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A luta social do MST pela reforma agrária no documentário O Sonho de Rose

A LUTA SOCIAL DO MST PELA REFORMA AGRÁRIA  NO CINEMA DOCUMENTÁRIO: O SONHO DE ROSE

RODRIGO OLIVEIRA LESSA 

O Sonho de Rose: dez anos depois, difere da obra que o inspirou, Terra Para Rose – o qual já analisamos previamente noutra oportunidade – em muitos aspectos. (LESSA, 2007).

O principal deles, como veremos, será a construção de um tipo de refiguração da circunstância de mundo histórica quase que apenas e absolutamente dedicado a comprovar o sucesso dos assentamentos decorrentes da ocupação da fazenda Annoni, uma área de solo agricultável situada a 400 km de Porto Alegre. No filme, a forma de aproximação com os sem-terra e o registro do desempenho das atividades da vida no campo apresenta pouca abertura para o desdobramento ordinário ou extraordinário da vida cotidiana. Assim, permite, apenas, uma baixa carga de espontaneidade para a circunstância de mundo no seu transcorrer e um visível desinteresse pela observação mais profunda dos novos contextos de contradições emergentes naquela nova situação. Quase sempre entrevistados distantes das atividades cotidianas que desempenhariam na nova vida como proprietários, os ex-sem-terras encontram-se deslocados dos seus ambientes habituais e adequam-se às situações de tomada de acordo com as prerrogativas impostas pelo enredo do filme, que do começo ao fim se afasta pouco de seu objetivo.     

Feito sob um contexto distinto de planejamento no qual prevaleceu uma tese pré-estabelecida – a ser comprovada por meio da realização de um documentário – a obra dedica-se quase que abertamente a comprovar como, de modo geral, o assentamento realizado a partir da ocupação da fazenda da Annoni, foi um evento bem-sucedido e que, além de trazer melhoria de vida para os sem-terra que dele se beneficiaram, representam uma espécie de modelo para futuras iniciativas de implantação da reforma agrária no país. Esta idéia, no entanto, como é possível perceber nos depoimentos dos assentados e nas demais imagens do filme, convive com uma série de contradições que dizem respeito ao novo cotidiano destes trabalhadores – disputas internas em relação ao cultivo individual ou coletivo da terra, ao destino ou função dos filhos frente ao contexto da agricultura familiar, ao compartilhamento de utensílios de cultivo e à concessão ou não de lotes a famílias que terminaram abandonando a militância, divergências sobre novos princípios e normas do movimento, mudanças radicais na visão de mundo em relação aos tempos de da ocupação, etc. –, e que o filme deixa entrever sem uma problematização mais clara. Estes pontos, embora venham a atenuar ou mesmo entrar em choque com os ideais de integração e harmonia que permeiam o discurso do filme, são reiteradamente postos em segundo plano, o que contribui para a uma perda significativa do valor documental da obra. 

Sem adentrar na discussão sobre a pertinência ou não de uma visão de mundo otimista sobre o fenômeno dos assentamentos de sem-terras, pretendemos entender como o exercício de problematização e reflexão de questões sobre a vida cotidiana dos assentados encontrar-se-á dificultado pela reunião de um conjunto de entrevistas, encenações e tomadas que, de um modo geral, captam a circunstância de mundo histórica da vida nos assentamentos sem aproximar-se dos momentos nos quais esta transcorre. Ademais, a visão de bem-estar que enseja a tese de sucesso assenta-se sobre aspectos da ideologia dominante, que centra exclusivamente o sucesso dos assentamentos na perspectiva de aumento da produção e do consumo.
Veremos, na presente análise, como em O Sonho de Rose prevaleceu uma narrativa pouco dedicada a realizar uma reflexão efetiva sobre o novo momento vivenciado pelos militantes do Rio Grande do Sul e da organização como um todo – a qual terminou deixando em aberto muita das possíveis transformações na vida dos sem-terra ao longo de dez anos – e em que medida isto encontra razões na forma como a obra se apresenta enquanto narrativa cinematográfica documental.
A repercussão do filme Terra Para Rose foi notável no Brasil e mesmo no exterior, apesar de o período que abrange o fim da década de 1980 e a primeira metade da década de 1990 não tivesse sido dos melhores para o cinema brasileiro. O filme chegou a conquistar o 9º Festival Internacional de Havana, em Cuba, no ano de 1987, o XX Festival de Brasília, 1988, e a 17ª Jornada de Cinema da Bahia, também em 1988. Com isso, Tetê Moraes não só chamava a atenção do público de documentários e interessados nas questões agrárias no Brasil, mas também de personalidades e instituições possivelmente envolvidas com o contexto: sejam as que demonstravam relativo interesse na divulgação da obra, sejam, em outros casos, aquelas que pretenderam censurá-lo ou reter o material cinematográfico produzido entre os sem-terra do Rio Grande do Sul. Personalidades públicas como o atual Senador Eduardo Suplicy, o compositor Chico Buarque – que viria a dispor sua música “Assentamento” para a trilha sonora de O Sonho de Rose – e a atriz e narradora do filme, Lucélia Santos, passaram a acompanhar a repercussão do filme e em alguns casos entrar nas polêmicas que ele levantou.     
Apesar das premiações conquistadas, grandes dificuldades resultantes do fechamento da Embrafilme, após o início do governo Collor, em 1989, trouxeram um período de grande dificuldade para o cinema brasileiro, o que fez a própria Tetê Moraes (diretora do filme) se afastar da área cinematográfica para se dedicar a atividades alternativas de produção e direção em televisão, além de participação em curadorias e eventos da área. Por isso, como a própria diretora diz em comentários sobre o filme (MORAES, 2001), inexistiu após a realização de Terra Para Rose qualquer perspectiva mais concreta de rever aquelas pessoas até então filmadas nos anos de 1984 e 1985, na fazenda Annoni.
No entanto, durante este período, Tetê manteve contato com pessoas ligadas ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária) e ao próprio MST, tendo acompanhando os desdobramentos que ocorreram após o assentamento das 300 famílias na recém-empossada fazenda Annoni, além de outras investidas do próprio movimento e questões ligadas a terra por todo país. Como a questão da reforma agrária ganhava cada vez mais relevo e atenção nacional, demonstrando ser um grande fenômeno social, político e sob alguns pontos de vista, cultural, a diretora resolveu atender ao convite feito pela então gestão do INCRA na época e decidiu refazer a viagem para descobrir como andavam aquelas pessoas retratadas em Terra Para Rose, e quais as mudanças ocorridas dez anos depois da luta social encampada pelo movimento. Foi assim que com o patrocínio INCRA/PNUD (Programa das Nações Unidades para O Desenvolvimento), em 1996, Tetê Moraes montou um novo roteiro fílmico e decidiu reencontrar aquelas famílias e personagens para contar uma nova história que retrataria o impacto daquela experiência em suas vidas.
Aos poucos, dentro deste contexto, a conduta estética de O Sonho de Rose começará a delinear um rumo distinto da dinâmica empregada no Terra Para Rose. Como a iniciativa para as filmagens decorre não só de um interesse da diretora em refazer o trajeto, mas também de uma gestão específica do INCRA em ter algum registro do que seria uma experiência de produção agrícola em áreas desapropriadas em favor de sem terras, a organização da pesquisa inicial para a realização do filme e a concepção de seu enredo já estarão num processo avançado de idealização das questões a serem trabalhadas no filme. O que, neste caso, seria a divulgação nacional da reforma agrária como uma forma possível e eficiente de promover o incentivo à agricultura no Brasil, discurso este que se reflete no próprio subtítulo do documentário: O Sonho de Rose: dez anos depois – um retrato do Brasil que dá certo. Deste modo, o empreendimento cinematográfico se caracteriza por registrar, de forma unilateral e sem se ater às contradições da vida cotidiana dos agricultores, o contexto do assentamento que resultou das desapropriações realizadas pela militância dos trabalhadores sem-terra do Rio Grande do Sul, principalmente sob o foco do desenvolvimento das atividades de plantio e cultivo da terra pelos agricultores recém-empossados, do seu alto nível de organização, produtividade e integração com o mercado e empresas que atuam no ramo da agricultura no Brasil. Enfoque este que se consolidou também em função da influência de uma gestão do Estado Federal e, em particular, do próprio INCRA, que se mostrou decisiva não só na iniciativa de propor um novo filme documentário à diretora Tetê Moraes e sua equipe, mas também no perfil do caráter político que a obra adquiriu no seu resultado.
a)    Um filme de tese e suas evidências.
Um filme documentário que se configura pela defesa de uma ou mais idéias sobre uma determinada problemática, e que por sua vez traz isso abertamente através de uma expressividade sucinta, de uma montagem direta na sua interlocução ou às vezes até da narração de textos em voz over, é também denominado em meio à teoria do documentário de cinema expositivo, educativo, clássico ou, como nos parece mais adequado à sua manifestação moderna, filme de tese. (RAMOS, 2008, NICHOLS, 2005, TEIXEIRA, 2004).
A origem deste estilo  confunde-se com o próprio processo estético de consolidação do filme documentário enquanto um gênero particular dentro do cinema, quando em diretores como John Grierson, Robert Flaherty e Humberto Mauro prevalecia o objetivo de trazer ou emitir asserções e informações sobre os temas tratados nos filmes, não raro com intenções persuasivas e educativas, sem ver na construção de encenações, cenários, no uso exaustivo da voz over e de imagens de arquivo, algo que comprometesse os conhecimentos que estariam sendo transmitidos ao espectador. Ao citado primeiro período do cinema documentário Fernão Ramos (2005) dará o nome de cinema da “ética da missão educativa”. Também a seu ver, o filme documentário surgiria como detentor da incumbência de educar as massas e carregar uma despreocupação inicial com formas fílmicas próprias de documentário.

A visão do documentário como detentor de uma missão caracterizada como educativa [...] delineia o sistema de valores éticos do primeiro documentário, a partir do qual o conjunto de espectadores/cineastas desses filmes estabelece valores que norteiam sua conduta com relação ao que está sendo veiculado/produzido. Esse primeiro horizonte ético do documentário tem, portanto, em seu centro, a dimensão educativa em suas variantes e ramificações. (RAMOS, 2005, p. 170-171 ).

Neste sentido, aquilo que encontramos em O Sonho de Rose não é algo estranho à tradição documentária, mesmo no que diz respeito ao cinema da segunda metade dos séc. XX. Obras como Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, O País de São Saruê (1971), de Vladmir Carvalho, dentre outras, evidenciam a forma pela qual este estilo clássico da narrativa documental pôde permanecer e se transformar historicamente, não raro se aproximando de teorias acadêmicas de diversas áreas das ciências humanas – como ocorre em Viramundo, que garante o respaldo de suas observações nos estudos de vários autores, dentre os quais Caio Prado Jr. Como resultado da divulgação ampla dos resultados obtidos com o estilo do cinema direto, no entanto, em países como Canadá e Estados Unidos e a partir principalmente da década de 1960, o estilo clássico no Brasil foi cada vez mais dando espaço a uma narrativa documental que, é verdade, se mantinha dedicada a vincular informações e trazer problemáticas, mas já se encontrava preocupada em tomar o material bruto de imagens e sons como um meio importante por onde se devem passar os argumentos e evidências sobre as proposições colocadas e defendidas pelos argumentos da obra. Embora não negue a construção e o caráter autoral das narrativas e as tramas retratadas nos documentários, esta era uma prerrogativa que autores como Robert Drew e Albert Maysles, fundadores do estilo direto, faziam questão de manter. (RAMOS, 2008).  
No caso de Tetê Moraes e em particular de Terra Para Rose e O Sonho de Rose, este engajamento e a idéia de uma de uma tese a ser trabalhada a partir de um filme estão presentes. No entanto, em  O Sonho de Rose, que é o foco de nossa atenção no presente momento, o modo pelo qual o filme é construído e a relação dos argumentos centrais com o material documentado junto aos personagens do primeiro filme são bastante diferentes.
Pela sua forma explícita e direta, O Sonho de Rose torna a interação das imagens com o discurso político uma constante, a qual nunca se desliga do corpo de imagens e sons que compõem a obra. O filme é composto basicamente de entrevistas com os novos assentados, imagens de campo das pastagens, áreas de cultivo, propriedades e utensílios da produção, além de uma grande quantidade de encenações que os retratam em situações não acompanhadas em seu transcorrer durante as filmagens. Sua narrativa realiza um levantamento unilateral do novo cotidiano dos personagens de Terra Para Rose e, com isso, define a apropriação legal e efetiva da terra para cultivo por parte dos trabalhadores rurais como um fato que propiciará àquelas pessoas um futuro mais feliz – discurso este que resta bem claro tanto em trechos específicos quanto na sua representação como um todo. O dia-a-dia de luta, sofrimento, privações e tensão vivido nos quase quatro anos de acampamento, como contam os próprios sem-terras no primeiro filme, transformam-se na perspectiva de sucesso, felicidade, esperança, satisfação e tranqüilidade perante a nova vida que levam nas propriedades conquistadas –  a partir do que nos conta a narrativa desenvolvida no filme.
Esta correspondência encontrada entre o material documentado e o discurso presente na narrativa, no entanto, não traz uma inserção significativa com o cotidiano real da nova vida levada pelos assentados. De um modo geral, os trabalhadores rurais assentados são interceptados em circunstâncias distantes da vivência real do cotidiano – o que o filme procura relativizar com tomadas encenadas ou visivelmente provocadas pela produção do filme – e as questões abordadas nos depoimentos apresentam uma configuração previsível, mais ligada à confirmação das alegações sobre o bem-estar dos assentados que circunda os argumentos otimistas do filme. Situações imprevisíveis, como o enfrentamento com a polícia e o alojamento na assembléia legislativa do Rio Grande do Sul, vistos em Terra Para Rose, já não estão mais presentes.
Ademais, existe no filme também o acesso a uma forma de conceber e produzir o documentário muito ligada à valorização da situação de embate dos autores (ou da autora) do filme com as circunstâncias da tomada e os indivíduos que dela participam. O filme como um todo traz relativo destaque para o evento da visita da diretora Tetê Moraes como sendo algo que faz parte da história do próprio filme. Ou seja, na história daqueles que são os protagonistas do filme, os assentados do MST, o encontro com os cineastas e as relações com os eventos da produção de um filme, neste estilo de conceber o documentário, são uma peça chave que precisa fazer parte da trama.  Há, portanto, uma importância concedida ao reencontro entre os antigos sem-terra deste filme e a sua diretora, que por sua vez é a mesma de Terra Para Rose, e já agora na condição nova de personagem, para reviverem as lembranças e refletir sobre a melhora ou piora da situação de vida de cada um.
Muito divulgada a partir das inovações e proposições referenciadas ao cinema verdade francês, que tem em Jean Rouch sua maior referência, esta forma de fazer o documentário surge com a afirmação do teor subjetivo das imagens e idéias vinculadas pelo filme. Ao admitir a idéia, largamente disseminada, de que a subjetividade do autor permeia toda e qualquer obra, a ética participativo-reflexiva deste estilo passa a acrescentar ao filme estratégias desconstrutivistas que apresentem as etapas de composição da visão de mundo que o diretor vincula na obra. Para isso, recorre preferencialmente às entrevistas e ao corpo-a-corpo com a circunstância de mundo em situação de tomada. “A questão central é trabalhar o estilo de modo que o dispositivo cinematográfico torne-se evidente (e de preferência visível) em seu trabalho de representação. O nome deste tipo de documentário (pois sempre é preciso um nome) será ‘cinema-verdade’.” (RAMOS, 2005, p. 179).
Este caráter desconstrutivo, no entanto, não é abraçado no filme de Tetê Moraes, a qual parece não haver problema informar o espectador sobre a nova experiência de vida dos assentados através de uma intervenção intersubjetiva. Assim, o estilo, por meio da influência que exerce, adentra a narrativa de O Sonho de Rose como um traço que não destoa do caráter de filme de tese da obra – na sua condição expositiva e quase educativa. Todavia, faz com que a figura de Tetê Moraes a sua visita torne-se um evento tão destacado no filme quanto a história e a vivência dos novos assentados que a própria obra pretende contar, o que certamente irá repercute no teor documental da obra como um todo. O resultado, portanto, é um perfil intermediário da trama documental, no qual a autora faz questão de frisar a sua condição de personagem no filme mas, por outro lado, não abre mão do caráter expositivo e informativo do documentário.
Portanto, podemos observar como uma narrativa que se restringe à confirmação de previsões estabelecidas na pré-produção, na forma de um discurso político sobre a reforma agrária, percorre apenas unilateralmente o universo da relação entre o ator social, no caso o trabalhador rural assentado, com os objetos e circunstâncias de sua vida cotidiana, deixando apenas sob as entrelinhas e numa condição refigurativa secundária contradições que seriam fundamentais na compreensão desta nova condição material de existência e das transformações que ela possivelmente teria provocado na vida dos trabalhadores rurais sem-terra do Rio Grande do Sul. O resultado será uma representação que traz transfiguradas algumas questões importantes sobre a nova vida dos personagens acompanhados em Terra Para Rose, mas que, por outro lado, deixa-as em aberto e comporta-se evasivamente em relação aos elementos da sociabilidade e da formação social dos indivíduos ligados à luta do MST pela reforma agrária.
Uma das primeiras questões que devemos localizar em O Sonho de Rose é a forma como a tese central do filme vai se desenhando implicitamente e, em alguns momentos, de forma bastante direta. O filme, inicialmente, faz uma espécie de abertura contando de forma resumida a história do filme Terra Para Rose e dos personagens que dela fizeram parte, afirmando que, depois de toda a história de luta pela reforma agrária vivida no acampamento da fazenda Annoni, dez anos depois, havia chegado a hora de ver como estavam aquelas famílias após a desapropriação e a concessão da terra para o assentamento. Através de uma retrospectiva que também traz a morte trágica de Roseli Celeste Nunes da Silva, Rose, mencionando o seu sonho de obter a terra, a narração proferida por Lucélia Santos traduz a circunstância histórica do filme: “Dez anos depois, Tetê Moraes foi ver o que aconteceu com o sonho de Rose.” (MORAES, 2001, 11min). O “sonho”, aqui, surge como uma esperança comum aos sem-terra naquele momento, e que Tetê Moraes irá averiguar em que medida se tornou realidade para os companheiros de Rose que não morreram na luta.
Em seguida, iniciam-se as tomadas feitas especificamente para compor o segundo filme, as quais trazem os filhos dos personagens de Terra Para Rose, ainda na escola, assistindo ao documentário que acompanhou a história de luta de seus pais, para logo adiante mostrar um grande churrasco feito entre alguns destes personagens, momento de festa, fartura e distração aos agricultores da região da antiga fazenda Annoni, já loteada. Já nas entrevistas iniciais, que vêm logo à frente, feitas nestas circunstâncias, os trabalhadores rurais assentados contam o quanto foi vitoriosa luta pela terra e apresentam seus filhos, dedicando a eles todo o sofrimento que passaram para conseguir o lote de terra.
Além do churrasco, há partidas de futebol que parecem suceder o almoço, num tom de grande descontração despreocupação frente a qualquer tipo de constrangimento. Um dos assentados, José Piovesan, traz o primeiro relato entre os antigos sem-terras: “Isso aqui é um churrasco, pras família almoçar, que dez anos atrás agente não comia churrasco como nós come hoje.” (MORAES, 2001, 8 min). Seguido pelo João Fiorezzi, que também se mostra bastante satisfeito com a nova situação quando indagado por Tetê Moraes sobre sua vida após os dez anos e a posse da terra alcançada: “Há, tá as mil maravilha hoje né, tem quase tudo que agente precisa.” (MORAES, 2001, 9 min).
Esta é a apresentação inicial do filme, a qual instaura um clima ameno e otimista a ser integrado às circunstâncias seguintes. E embora a menção ao citado clima de otimismo esteja com mais força pelo ar bucólico do campo e o enquadramento bem trabalhado dos sem-terras  alimentando-se ou trabalhando no campo, podemos encontrar a noção de “sonho realizado” e de “felicidade” em outras passagens de forma mais direta.
Obviamente, há razões para o sentimento de felicidade e alegria dos novos assentados. Além da ausência de perspectivas de futuro para si e para os filhos, o cotidiano do acampamento, como os próprios informam, significava estar sujeito a doenças, à falta de assistência médica adequada, ao frio no inverno e, não raro, à fome, quando as doações da Igreja e de outras entidades e voluntários chegavam ao fim. No entanto, o que é importante observar aqui é a forma como o filme insiste numa tese de realização material e individual dos agricultores em detrimento de qualquer questão ou tema que não esteja fielmente integrado a suas prerrogativas. É mais urgente dar forma à tese do filme do que, em algumas circunstâncias, fazer com que a narrativa se aprofunde em questões obscuras e aparentemente contraditórias. Um exemplo claro disso são os números dados pelos próprios sem-terra a respeito das famílias que estão integradas às cooperativas e as que, por opção ou por outros motivos que não ficaram claros, estiveram ausentes na divisão coletiva do trabalho. Para além do número limitado de pessoas entrevistadas – o que é normal para um filme, pois existem razões práticas ou estéticas para não filmar a situação de cerca de 300 famílias que permaneceram assentadas na Annoni – a diferença no número de pessoas que conseguiram incluir-se em alguma forma de trabalho coletivo é bastante controversa: na Annoni, a cooperativa local COOPTAR começou com quarenta famílias, e até o momento do filme restavam apenas dezoito. As demais trezentas famílias trabalham através de uma agricultura familiar simples, sem divisão coletiva do trabalho, e, segundo o filme, alguns assentados associam-se pela troca informal de trabalho – sobre este tipo de cooperação, é dado apenas um exemplo.  Só a COANOL, voltada para a distribuição do leite produzido pelos agricultores, apresenta um número mais significativo, abrangendo quase seiscentas famílias de toda a região, entre antigos sem-terra e agricultores tradicionais. No entanto, a narração em over não deixa de apresentar a posição dos autores do filme frente às entrevistas apresentadas: “Na Annoni as coisas vão muito bem, obrigada. Cada um encontrou o seu modo de trabalhar: uns em coletivo, outros em família, tirando da terra tudo que ela pode dar.” (MORAES, 2001, 28min).
A questão das cooperativas ocupa uma parte significativa do filme e compreende um dos principais alvos da visão de felicidade exposta. O filme tem seu andamento e roteiro quase todo dedicado às experiências das cooperativas que foram implantadas durante a conquista das terras – a COOPTAR, COOPAGO, COANOL etc. Mesmo as entrevistas com os antigos sem terra, que tomam boa parte do tempo do filme, dedicam atenção ao andamento da produção nas propriedades, à forma como funcionam as cooperativas, ao modo como os agricultores estão a ela integrados, às estruturas e instituições ligadas à agricultura que foram criadas para dar apoio às famílias – escolas, institutos de pesquisa, empresas de processamento dos alimentos gerados e comercializados – e às razões econômicas pessoais que fizeram algumas famílias não participarem das cooperativas, que, segundo dizem os sem-terra, e não é rebatido pela narrativa, decorrem da liberdade e da escolha dos próprios agricultores, os quais por vezes entendem ser mais eficiente o regime de trabalho agricultura familiar fechado. Tendo entrevistado em todo o filme em torno de 10 famílias que de alguma forma se viam ligadas às cooperativas – na ocupação a Anonni havia 300 –, a narrativa do filme, através da voz over, termina por concluir pelo mais completo sucesso da nova vida dos agricultores: “Os que ficaram na Anonni conseguiram realizar os seus sonhos.” (MORAES, 2001, 38 min).
Outro ponto a ser analisado a este respeito são os aspectos da noção de felicidade colocados durante o filme. Em mais de um momento, o contexto de sucesso e bem-estar das famílias assentadas, a produção agrícola-familiar relativamente organizada, desloca-se para relatos de sucesso envolvendo aquisição de bens de consumo diversos, além de sonhos em adquirir produtos mais dispendiosos ou, por outro lado, utilizar os serviços de uma agência bancária.
Junto ao seu marido, o também ex-militante José Piovesan, Serli abre a sua casa para a equipe de filmagem, numa circunstância em que a câmera foca no aparelho de televisão e de som, apresentando ainda uma situação na qual o pai da família assiste a um programa infantil junto aos dois filhos. E com perspectivas de uma melhoria constante de vida, Cerli demonstra o seu interesse por adquirir um carro para a família, única coisa em sua opinião que ainda falta obter: “Agente sempre sonhava assim ó, em ter uma casa, ter conforto, né, ter um carro, né... hoje o que falta pra nós é o carro que ainda agente não tem, né, mas o conforto da casa nós temo. Esses conforto que fazem bem pra gente, né.” (MORAES, 2001, 55min). Após este depoimento, pela montagem, surge a tomada com os eletrodomésticos, numa menção clara aos itens e conforto de que fala Serli.  
O interesse pelo aspecto do consumo como índice de felicidade, no entanto, não percorre apenas o foco da câmera em objetos domésticos. Em uma das partes do filme em que se percebe claramente – e com o conhecimento dos autores – de que se trata de uma encenação, vemos uma cena onde Darci aparece com a sua família indo visitar, de carro, um comércio local, onde por sua vez encontram-se lojas de vestuário feminino, para as quais olha sua esposa com interesse, e também onde se situa uma agência bancária. Darci aparece entrando e, logo depois, saindo, para então dar o depoimento para a câmera que lhe espera logo à frente da agência, quando numa situação bem ilustrativa dá o depoimento de dentro de seu carro:

Nós, depois de conquistar a terra, começamos a conquistar esse reconhecimento da sociedade, e inclusive das agência bancária, quando somo recebido como um outro cidadão brasileiro, que antes agente nem numa agência bancária não entrava, porque não tinha o que fazer na agência bancária. (MORAES, 2001, 36min).

Não obstante, do mesmo modo como podemos observar no caso do número de integrantes das cooperativas, é importante identificar nas entrelinhas que percorrem a narrativa e o conjunto de cenas e sequencias do filme de que modo surgem registros com teor documental significativo que assumem a condição de contradições neste discurso, embora não venham a ser objeto de interesse investigativo. Exemplos disso são as declarações de Darci a respeito de seus “sonhos” e perspectivas de avançar na produção ou na relação que algumas destas cooperativas desenvolveram com multinacionais do ramo da alimentação. Ou seja, instituições que aprofundaram o  processo de mecanização e modernização do campo e são responsáveis por aumentar o número de sem-terras no país. (FERNANDES, 2000; MARTINS, 1981).  Seu discurso parece confundir a forma tradicional com que a terra deveria ser semeada com um momento de evolução da produção, voltada para uma forma industrial de cultivar a terra: “Primeiro erro que agente cometeu foi entrar na monocultura, grandes equipamentos de maquinário, e começamos a retomar outro tipo de agricultura, alternativa, agricultura diversificada. Agora estamos dando os primeiros passos na agro-indústria.” (MORAES, 2001, 17 min).  A declaração, no entanto, abre para uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, onde a âncora Sandra Annenberg comenta a “nova cara” do antigo foco de conflito de terra no sul do país: “A área de um dos maiores conflitos de terra do país mudou de cara: é a fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul. Dez anos depois, o agricultores assentados plantam de tudo, e acabaram de montar um frigorífico para industrializar e vender a produção.” (MORAES, 2001, 18min).  
Em outra passagem, quando o filme retrata as atividades de recolhimento e distribuição de leite realizados pela cooperativa COANOL, criada pelos agricultores, acompanha-se o momento em que o caminhão da empresa Parmalat visita a sede da cooperativa e algumas casas, mencionando como o leite produzido ali adota um processo avançado de industrialização para o consumo da população. (MORAES, 2000, 29min). Também nesta linha, surge, mais adiante, já versando sobre outro assunto, o depoimento de uma das assentadas, a Marluce. Ela comenta o acordo feito com a multinacional Sadia para a construção do aviário, no qual os agricultores entrariam com a mão-de-obra e com a estrutura enquanto a empresa entraria com as aves e a ração, ficando acertada uma cota de 20% da renda com a produção para os assentados.
Momentos como este não só estão presentes no filme como, até onde pudemos observar, fazem parte das questões possíveis de serem levantadas sobre a própria obra. Mas é interessante notar também como tais noções, na qualidade de contradições – como podemos observar a partir de um entendimento sobre o processo de modernização da agricultura promovido principalmente durante a ditadura militar no Brasil – acontecem no filme também como resultado do que podemos acompanhar a partir da imagem-câmera, a qual permite o acesso a um material bruto registrado que, mesmo não problematizado durante a narrativa, pode ser considerado como fonte documental. A tomada que traz o caminhão da Parmalat, como exemplo mais claro, está num contexto autoral onde a relação entre os agricultores e a multinacional é valorizada. No entanto, em se tratando de um filme documentário e, neste caso, de uma imagem feita no transcorrer de uma circunstância histórica, que era a do recolhimento do leite junto aos agricultores, o teor autoral ou, como é comum na teoria do cinema documentário, subjetivo, não afasta a possibilidade de estudar a imagem como o registro documental de um traço da realidade objetiva. A partir da objetividade aplicada à narrativa, compreendemos que aquela relação econômica existe, e mesmo que esteja colocada no filme como algo positivo, é possível considerarmos um traço documental que surge na obra, ao nosso entender na condição de uma contradição.
Deste modo, em alguns momentos, os elementos presentes na vida cotidiana dos assentados em O sonho de Rose denotam contradições no discurso dos trabalhadores e no seu comportamento que não chegam a ser problematizados pela narrativa. Dirigidas à obtenção de declarações bem características, mais próximas de um ideal de projeto agrário nacional na ótica governamental, as tomadas não se atém a possíveis relativizações ou reflexões a respeito do novo discurso dos ex-militantes, os quais já demonstram certa correspondência com uma lógica capitalista da produção. O personagem mais claramente entretido com a aplicação desta lógica à produção é o agricultor Darci. Além de ser aquele que já detém um carro e orgulha-se de poder utilizar os serviços de uma agência bancária, Darci crê que seu futuro e o da cooperativa da qual participa, a COOPTAR, sejam a inserção no ramo da agroindústria, com um nível mais alto e organização e obtenção de maquinário para aumentar os resultados da colheita.
Mais adiante, quando a outra assentada, Marluce, conversa com Tetê Moraes sobre uma divergência entre famílias da cooperativa que gerou inimizade, desconforto e, na opinião da outra parte interessada, prejuízos, ela conta quais benefícios tiveram as famílias que permaneceram juntas na cooperativa. Dentre recursos como caminhões, tratores e outras máquinas, ela destaca que o grupo já possui “capital” para investir na produção e, consequentemente, na melhoria de vida dos associados. “O que nós ganha nós investe, nós tem capital hoje”. (MORAES, 2001, 43min). Vemos, assim, como o discurso dos ex-militantes se altera com a nova condição de proprietários, ocupando-se de uma ideologia que estava mais presente em Terra Para Rose em personagens como o latifundiário Bolívar Annoni, dono da fazenda Annoni que foi desapropriada, que destacou o quanto aquela agitação provocada pelo movimento durante a ocupação poderia interromper os rumo da agroindústria nacional. Esta transformação, no entanto, não parece conquistar o interesse dos autores do filme, os quais preferiram seguir adiante com o adensamento da tese de que certo tipo de reforma agrária, naquelas circunstâncias, é um ideal para o Brasil conhecer e incentivar.
a)    O contexto de produção de um filme
Para compreender o contexto do filme lançamos mão de algumas infiormações contidas no DVD com os extras dos dois filmes, denominado “Da Terra Ao Sonho de Rose”, que são úteis na elucidação do que vínhamos observando durante a decupagem (MORAES, “data do DVD”. E pelo teor claro e objetivo com que esta as descreve, as duas situações de produção dos filmes sugeriram questões importantes para a compreensão destas representações. O contraste entre as obras no que diz respeito ao tempo que a equipe teve para fazer as filmagens, as pré-noções da diretora num e noutro momento, as condições efetivas com que o roteiro e a rotina de trabalhos foram desenvolvidos, etc., cada um destes processos contribui para o entendimento do documentário em si mesmo, bem como suscitam questões que foram aproveitadas em meios às atividades de decupagem.  
Na entrevista, ao fazer um apanhado geral da história dos dois filmes, Tetê Moraes discute os atributos mais importantes para a sua consecução. O primeiro deles é o caráter espontâneo e sem premeditação de Terra Para Rose em relação às circunstâncias pré-definidas em que se defrontaria na tomada cinematográfica em O Sonho de Rose, além das idéias a serem articuladas através da obra.

Numa situação completamente diferente do Terra Para Rose, porque tudo já estava muito bem preparado, a história já estava dada, e nós íamos então filmar uma história que nós já sabíamos qual era. É claro que também... surpresas acontecem, ao longo de qualquer filmagem  de documentário. Há novidades, há coisas que você abandona, há outras que você descobre e insere no filme [...]. Mas tudo que foi filmado eram realmente situações que ocorriam, e que nós tínhamos detectado todas ao longo do processo anterior de pesquisa. (MORAES, 2001, extras).

A própria permanência da equipe na localidade para a captação das situações foi reduzida. Enquanto as filmagens de Terra Para Rose duraram mais de seis meses, O Sonho de Rose foi rodado em duas semanas, resultando, em dois filmes com duração muito próxima: 95 min e 92 min, respectivamente. Isto obrigou Tetê Moraes a reconstituir através de encenações – representações ficcionais protagonizadas pelos próprios assentados – momentos em que os sem terra fariam compras, negociariam uns com os outros e realizariam eventos, situações importantes para a comprovação do sucesso das ocupações de latifúndios e que ela teria detectado nas pesquisas anteriores à filmagem.

No Terra Para Rose as situações... a história estava acontecendo na medida em que o filme estava sendo feito. O Sonho de Rose já eram situações dadas, mesmo que há descobertas de surpresas ao longo do processo de filmagem. O Terra Para Rose foi filmado ao longo de seis sete meses em várias viagens de filmagens. O Sonho de Rose foi inteiramente preparado, cuidadosamente preparado, pesquisado e planejado, e foi filmado em duas semanas. (MORAES, 2001, extras).

A tomada que capta circunstância de mundo histórica no seu transcorrer assumiu a condição de recurso específico do cinema documentário e, consequentemente, em instrumentos similares de comunicação ou expressão – como a reportagem no jornalismo – que o tiveram como referência. Nestas condições, a tomada corresponde ao recurso capaz de proporcionar uma imanência da imagem-câmera do documentário com presente da vida cotidiana, por valer-se das imagens e dos sons extraídos da própria circunstância de mundo ou de seus desdobramentos históricos como uma das matérias-primas fundamentais aos filmes do gênero. Assim, não só o transcorrer de um contexto histórico por si mesmo, mas também os impactos que sua existência prática produzidas sobre a vida cotidiana se tornaram fontes de consubstanciação das narrativas e das imagens documentais. Tomadas que trazem locações ou espaços físicos alterados ou que abrigaram fatos históricos, o fenômeno da entrevista, o qual representa os desdobramentos sobre a memória das pessoas, imagens de arquivo onde se identificam situações que fazem parte das conjunturas apresentadas, dentre outros recursos, dizem respeito a manifestações do presente histórico não encenado e real – no sentido de não imaginário ou previamente construído – que aos poucos foram se tornando instâncias de correspondência que permeavam a narrativa do documentário, dando forma às proposições, interpretações ou visões de mundo nele contidas.
Esta convergência traça historicamente a importância que o presente da vida cotidiana na realidade objetiva terá para a matriz expressiva do cinema documentário. Como os meios de expressão que caracterizam a narrativa estão situados no presente, sendo eles os diversos olhares e as imagens de objetos, pessoas e circunstâncias presentes nesta cotidianidade, a relação do artista com o transcorrer dos eventos que traduzem ou contém desdobramentos envolvendo o seu objeto (abstrato) de representação passarão a assumir não só a instância de fatores provocadores das abstrações sobre este objeto, mas sobretudo a condição de matéria-prima para a representação cinematográfica documental. Este objeto, à medida que venha ser pensado em quanto o possível foco de uma reflexão ou pensamento voltado para uma expressão estética, estará acontecendo para o artista, que precisará buscá-lo onde ele se manifesta. E para assumirem a condição de matéria-prima para o filme, deverão guardar, primeiramente, correspondência com o que será trabalhado no filme e, em segundo, assumirem a condição de evidências no seio da narrativa.
Neste sentido, algo que está presente na matriz expressiva do gênero e tem papel fundamental no teor documental que este tipo de filme pode apreender está ausente em muitas tomadas e planos de O Sonho de Rose, deixando as asserções sobre o contexto de vida dos assentados sem base documental. O conjunto de imagens que trazem os sem-terra encenando situações imaginárias, as entrevistas que valorizam declarações sobre a felicidade gerada pelas possibilidades econômicas de consumo de bens duráveis, as festas e churrascos de famílias de localidades próximas, etc., trazem pouca correspondência com a própria formatação bastante direta e generalista do filme: apresentar ao Brasil, um Brasil que “dá certo”. A obra, no seu todo, não nos apresenta prerrogativas que alcancem os juízos do discurso otimista que permeia a narrativa. Todas as contradições que envolvem a existência da cooperativa como célula de uma empresa nos moldes da lógica capitalista, a busca dos camponeses assentados pela acumulação de capital, o aumento do poder de consumo como indicador social de felicidade, dentre outras questões controversas nos discursos e no comportamento dos sem-terra, estão imersos numa obra que praticamente só abre espaço para o ufanismo de um projeto político de implantação de reforma agrária e de uma nova sociedade em formação, repleto de contradições e que ainda precisaria ser exaustivamente discutido, como é o que diz respeito ao MST. O filme, contudo, não nos abe esta porta senão pela via da crítica ao próprio filme.
Os recursos documentais, por sua vez, remetidos a um presente de conteúdo reduzido e com pouco teor de espontaneidade, compõem uma narrativa evasiva, que atinge superficialmente as formas de vida dos assentados. A partir principalmente das entrevistas e de imagens de campo, as questões migram entre o que as pessoas já adquiriram em termos de objetos domésticos – como televisão, fornos ou outros eletrodomésticos – e nas perspectivas de novos produtos – como carros e máquinas agrícolas – ou nas formas de cultivo da terra empregadas – se com máquinas ou não, se com ajuda de outros assentados ou sozinhos. Sem, por outro lado, aprofundar-se sobre as possíveis transformações sobre os laços de sociabilidade entre os sem-terra, sobre as repercussões do cultivo individual ou coletivo das propriedades, ou ainda em relação às novas perspectivas de manutenção do projeto de intervenção e transformação da sociedade, proposto pelos personagens ainda na condição de militantes do movimento. O enredo, seguindo num outro caminho, dedica-se a aferir os indícios do sucesso e da felicidade dos assentados, e isso baseando-se, por exemplo, no modo pelo qual a produção agrícola se moderniza e alcança os padrões mínimos exigidos pela lógica capitalista no campo, ou pelo mercado de distribuição de artigos submetidos a ela.  
Deste modo, se a matéria-prima para a construção da narrativa no cinema se deu com a vida cotidiana assumindo um papel fundamental, as características de assumir uma matriz não-ficcional, apontar para o mundo histórico e dotar-se do critério de objetividade para a vinculação de informações sobre este mundo histórico tornaram o presente da vida cotidiana e as possibilidades sonoro-imagéticas que dele derivam a referência fundamental de uma estrutura narrativa que, ao longo do século XX, o assumiu como norte de sua especificidade e seu potencial expressivo. O presente é uma dimensão da vida que está contida no processo de construção da representação no documentário a partir da própria base cultural de procedimentos estéticos que norteiam a expressão como possibilidades significativas da produção de documentários.
Ao tomarmos estes aspectos para o entendimento sobre como a representação de O Sonho de Rose se apresenta e, neste caso, sobre como se deu a sua idealização ou processo de produção artística, veremos como esta se volta para este presente a partir de meios demasiadamente pré-estabelecidos. Estão ausentes, como pudemos observar, o interesse por alterações nos laços de sociabilidade entre os ex-sem-terras, já na condição de assentados, por transformações no discurso e nas formas de interpretar a produção agrícola, o mundo a sociedade, o direito (subjetivo) à terra, a política, etc. Certamente, uma tese permeia o filme, e Terra Para Rose traz a mesma característica, mas aqui já ocorre uma tese unilateral, pouco invasiva sob o modo de vida dos atores sociais que protagonizam a história retratada. E que, pelas contradições possíveis de ser observadas em depoimentos, situações e imagens-de-campo utilizadas na representação deste modo de vida, deixam em aberto outras interpretações, principalmente no que tange à relativização da aparência de bem-estar dos agricultores, da integração entre estes na condição de proprietários de terra e, por fim, do próprio discurso político engajado que atravessa e num certo sentido dá forma à narrativa do filme.

REFERÊNCIAS:

Referências Bibliográficas:
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão. (Org.). A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem-intensa. In:______. Teoria contemporânea do cinema: documentário e narratividade ficcional. São Paulo: SENAC, 2005. cap. 1 p. 159-226.
______. Mas afinal...o que é mesmo o documentário? São Paulo: SENAC, 2008.
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (Org.). Documentário no Brasil: tradição e Transformação. São Paulo: Summus, 2004.

Referências Audiovisuais:
O SONHO DE Rose. Direção: Tetê Moraes. Produção: Vem Ver Brasil. Roteiro: Paulo Halm e Tetê Vasconcellos. Intérpretes: Darci, Ana e outros. [Rio de Janeiro: Riofilme], 2001. 1 DVD (92 min).
TERRA PARA Rose. Direção: Tetê Moraes. Produção: Vem Ver Brasil. Roteiro: José Joffily e Tetê Moraes. Intérpretes: Rose, Arnildo Fritzen e outros. [Rio de Janeiro: Riofilme],1987. 1 DVD (95min).