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Corra! - O racismo “sobrenatural”

O gênero terror/suspense sempre estimulou um exercício de narrar uma história que gerasse sentimentos de tensão, medo, angústia ou aflição, sendo de forma mais contida ou mais extrapolada (de propósito ou não).

O que não escapa à regra é a necessidade de trazer algo mais ao espectador, pois por ser um gênero popular e de fácil aceitação pelo público em geral, quem os assiste frequentemente consegue captar clichês e até mesmo técnicas batidas para assustar o espectador. Talvez o que o espectador padrão do gênero terror não possa esperar de uma produção desse gênero em específico é a chance de debater uma questão, fato ou tema através dos arquétipos e técnicas típicos dos filmes de terror.

Sendo algo pouco explorado no cinema de terror, especialmente no mais comercial, o subgênero denominado de “Suspense social” consiste, em suma, em criar um filme cuja intenção superficial é gerar clima de tensão ao espectador, mas cujo intuito maior é levantar um debate sobre um tema de forma explícita. Isso gerou clássicos pouco conhecidos do grande público, como Vampiros de alma (1956) do diretor Don Siegel, além de Esposas em conflito (1975) do diretor Bryan Forbes.

A decisão de realizar um filme que reacendesse esse gênero pouco explorado foi o que ocorreu na mente do astro da comédia americana Jordan Peele ao dirigir e escrever o terror independente Corra! (2017), filme que se tornou instantaneamente um sucesso de público e crítica, especialmente nos EUA.

Curioso de se notar na história desse filme é a utilização de uma premissa simples. Um fotógrafo negro Chris (Daniel Kaluuya) decide passar o fim de semana na casa dos pais de sua namorada caucasiana, Rose (Allison Williams). No princípio, os pais se mostram simpáticos e receptivos com a relação inter-racial da filha, só que então Chris começa a notar certos comportamentos estranhos, especialmente dos empregados negros da casa, e aos poucos se revela no local um segredo macabro que ameaça sua vida.

Percebe-se a razão do sucesso de Corra!, pois o diretor opta por partir de um arquétipo de premissa de terror mais tradicional, que é a casa distante onde coisas macabras irão ameaçar a vítima/o protagonista. Só então, no meio da narrativa, uma série de levantamentos sobre a questão racial americana revela o conservadorismo da casa da namorada Rose que entra em choque com a presença de Chris, um negro.

Ao invés de inserir debates excessivos por meio de diálogos, e assim se concentrar em criar o suspense do ambiente local, Jordan Peele recria momentos de quebras da realidade contemporânea com elementos que fazem alusões óbvias ao período escravocrata americano, dando a sugestão de que mesmo notando a evolução do comportamento da população americana, ainda se observa tentativas de retorno ao pensamento conservador, encabeçada principalmente pelo racismo presente na realidade do EUA.

Além de inserir o debate a ser destrinchado ao longo do filme, o diretor não foge da sua promessa de criar um filme essencialmente de terror, mesmo que deixando jump-scares tradicionais e gratuitos de lado. No lugar desse tipo de clichê, o filme opta pela construção de um suspense mais sutil, tanto pelo design de som quanto por recursos de fotografia. Prova disso é a cena de abertura, um plano-sequência em que uma música cria um sentimento de perigo inesperado, enquanto um personagem negro (que voltará a aparecer muito depois na história) caminha por uma rua erma e tenebrosa.

Além de apostar no gênero popular de terror, está presente também o uso da comédia. A assinatura da comédia de Jordan Peele é apresentada principalmente através do alívio cômico do filme que é o personagem Rod, interpretado por Lil Rel Howery. Os momentos de piada são característicos do personagem de realidade negra, sempre muito pontual e que servem de contraponto ao núcleo de Chris, em que há somente a tensão e perigo constante. De alguma forma, dessa maneira o filme também se torna mais palatável para o público em geral.

Corra! se revela uma grata surpresa dentro do gênero terror, e destaca o talento e a criatividade de Jordan Peele, que cria um filme de suspense com uma direção competente muito consciente sobre a relevância do tema que aborda para o contexto americano atual, provando que é possível criar, por meio de gêneros populares, obras que promovem debates importantes e de fácil compreensão para o público em geral. Isso é especialmente significativo num momento em que os EUA é governado por um racista.

 

Ettore R. Migliorança é estudante de Cinema, com ênfase em roteiro e análise de filme, e já produziu dois curtas universitários