As Contradições de Divino Amor

Por Leo Passeti

Divino Amor (2019), de Gabriel Mascaro cria uma distopia mais preocupada em confirmar suas próprias crenças sobre o presente do que em lançar perguntas sobre o futuro.

Como estabelecido nos cânones da ficção científica Divino Amor, (2019) de Gabriel Mascaro, procura lançar-nos no futuro para ressaltar seus medos nos dias de hoje. Através deste salto temporal o artista torna-se capaz de exagerar determinadas características amedrontadoras de seu mundo contemporâneo como um meio de criticá-lo, tornando-as mais visíveis aos olhos do espectador. Entretanto, Mascaro não nos propõe o futuro dos carros voadores, da urbanização descontrolada, ou da inteligência artificial. Não são as grandes corporações a grande força deste futuro, no Brasil de 2027 é a fé que toma as rédeas, espalhando-se por todas as esferas da burocracia e do mercado brasileiro. O cineasta constrói um mundo particularmente interessante, contudo, subaproveitado, usado como uma grande gag, que constantemente busca nos convencer de seu mérito artístico.

A história da burocrata religiosa Joana, entretanto, possui diversos pontos interessantes: trata-se de uma funcionária estatal em um departamento, responsável por registrar e dar andamento nos processos de divórcio, que dissuade casais da separação e tenta convertê-los a fiéis da igreja Divino Amor. O melhor e mais importante ponto da trama são as tentativas fracassadas de Joana, junto a seu marido, de ter um filho, no qual Mascaro nos mostra seu ponto de visa, que não poderia ser mais pessimista, sobre a ascenção da fé evangélica no Brasil. Nesses momentos vislumbramos um país obcecado pela fertilidade, que surge como uma promessa de completude, virilidade, e proximidade ao divino. O filho vindouro é fetichizado, transformando-se, assim como a religião, em um produto consumível. Não demora para que o filme assuma um caminho verborrágico quando Joana descobre só poder contar consigo e, perdida em meio às contradições desse mundo, deixando o envolvimento dramático de lado, e indo por caminhos cada vez mais óbvios.

A mercantilização da fé está presente primorosamente na estética do filme, no contraste estabelecido entre os ambientes burocráticos e urbanos, cinza e brutalistas, e os religiosos, extremamente coloridos através do neon e de uma certa “estética do brega”. Desse modo, ao espaço religioso é conferida uma artificialidade nauseante, servindo como exemplo metonímico para a transformação da religião em produto, como que tentando exageradamente legitimar o próprio misticismo. Vide as cenas em que Joana reza na beira de uma piscina com uma enfadonha pintura de paisagem no fundo, simulando os rios, tão presentes nos rituais bíblicos. A isto, ainda, agrega-se o erotismo latente à igreja do Divino Amor, pelo qual Gabriel Mascaro contrapõe a purificação dos corpos à agressividade da carne, mostrando em primeiro momento um casal nu sendo benzido, e só depois dando continuidade à ação que, logo vemos, assume um tom absolutamente sexual. Através destes atributos o cineasta busca questionar o que define essa suposta crença com ironia, mas, ainda no que tange à forma, o filme cai em suas próprias armadilhas.

Preocupado demais com a construção de uma iconografia o filme parece esquecer de fazer algo com as contradições que ressalta, meramente apontando-as ao espectador através do sofrimento de Joana, ao ser confrontada pelas próprias verdades hipócritas. A partir daí as situações parecem repetir-se, tornando o filme monotônico ao não acrescentar nada verdadeiramente novo, indo cada vez mais de encontro a obviedades no que tange à laicidade do Estado e as hipocrisias da crença. O ápice disso se dá quando diversos momentos do filme assumem tom cômico, como ao após mostrar-nos um estabelecimento que recebe uma fila de carros esperando para receber uma oração de um pastor o diretor insiste em abrir o plano na segunda vez que o local aparece, revelando a placa “Drive-Thru da Oração”. Tratam-se de momentos que tiram o filme do seu foco, dão-lhe um ar pueril, como uma grande esquete repetitiva.

Divino Amor tenta estabelecer-se como uma parábola, buscando uma aproximação direta com as histórias bíblicas, repleto de conceitos estéticos e ideias interessantes, e algumas verdadeiramente instigantes. Contudo cai na tentação de satirizar demais seu próprio objeto, conformando-se em apontar para as iminentes contradições do discurso religioso misturado à política, sem fazer disso uma reflexão verdadeira. Não é estranho que muitos espectadores saiam do filme satisfeitos, simplesmente por este ter confirmado seus pensamentos, e por isso faltam-lhe lacunas para que o espectador as complete subjetivamente, trazendo assim mais riqueza para seu discurso, quando o que acontece é uma certa remoção da ambiguidade e, por consequência, uma simplificação da realidade. O filme de Gabriel Mascaro, assim, está mais concentrado em dar-nos respostas do que em nos fazer perguntas, perdendo-se em seus próprios delírios de grandeza.