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... E o cinema desmascara a burguesia

A média burguesia (e os seus inúmeros aspirantes) é talvez o mais amoral patamar da sociedade contemporânea. Digo isso em tom de generalização, porque a impossibilidade humana de vestir-se de sua moralidade inventada, torna-se cada vez mais intensa quando se considera o dinheiro e os bens de consumo para a posse de um indivíduo.

Fazer estripulias comerciais, cometer (pequenos?) delitos (vide obras de Sérgio Bianchi), criar máfias, buscar o ócio do bem-estar é algo tão típico e cotidiano da atual classe média e pequeno burguesa, como vestir roupas caras, exibir-se em vultosas baladas e pedir meia entrada no cinema ou replay do passaporte do Hopi Hari.
Em Cama de Gato (2002), Alexandre Stockler emprega ácida e “marginal” narrativa crítica, história e sociológica para dissecar a ética e o senso de humanidade de jovens burgueses em busca de diversão contínua e inconsequente. O filme se estrutura na base do relacionamento entre três amigos que acabaram de entrar na faculdade. Através de pontos de vista diferentes (lente, câmera e fotografia), Stockler cria um filme-experimento visceral que incomoda, enoja e reconstitui a diversidade das atitudes humanas dentro da ideologia de sua classe social e a consciência cultural, psicológica e de existência que ela produz.
Cada um dos três jovens (interpretados de forma pontualmente dramático-realista por Caio Blat, Rodrigo Bolzan e Cainan Baladez) é filmado com câmeras diferentes, e suas posturas emocionais e morais completamente opostas intensificam as nuances visuais de representação de suas personagens na tela. A sequência de abertura mostra uma discussão sobre capitalismo, globalização, justiça e sistema político-social, executada no molde de um ringue cult. Ironicamente, os garotos apostam dólares enquanto fumam, bebem, e passam da sala de estar clean para o lixão dos catadores e moradores de rua.
A estrutura formal do filme é tão fragmentada quanto seu conteúdo, e mesmo a disposição do material editado acirra a luta entre ser para si (indivíduo, imagem fílmica) e ser para um público (cidadão, produto fílmico). Flagramos os eventos como um voyeur comum, ávido pela vida-imagem alheia. Para tanto, nos são oferecido diversos espaços de observação: a câmera do elevador, a câmera da faculdade, a webcam. Além de motivações dramáticas diferentes, Stockler manipula diversos formatos de registro da imagem fílmica, e eleva isso a ponto de manipulação emocional-dramática do tempo, como é possível observar nas nuances plástico-emocionais entre a madrugada e o raiar do dia, no lixão. O efeito prolonga a angústia dos personagens e do espectador, e abre um leque de interpretações possíveis.
A montagem de Doca Corbett narra e desnarra ao mesmo tempo, sendo rápida nos pontos de dúvida moral e ética e lenta nos núcleos de ação de embate intelectual, no caso da forma externa. Na forma interna, a montagem sintetiza o supérfluo, liga os pequenos burgueses a seus objetos: os óculos escuro, a caixa térmica, o tênis, a chave do carro, o computador, a casa. A montagem aí recria os pedaços e envolve em vanguarda algumas sequências, como a das cabeças flutuantes sob um fundo branco, conversando com o Deus advogado ou com o Advogado deus. Intrínseca à fotografia que dá uma sensação de falso naturalismo, a montagem além de guiar o filme como fluxo de imagem-tempo, guia o espectador-personagem para o ciclo vicioso do vício e da autodestruição. A excelente música posta como contraponto, sela a atmosfera do caos, do desespero, da ação irresponsável proposta por um roteiro nada piegas e sem nenhuma preocupação de lidar com o politicamente correto.
Os garotos vivem entre a “maldade acidental” e a “falsa inocência”. Em seus anseios e confusões (a)morais e (pseudo)religiosas, nada parece demais: estuprar uma garota, matar um mendigo e tentar esconder o corpo da mãe morta, sob qualquer custo, até mesmo tentar forjar um estupro feito pelo mendigo já morto, tudo em nome da vontade imensa de manter o papel de estudante promissor e jovem politizado – e aí entra a crítica do diretor, que ridiculariza a postura reacionária de muitos jovens, tida desde há muito, como crítica social. Cada um encena sem vergonha (literalmente) seus ambíguos papéis de “futuro da Nação”, e desmascaram de modo espetacular os “bons jovens de boa família”.
O filme encabeça uma delicada postura da juventude médio-burguesa do nosso século, a busca pelo prazer sem limites, independente das consequências de tal divertimento. Já não falamos de uma juventude politizada como a retratada por Bertolucci ou Godard, nem da juventude que busca espaço/compreensão e se rebela para achar um lugar como a plasmada por Nicholas Ray. A juventude burguesa do século XXI nasceu em Laranja Mecânica (1971) e reafirmou seu desespero em O Exército Inútil (1983). Hoje, sob os postulados do 3D e da ultra informação, os jovens “não precisam” de espaço, liberdade, atenção. Não precisam porque já “possuem tudo”, e desprezam o que não têm: senso crítico, consciência política, riqueza cultural. No caso dos jovens pobres, a preocupação é não morrer de fome, ganhar dinheiro e reproduzir, seguindo uma “cartilha de classe” que prega não só o sucesso pessoal dado pelo constante trabalho, mas também a família nuclear: papai, mamãe e filhinhos. Crentes de que nada é demasiado, os jovens-século-vinte-e-um caem no humor mortífero e ridicularizador, tendo também, entre outras coisas, o aval de programas de televisão e crapmovies pastelões no estilo da série American Pie (1999-2009): zombar de gordos, carecas, magros, dentuços, vesgos, gagos, deficientes, disléxicos e foras-da-moda é a grande sensação de audiência e da juventude do momento. E muita gente vê isso, aplaude e pede bis. Eis porque um filme como Cama de gato incomoda tanto: causa dor demais nas feridas de milhares de cabeças que daqui a alguns anos estarão no poder. E a justificativa para tanta aversão ao filme, reside, basicamente, nas “apelativas cenas de sexo”, segundo tais pessoas, “sem necessidade”. Ora, não é tempo de mostrar a tais moralistas os filmes de Pasolini, Almodóvar e os filmes-ícone que contêm o “sexo chocante” como escolha dramática a exemplo de Império dos sentidos (Nagisa Oshima, 1976), Os sonhadores (Bernardo Bertolucci, 2003) ou Shortbus (John Cameron Mitchell, 2006)? Ou quem sabe não é tempo de fazer quem acusa Cama de gato de pornografia barata, revisar o que se tem como entretenimento na TV ou no cinema de grande circulação. O que incomoda na verdade, não é a nudez ou o sexo postos no filme, mas como ele é apresentado, por quem é feito, e o ambiente social no qual se insere quem o faz. Ou, no mínimo, é tempo de aludirmos às palavras de Ortega y Gasset, quando diz que, quando um indivíduo não entende uma obra de arte, sua atitude imediata é destruí-la.
E sob tanto pessimismo, o filme ri dos trágicos que dizem que não há mais nada para fazer, que o roubo é o cerne da saciedade e que nunca haverá uma mudança social significativa, por isso não adiante lutar.
Em tom de documentário, Sotckler abre e fecha Cama de gato e seu Movimento Trauma (uma espécie de Dogma 95 brasileiro) com entrevistas a jovens de classe média universitários ou do Ensino Médio, que fixam uma espécie de confirmação para a ficção sócio-crítica mais real do cinema brasileiro desde as mudanças narrativas advindas da Retomada, nos anos 1990.
E muito se diz que o cinema brasileiro não produz crítica ou arte fílmicas. Talvez essa espécie de população “crítica” prefere que as ninfas do clichê hollywoodiano estendam os lençóis brancos em suas camas de livre arbítrio-Deus-e-falso-moralismo embaladas pelo acalentador happy ending. Esse é o público que deita e rola na Cama de gato que Alexandre Sotckler brilhantemente traz à tona e incendeia.