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A Metamorfose do Corpo Pt. 2: Joaquim

Por João Nobrega

Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, desestabiliza o mito Tiradentes ao expor, de maneira crua, a metamorfose que transformou o homem em História.

Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, é uma coprodução luso-brasileira que revista o mito Joaquim José da Silva Xavier, ou o Tiradentes. Mas mais do que revisitar o mito, o filme busca desconstruí-lo, retirá-lo da narrativa oficial, para apresentar Joaquim em sua face mais crua e bruta, e, por isso mesmo, mais provável. Fora da narrativa oficial e dos calendários, quem teria sido esse homem? E mais, de que maneira suas contradições internas, e as contradições de seu tempo ecoam hoje? Estas parecem ser questões centrais do filme.

De maneira geral, o filme nos introduz a um Joaquim (Júlio Machado) ainda distante de tornar-se mártir: servindo como alferes, trabalhando para o governo enquanto fiscal do contrabando de ouro, e também exercendo a profissão que lhe renderia seu nome mitológico, a de dentista. Em paralelo, Joaquim se envolve com Preta (Isabél Zuaa), uma escrava local que, desacreditada do amor do futuro mártir, foge dos abusos de seu dono. Obcecado por reencontrar Preta, e designado por seus superiores para buscar ouro em terras ainda inexploradas, Joaquim alimenta esperanças de ficar rico, comprar Preta, e juntar-se a ela novamente. Neste caminho, vemos que sendas levaram Joaquim a tornar-se Tiradentes.

O cinema de Marcelo Gomes, talvez não só respondendo a uma tendência atual, mas também a uma tradição forte do cinema brasileiro, surge como um cinema da deambulação. Assim também ocorre em Joaquim que, apesar de toda a reconstituição histórica e de todo o tom de relato histórico, é, em grande medida, um estudo sobre os corpos no espaço, e sobre as alterações desses corpos no decorrer do tempo: o cabelo piolhento de Joaquim, a degradação psicológica do protagonista durante a expedição, o corpo sem vida do escravo negro na estrada, a fusão de danças e cantos empreendida pelo do índio (Karay Rya Pua) e pelo escravo João (Welket Bungué), etc. O que vale é o caminho e o que ele revela por detrás do mito, e por detrás de nossa nação.

O final da narrativa está dado pelos relatos oficiais. Aliás, é isso que o início, à moda de Brás Cubas, vem nos lembrar: Tiradentes, já morto, com o olhar privilegiado dos espíritos, versa sobre sua condição mitológica, e sobre a insustentabilidade dessa condição. Sem os floreios e sem a formalização cínica e polida do convite, tão típicas de Brás Cubas, somos postumamente convidados a ver as contradições e os caminhos de Joaquim.

Nesse sentido, Joaquim possui notáveis ponto de contato com O Ornitólogo (2017), do português João Pedro Rodrigues. É bem verdade que estamos diante de projetos estéticos bastante distintos. O contra-relato histórico de Marcelo Gomes em muito se afasta do simbolismo teológico e autoirônico do cineasta português. Mas a questão é que ambos os cineastas investem num cinema da deambulação, destacando a alteração e a metamorfose dos corpos (embora nesse sentido JPR pode se permitir muito mais experimentações do que o diretor de Joaquim), para se voltar às História de seus respectivos países. Países que se encontram, que se confrontam e que se confundem ao longo da História.

Em O Ornitólogo, o resgate da figura histórica do colono serve de base para uma autorreflexão do cineasta, uma autodesconstrução do cinema enquanto linguagem; em Joaquim, a própria figura histórica é objeto de desconstrução. O fato é que em ambos há uma desestabilização de eus erráticos.

Mas não só Tiradentes é desestabilizado em Joaquim, uma certa concepção de Brasil também é fortemente desestabilizada. E novamente o corpo se coloca como um elemento essencial: as peles marcadas, os cabelos sujos, as barbas por fazer, os dentes malcuidados, a poeira das roupas, tudo está no sentido de ressaltar a precariedade das condições higiênicas/médicas de então. Essa crueza, aqui absolutamente essencial, transporta-se também para o âmbito da linguagem, através da câmera na mão e do faux raccord, isto é, através de cortes bruscos que descontinuam a ação, o que também transmite a sensação de fluxo de consciência, como se estivéssemos mergulhados nas memórias do morto, cuja imagem mais acabada é a da cabeça decapitada e exposta em praça pública.

Além disso, há uma urgência em recolocar as matrizes africana e indígena de nossa cultural, como partes ativas da História. Muito embora Joaquim seja o protagonista, a personagem mais forte, mais incisiva, é Preta. É ela, afinal, que orienta, ainda que a distância, toda a ação do protagonista. Também há a já citada cena em que o escravo João canta e dança com o índio, revelando espécie de solidariedade entre as partes oprimidas. Estamos, portanto, diante de uma revisão histórica altamente política, trata-se de uma urgência muito presente de voltar-se ao passado.

É verdade, porém, que tal urgência acaba, ao final, por soar um tanto incompleta. A virada de Tiradentes rumo ao ideal revolucionário soa um tanto repentina. Claro, suas frustrações pessoais são boa parte desse combustível, mas, ainda que conheçamos o desfecho da História, seria preciso debruçar-se um pouco mais sobre a metamorfose final deste homem que também é sobressaltado por uma urgência, por uma vontade de agir, não importando que suas ações serão fracassadas, nem ao menos que ele será cinicamente transformado em mártir mais por conveniência do que por respeito a sua trajetória. A urgência de Joaquim, ainda que tenha sido espremida no ato final, ou talvez por isso mesmo, não deixa de ecoar hoje.

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários