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O Clímax Letárgico de Gaspar Noé

Por Enrico Alchimim

Em Clímax (2018), Gaspar Noé ressurge com todas as suas vertiginosas obsessões

É evidente que Gaspar Noé busca incorporar o status de grande cineasta transgressor das últimas décadas, tentando se aproximar de outros grandes nomes de um cinema revolucionário, em especial Pier Paolo Pasolini. Tal persona lhe foi (auto) atribuída pelas suas famosas imagens alucinantes de sexo e consumo de drogas, muitas delas elevadas ao ápice da escatologia, apresentando um mundo essencialmente caótico, através de um muito elogiado domínio técnico.

Não importa o que seja dito de Noé, todos os chavões utilizados para descrever seu cinema perdem cada vez mais credibilidade conforme o diretor se aproxima mais do status de uma marca ― ou um meme ― do que de um cineasta realmente transgressor. Noé lança mão de muitas armadilhas para que seus espectadores caiam em seu papo furado e Clímax (2018) não é diferente.

Um grupo de dançarinos decide comemorar o fim de um ensaio, mas a sangria que beberam estava batizada com LSD. Os dançarinos enlouquecem e tudo lentamente se transforma num verdadeiro inferno.

Aqui a grande armadilha é justamente a cena em que o grupo está ensaiando, a primeira dança, que dura por volta de 6 minutos ― logo voltaremos a ela. Antes, temos o plano, visto de cima, de uma mulher sangrando na neve e a introdução de todos os personagens, dançarinos das mais diversas nacionalidades e origens, através de entrevistas que passam numa na tevê rodeada por DVDs ― entre eles, Salò (1976), de Pasolini. Até aí tudo vai bem, ele nos mostra alguns dos motivos do filme: agonia dos corpos, arte como experiência transcendental (caótica) e até a câmera espectral que flutua sobre e em meio ao nosso mundo desgraçado.

Enfim entra a tal cena. Plano sequência acompanhando os personagens dançando vogue. Imagem que basta pela sua fluidez gráfica, pela força dos movimentos internos, algo realmente interessante, mas que opera para induzir seus espectadores a comprarem a ideia de que o que estão prestes a ver é a mais nova transgressão das fábricas Noé, quando, na verdade, é a repetição exaustiva de movimentos de câmera, gritos das atrizes, bestialização dos dançarinos, luzes e putaria leve.

Todo corpo será violentado e levado ao extremo, nada escapará desse sadismo injustificado. Se um dançarino quebra lentamente seus próprios ossos ou uma grávida leva pontapés na barriga, não é senão para alimentar o ego de um diretor cuja arte ele acredita ser transgressora, mas que não passa de tortura pop comercializável. A câmera não nos poupa de nenhuma catástrofe que acontece dentro daquele galpão, ela está presente em todo momento que algo pior acontece. Me parece que sua obsessão não é pela violência, o que permitiria possibilidades de estilização de menos mau gosto, mas sim por mostrá-la através de um plano sequência que encarna a figura do espectro ― a leveza de uma câmera flutuante a serviço da violência vazia. Se Bazin via no plano sequência a capacidade de obtenção de um simples momento de verdade, a captura do real, Noé se esforça por uma imagem realista, mas que falha em ser minimamente verdadeira, que usa o plano sequência como cortina de fumaça para que sua fixação vazia por sexo e violência possa se expressar.

O espectro que ronda o filme é brocha e, ao contrário do que o Noé parece achar aqui, o cinema não passa por uma revolução a cada corte ou sequência do filme, que deseja a todo momento induzir quem vê à mais asquerosa letargia, justamente o oposto de um cinema minimamente preocupado com o poder das próprias imagens, como Salò, sua grande referência. Pasolini faz um cinema que vê na exploração do corpo a possibilidade de um impulso político. Se em Salò temos a nostalgia da vida, um movimento de eterna resistência, em Noé há o esvaziamento de qualquer traço vital, o choque cool, o corpo despolitizado. Mesmo o sensorialismo do sexo e da violência, a tensão da carne são tão ou mais insossos que os de filmes universitários. Ainda há de surgir algo tão especial e grandioso como Salò, mas Noé não é Pasolini, graças a deus.