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Como se dança um baião

 

Em O homem que engarrafava nuvens, para além da narração dessa relação e suas consequências – o resgate histórico da explosão do baião e um apanhado romântico da biografia dos envolvidos -, o diretor Lírio Ferreira explora um vasto território a partir da vida do quase desconhecido Humberto Teixeira...


O cantor Belchior declarou: “No nordeste, ou você descia pra São Paulo, ou subia pra São Pedro”. Nos anos 40, o pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989) e o cearense Humberto Teixeira (1915-1979) desceram - não exatamente para São Paulo, mas para a efervescente cidade maravilhosa, então capital do Brasil –, se conheceram e mudaram os rumos da música popular brasileira. Em O homem que engarrafava nuvens, para além da narração dessa relação e suas consequências – o resgate histórico da explosão do baião e um apanhado romântico da biografia dos envolvidos -, o diretor Lírio Ferreira explora um vasto território a partir da vida do quase desconhecido Humberto Teixeira, expandindo-se para o universo musical do baião, até a descoberta de suas diversas facetas mais pessoais por meio da busca de sua filha Denise Dummont.

Os sedutores travellings e a fotografia iluminada de Walter Carvalho, uma mulher saindo de um abacaxi numa chanchada da extinta Atlântida, a incessante e deliciosa presença de canções que alimentam o imaginário do brasileiro: é quase irresistível falar de O homem que engarrafava nuvens em primeira pessoa. Após uma sequência inicial sóbria e desconfiada, que passeia por um cemitério vigiado por inúmeros santos de pedra, sob o depoimento pessoal de Denise – também idealizadora do documentário juntamente com Ana Jobim, viúva de Tom –, é quase impossível prever a arrebatadora hora e meia que está por vir. Ali mesmo, à beira do túmulo de Humberto Teixeira, Denise descortina a jornada que vai se iniciar pela busca do pai – o qual a criou e, mesmo assim, era uma incógnita para ela -, que foi responsável, em parceria com Luiz Gonzaga (intérprete das criações da dupla, ganhando quase toda a notoriedade pelo trabalho), por músicas como Adeus Maria Fulô e Asa Branca (tarefa obrigatória nas aulas de português do primário ou na iniciação musical) e pela irradiação do nordestino baião no país do carnaval (e até no cenário internacional).

A partir daí, uma colagem de imagens de arquivo mescladas a registros contemporâneos e a inúmeros depoimentos (de pessoas ilustres, desconhecidas, do mundo da música, pesquisadores...) desfilam na tela sob a voz off de Humberto Teixeira e sob uma trilha sonora que é capaz de esboçar sorrisos em qualquer integrante da plateia. A distância temporal entre os dias de hoje e a época que o filme retrata não afasta de maneira nenhuma o espectador, tal o poder que as músicas envolvidas nesse universo suscitam. É uma sensação de pertencimento que torna difícil escrever sobre O homem que engarrafava nuvens de maneira impessoal, quando são quase proibidos arroubos passionais – e é paixão que o filme suscita.

A paixão está em imagens míticas como a de Luiz Gonzaga, vestindo trajes típicos nordestinos, cantando e dançando “Eu vou mostrar pra vocês/Como se dança um baião/E quem quiser aprender/É favor prestar atenção”; no depoimento do jornalista Tárik de Souza sobre quando o americano Mr. Evans, diretor da gravadora RCA, quis conhecer o homem que ocupava todas as prensas e, ao ver Gonzaga, negro, falou com ele com um lenço na boca para evitar os perdigotos; em Sivuca, que sente a sanfona fazer parte de seu corpo ao abraçá-la; no vídeo de Raul Seixas, que dizia ser filho de Elvis Presley com Luiz Gonzaga e toca um rock’n’roll com a letra de Asa branca para uma Marília Gabriela de avolumados cabelos anos 80; ou de um plano geral que se aproxima lentamente de Maria Bethânia, braços abertos, cantando também Asa branca. Lírio Ferreira (co-diretor de Baile Perfumado – 1997, e diretor de Árido Movie – 2006)não se afastou da paixão que já havia imprimido em seu filme anterior, Cartola, Música para os olhos (2006), outro documentário musical: durante o desenrolar da trajetória de Cartola, que também se alonga ao mundo do samba, é impossível não se enamorar pela cena em que o sambista canta para o pai O mundo é um moinho.

Há ainda a cultura nordestina inerente ao baião – suas festas populares, a feira, as figuras romanescas. O ritmo já era antigo no folclore do polígono da seca quando Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga o levaram para a cidade grande, transformando-o em uma voga avassaladora entre as décadas de 40 e 50, pós-samba e pré-bossa nova. Percorrendo os caminhos de Teixeira e do baião, auge e decadência, o filme chega aos palcos de Nova Iorque, rodeando em contra plongée os prédios enormes da Big Apple até deparar-se com uma japonesa, vestido rodado e sem mangas, cantando a já conhecida batida nordestina, seguida por imagens do entusiasta da música popular brasileira David Byrne, que acaba cantando, com um chapéu de couro típico dos nordestinos, a ilustre Asa branca em inglês.

Por entre toda essa exaltação, há ainda as andanças de Denise, que trazem o Humberto Teixeira que vai além do compositor, do escritor, do advogado, do político, do criador da lei dos direitos autorais. Em sua procura pessoal, Denise revela o machista apaixonado pelas mulheres de olhos verdes, e encara com delicadeza a mãe, Margarida Jatobá (que faleceu antes de o filme ser finalizado), que faz declarações de extrema franqueza com os olhos marejados.

As imagens do show Doutor do Baião – que era como o Rei do Baião Luiz Gonzaga costumava chamar Humberto -, gravado em 2002, traz inúmeros músicos em luxuosas interpretações de autoria de Humberto Teixeira, completando a energia que a música traz ao atravessar todo o filme. Reunindo desde o som explosivo do Cordel do Fogo Encantado até a sensualidade de Elba Ramalho, passando pela espontaneidade de Gilberto Gil, entre muitas outras figuras recorrentes no panorama da música popular brasileira, este show foi o responsável pelo pontapé inicial que daria origem ao filme – o qual também teve uma de suas matrizes na fascinação de Denise pelo documentário Buena Vista Social Club (Wim Wenders, 1999), que delineia a trajetória do grupo cubano.

Aliás, dali de Cuba, descendo de novo no mapa, chega-se à Jamaica, onde, nos anos 60 (conta a lenda e o cantor Lirinha, um dos participantes do filme) aportou um disco da dupla nordestina – e fez até Bob Marley, que criaria o reggae, investigar como se dança um baião.

 

O homem que engarrafava nuvens

Brasil, 106 minutos, 2009

Direção e Roteiro: Lírio Ferreira

Direção de fotografia: Walter Carvalho

Produção: Denise Dummont, Iafa Britz, Good Ju-Ju

Montagem: Mair Tavares, Daniel Garcia

Direção Musical: Guto Graça Mello

Produção Musical: Vinícius França

 

(Publicado originalmente na Juliette Revista de Cinema 011, de setembro/2009)

* Natalia Barrenha é jornalista e pesquisadora. Colaboradora da Juliette Revista de Cinema e Brasileiros, entre outras. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp.