o amor dos dois. As coisas, porém, saem cada vez mais do controle, e Nick vai percebendo os podres de sua família e os de sua vizinhança. Logo no início do filme, Nick se aproxima do filho dos Mayer e, por isso, acompanha confuso a hostilização violenta que a família de seu amigo sofre, ao mesmo tempo em que tenta compreender as tragédias de seu próprio lar.

Clooney se mostra bastante à vontade como diretor, além de se deleitar por poder brincar com a linguagem típica dos Coen. Entretanto, a adaptação do roteiro no sentido de abordar as tensões raciais não é muito feliz. Fica claro que o objetivo da adaptação foi fazer um comentário social da maneira mais sutil possível, de modo a explicitar como a família Mayer é usada pelos moradores do subúrbio como bode expiatório para seus próprios problemas. Falta na adaptação, porém, uma ligação dramática consistente entre a trama principal e essa subtrama, de modo que o conflito racial se torna uma espécie de adereço, um comentário bastante superficial sobre esse tipo de conflito. Soa como se Clooney tivesse apenas embarcado na atualidade que o tema ganhou sob o governo Trump, sem ter como abordar o assunto a sério.

Ainda que esteja confortável, é notório que Clooney não consegue imprimir nenhuma marca específica em sua direção, como já não havia conseguido em filmes anteriores. No caso específico de Suburbicon, a falta de assinatura do diretor torna-se um problema, uma vez que é inevitável perceber sua direção como uma cópia competente, mas incompleta, da linguagem já bem estabelecida dos irmãos Coen.

Originalmente o filme se chamaria What Jack Saw (O Que Jack Viu). Jack, no roteiro original, era o nome de Nick. Essa perspectiva do olhar infantil se manteve na versão de Clooney e adquiriu uma nova importância: o olhar de Nick ainda não é impregnado pelo racismo de todos que estão a sua volta, o que permite sua aproximação redentora com o filho dos Mayer. Mas mais do que ser a concretização da esperança e de certa forma de ingenuidade, a figura de Nick é também responsável por dar todo o tom necessário ao filme: Nick é uma criança indefesa e desamparada por todas as figuras que deveriam protegê-lo, ele está completamente acuado e sem saída.

Essa escolha dos irmãos Coen gera uma perspectiva de fácil identificação para com o público, pois faz uso da perspectiva gnóstica, segundo a qual a realidade a que temos acesso é uma mentira forjada por conspiradores ou portadores oniscientes da verdade (no fundo, é uma lógica muito próxima do mito da Caverna de Platão). Muitos filmes fazem uso dessa perspectiva, em que acompanhamos um individuo desconhecedor da verdade que o cerca, descobri-la estarrecido. Um filme recente, que põe a questão racial em seu centro com precisão e que faz uso dessa perspectiva, é Corra! (2017). Em Corra! o desamparo do protagonista tem origem no fato de ele ser uma minoria (tanto uma minoria social e política quanto numérica), cercada por pessoas que querem vê-lo morto, mas que mostram-se, a princípio, amigáveis e cordiais. Dentro da perspectiva gnóstica, a realidade surge sob a aparência do delírio, um delírio no qual todos estão num complô contra o protagonista, e é por isso que as personagens hesitam em tomar uma decisão até se tornar tarde demais, ou quase. É exatamente essa a situação de Nick ao descobrir o ardil e as verdadeiras motivações de se pai e de sua tia, ou ao manifestar a violência que é gratuitamente dirigida a seus vizinhos.

Mas mais do que permitir fácil identificação com o público, essa vulnerabilidade do protagonista traz um sentimento trágico para a trama. Essa sensação de que os protagonistas são arrastados pelo destino, de que são determinados por tudo aquilo que os cerca sem poderem responder a altura e se desvencilhar da situação é um dos principais elementos caracterizadores das tragédias gregas. É claro que os irmãos Coen encaram toda essa tragédia com um riso irônico e muito humor negro, e, a certa altura, eles fazem até mesmo troça dessa característica de suas obras. Um investigador da seguradora visita os Lodge, e insinua a Margaret que ele sabe sobre os planos dela e de seu amante, falando sobre as coincidências típicas das óperas, coincidências que costumam levar a grandes tragédias. Ora, de alguma forma o drama operístico herda a tradição das tragédias, mas com contornos mais exagerados e histriônicos. É justamente pela exacerbação do trágico-histriônico, nos momentos mais inusitados, que o humor dos Coen se caracteriza.

Se a tragédia grega tinha por algozes os deuses, a tragédia de Suburbicon tem por algozes os próprios moradores que, tendo a si mesmos na mais alta conta, são incapazes de perceber seus próprios defeitos, suas escolhas erradas, seus preconceitos e suas inseguranças.  A exacerbação disso se dá no núcleo da família Lodge. Depois de todas as escolhas evidentemente equivocadas, Gardner Lodge ainda tenta colocar a culpa por sua tragédia na família Mayer, mesmo que ele estivesse praticamente alheio a todos os problemas envolvendo seus vizinhos até então. Assim Clooney procura amarrar seu comentário social ao final. Mas, como já dito, a falta de uma ligação dramática mais profunda entre a família Mayer e a família Lodge ao longo da trama, passa uma impressão muito instrumental da tematização dos conflitos raciais.

Suburbicon vale a pena pelos momentos de humor negro e absurdo, pela correta realização de Clooney e pelo entretenimento garantido. Mas ainda acaba sendo um filme menor dos Coen, mesmo sem ser, exatamente, um filme dos Coen – Oi?

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários