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Aparato e Personagem em “Lembro Mais dos Corvos”

Entre realidade e ficção, o filme de Gustavo Vinagre ganha força ao escolher ser um filme de personagem.

 Mil e poucos reais, uma câmera qualquer e uma personagem cativante. Essa foi a receita usada por Gustavo Vinagre para realizar em uma noite o seu filme “Lembro Mais dos Corvos”, documentário sobre a cineasta Julia Katharine.

Julia é uma personagem extremamente carismática que parece muito à vontade com Gustavo. Seja ao contar dos abusos que sofreu de um tio avô na infância, que já naquela época a tratava como uma menina (Julia é uma mulher trans), ou sobre os filmes que gosta de ver. Sobre como, segundo ela: Hollywood fudeu sua cabeça e a tornou uma romântica incurável, e por aí vai.

No ambiente que à primeira vista identificamos como sendo sua casa, Julia conta detalhes de sua vida do seu jeito leve e alegre, mesmo quando os assuntos são os mais delicados possível. Ela começa sua história com o abuso e a relação muito controversa que manteve com seu tio-avô quando tinha 8 anos de idade. Essas reflexões não partem de um vitimismo e ela trata do tema em toda a sua complexidade, dizendo que, apesar de tudo, foi aquele homem que a viu pela primeira vez como ela é.

A complexidade do assunto e a recusa de Julia em determinar papéis rígidos aos envolvidos coloca mil questões ao espectador:

- Teria o abuso a definido ou feito apenas com que se descobrisse?

- Poderia o nosso maior trauma ser também a nossa maior descoberta?

Com essa confissão, passamos a seguir as pistas da vida de Julia como se ela nos guiasse pelos labirintos da sua personalidade. É então que Julia tira o kimono que estava vestindo e dizia ter sido caríssimo para, no momento seguinte, como em uma cena de bastidores, perguntar ao diretor quanto custou a peça. A partir daí passamos a questionar tudo o que vimos e estabelece-se uma especulação - não tão original - sobre o que é realidade e ficção no cinema.

Julia dança pelo quadro, anda de um lado para o outro, finge tomar vinho, conta das trapalhadas de sua vida como uma amiga contaria no bar, com os devidos exageros alcoólicos (aceitos como parte de uma licença poética). Ela também interage com Gustavo, mas, quando o diretor interage de volta, algo em sua dicção e na maneira como sua voz foi gravada soa falso; ele não é natural como ela e por mais que colocar a voz do diretor em cena traga a ideia de quebra do dispositivo escondido, sua maneira de falar é tão contida e distante que parece torná-lo ainda mais afastado da personagem. Além disso, sua voz parece ter sido adicionada em pós-produção, o que torna a sensação de afastamento e falsidade ainda maior.

Esse é um filme de personagem e foi planejado para isso. Nenhuma fotografia extravagante, nenhuma montagem ou continuidade planejadas, apenas uma sala e uma mulher com uma história.Ficamos, ao fim, sem saber o quanto dessa história é real, e talvez esse seja o maior mérito do filme, junto à hipnotizante personalidade de Julia e à oportunidade de dar o protagonismo da obra a uma mulher trans. O problema reside então na manipulação do dispositivo feita pelo diretor.

Apesar de conseguir nos confundir com algumas artimanhas (não muito criativas) sobre o que é real ou não, a falta de planejamento ou de domínio sobre as funções técnicas da obra ficam claras e parecem ser fruto mais da rapidez da produção do que de uma escolha estética. Ainda que seja possível argumentar que uma pode advir da outra e que a urgência do filme é admirável, não há uma nova proposta estética ali, e sim, no máximo, uma apropriação de uma lógica de produção de quantidade que assume traços sujos de vídeo de Youtube para seguir adiante em seu ritmo desenfreado.

Não que uma escolha como essa não seja válida. Mas cabe refletir se só isso basta para a construção de novas formas de linguagem e de um novo cinema que dialogue com outras mídias.

 

Julia Gimenes é  formada em cinema e trabalha como montadora e fotógrafa desde então.