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Análise de "O Favelado" e o Impacto de "Cinco Vezes Favela"

Uma análise do filme "Cinco Vezes Favela", com foco especial em "Um Favelado", e como mudaram o modo de se fazer e pensar cinema no Brasil e abriram caminho para a estabilização do Cinema Novo Brasileiro

Texto por: Eduardo Vietri

 

O filme “Cinco Vezes Favela” de 1962 foi um dos percussores do movimento artístico cinematográfico conhecido como Cinema Novo. O surgimento desse movimento se relaciona diretamente ao momento histórico brasileiro do período que se permeava em um otimismo revolucionário por parte dos grupos de esquerda que acreditavam em uma revolução social no Brasil e na sua tão sonhada independência das amarras do imperialismo, tal como ocorrido em Cuba e na independência de diversas nações africanas. Em acordo com essa esperança social percebeu-se a necessidade de uma arte que fosse revolucionária também, que representa-se e dialoga-se com o povo a fim de conscientizá-lo e é nesse cenário que surge “Cinco Vezes Favela”, um projeto desenvolvido com patrocínio do CPC (Centro Popular de Cultura) e da UNE (União Nacional dos Estudantes).

O filme é composto por cinco episódios, cada um dirigido por um jovem cineasta e que buscava retratar esse homem brasileiro, morador da favela e as dificuldades que ele passa. O primeiro episódio é “Um Favelado” dirigido por Marcos Farias. A trama do curta consiste em um favelado, interpretado por Flávio Migliaccio, que corre o risco de ser despejado de seu barraco caso não pague e, desesperado, recorre a uma tentativa de golpe malsucedida em que sofre um destino trágico. O curta tem um papel de indignação e revolta em seu espectador. Ao mostrar uma situação desesperada do personagem em uma história simples e real, o diretor pretende criar uma identificação do público para com o personagem na esperança de criar consciência política e de movimento revolucionário naquele que está assistindo. O objetivo de “Um Favelado” assim como todo o filme “Cinco Vezes Favela” é criar uma arte estritamente brasileira e de caráter revolucionário por meio da retratação desse homem tipicamente brasileiro.

As escolhas estéticas de Marcos Farias na direção de “Um Favelado” revelam mais profundamente a intenção do filme. A inspiração no cinema neorrealista italiano é evidente, seja na escolha por personagens marginalizados com dramas reais e cotidianos, seja na escolha de filmagens externas onde o espaço urbano é um personagem importante. A favela é um personagem de todos os cinco episódios do filme e, em “Um Favelado” é o espaço que determina o conflito da história: O personagem de Flávio Migliaccio precisa arrumar dinheiro ou será despejado. Ou seja, o espaço além de personagem é também motor do conflito. A utilização de planos abertos e o fato de o filme ter sido de fato gravado em uma favela ilustram essa busca pela veracidade e imersão no ambiente discutido. Outro fator recorrente no cinema neorrealista italiano que pode ser observado em “Um Favelado” é o tom documentarista do filme. Pela gravação externa e a utilização de não-atores em diversos momentos cria-se uma visão documentarista que pode (e deve) ser usada como material de estudo. As cenas onde crianças buscam sobras no lixo cercado por aves é um exemplo desse caráter documental. A cena apresenta uma força descomunal e sabe-se que embora inserida dentro de uma ficção a cena não poderia ser mais real dentro do Brasil. O neorrealismo italiano buscava mostrar o homem comum e marginalizado italiano em uma Itália decadente e arrasada no pós-guerra e o cinema novo brasileiro buscava esse homem marginalizado brasileiro em um país marcado pela desigualdade nessa eterna guerra do mundo capitalista.

Dentro do neorrealismo italiano um filme em especial se assemelha mais a “Um Favelado”: Trata-se de “Ladrões de Bicicleta” de 1948 e dirigido por Vittorio de Sica. Os dois filmes tratam de um homem desesperado e em busca de dinheiro para manter a sua família que acabam sofrendo um destino trágico. Enquanto no filme de De Sica o personagem principal tem sua bicicleta roubada (seu meio de sobrevivência) no filme de Farias o personagem principal está em vias de ser despejado. Os dois personagens buscam pela cidade uma forma de conseguirem sobreviver e no fim acabam tomando uma decisão pautada no desespero que os punirá. Claro que os filmes possuem inúmeras diferenças e particularidades, mas a essência é a mesma: A dificuldade e a marginalização dessa população que é submetida a atos pela própria sociedade que a pune. Como papel de crítica os dois filmes discutem e criticam o desaparecimento do Estado para essas pessoas e o sistema opressor capitalista que rege a sociedade.

O final do filme é devastador. Após o golpe o personagem principal é traído e deixado para trás pelos seus parceiros. O povo revoltado o agride antes que esse seja preso. Além de não conseguir dinheiro para salvar sua moradia o personagem é preso e agredido. Esse destino trágico é a representação do destino dessa população dentro da sociedade capitalista, como diz Reinaldo Carneduto Filho em sua dissertação “Discursos de intervenção: o cinema de propaganda ideológica para o CPC e o Ipês às vésperas do Golpe de 1964”:

                    “Infelizmente, neste filme com tendências neo-realistas, são os descaminhos de uma sociedade corrompida pelo capitalismo que determinam o destino trágico da população marginalizada.” (CARNEDUTO, 2008, pg. 80)

A escolha de Marcos Farias por terminar a perseguição do personagem principal com a tentativa desse em pular um muro e acabar ferindo as mãos em cacos de vidro propositalmente colocados ali é interessantíssima, pois é reconhecido facilmente por todos os brasileiros e acrescenta mais um caráter exclusivamente brasileiro no filme aproximando o público da história. Além do fato que os cacos de vidro colocados nos muros representam justamente essa guerra do mundo capitalista. Eles significam uma divisão, uma barreira entre aqueles que tem e aqueles que não tem. Um claro sinal da desigualdade e do isolamento. Aqueles que põe os cacos de vidro em seu muro para se protegerem colaboram para criar uma sociedade em que eles são necessários.

Por conta desses aspectos e da expectativa entorno de o Brasil ter finalmente uma arte própria e popular que não só se comunicaria com o povo, mas também lideraria em seu papel de arte revolucionária uma tomada de consciência coletiva na população para buscar através da política de esquerda uma revolução social é que o filme “Cinco Vezes Favela” foi mitificado pela esquerda e depositada extrema esperança de que ele seria o começo de uma arte transformadora e revolucionária. Como diz Reinaldo Carneduto:

                   “Cinco vezes favela foi mitificado pela esquerda da época não apenas como o filme que renovaria o cinema brasileiro, mas como a reafirmação de uma atividade cinematográfica capaz de, efetivamente, agir sobre os sentimentos da massa e provocar uma transformação política na sociedade. ” (CARNEDUTO, 2008, pg. 85)

Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. O filme foi um fracasso na transmissão da mensagem para o público que muitas vezes nem o considerava cinema. O circuito de exibição também foi limitadíssimo e o filme que deveria se comunicar com a massa acabou circulando apenas entre estudantes e intelectuais nos cineclubes do país. As massas populares não consideravam o filme como sendo cinema pois já estava permeada por signos advindos do cinema norte-americano. Ficou-se claro que o imperialismo estava presente também na construção do imaginário popular do que significava cinema em sua essência.

                    “Em seu furor revolucionário, com bases marxistas e comunistas, Cinco vezes favela era pouco hábil em se comunicar com seu público-alvo e, pior ainda, por desinteresse dos exibidores, não teve chances de estabelecer um diálogo apropriado com os freqüentadores das salas de cinema. ” (CARDENUTO, 2008, pg. 89)

Além do fracasso comercial e ideológico o filme também criou uma fissura entre os intelectuais dentro do Cinema Novo. A visão do CPC, por meio de seu presidente Carlos Estevam Martins, mudou após a experiência de “Cinco Vezes Favela” e começou a defender que os cineastas deveriam abrir mão de sua estética vanguardista e se apropriar da linguagem presentes nos filmes norte-americanos para, assim, passar a mensagem marxista de forma que o povo entenda. Essa posição foi muito criticada por vários cineastas que compuseram o Cinema Novo, em especial Glauber Rocha, que defendia que a arte deveria ser revolucionária em um país que deseja ser revolucionário e não emprestada de uma estética imperialista que é a qual se planeja combater.

Por fim, é importante ressaltar que o filme “Cinco Vezes Favela” e dentro dele o curta “Um Favelado” representaram mais que uma obra cinematográfica. Em sua concepção e em seu momento de criação o filme representou uma forma de esperança, uma nova forma de se fazer arte e um pensamento revolucionário verdadeiramente e exclusivamente brasileiro. Ele deu início ao mais importante movimento cinematográfico brasileiro e se propôs como uma antítese às chanchadas que dominavam a produção cultural brasileira até então e que se inspirava no cinema de estúdio norte-americano. O filme “Um Favelado” e os outros se inspiraram e buscaram uma estética vanguardista e trouxeram uma originalidade ao cenário brasileiro que era pobre de objetos cinematográficos que discutissem sua própria realidade. A importância que esses filmes tiveram na criação de um cinema verdadeiramente brasileiro é imensurável e, embora não tendo sucesso na época em seu objetivo de se comunicar e inspirar as massas, o filme inspirou e inspira tantos outros cineastas até hoje.