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Shortbus: a fuga e o desespero das gerações

Todo tipo de filme “partidário”, independente do grupo ou ideologia que sustenta, tende a ser ruim. Primeiro, porque há um objetivo-mensagem pré-definido e todos os elementos do filme são diminuídos em favor da apologia ou foco único dado ao objeto em questão.

 Só me recordo de um caso vitorioso nesse tipo de realização fílmica: os dois volumes de Olympia (1938) de Leni Riefenstahl – que, apesar de terem sido encomendados pelo Partido Nazista, ultrapassam o efeito estético, talvez por serem documentários. Com maior cautela, vale lembrarmos do Cinema Revolucionário Soviético, em cujo os filmes de Eisenstein e Vertov (por exemplo) jamais traem a crítica estética; e o Cinema Revolucionário Polonês, na pessoa de Andrzej Wajda, cujo a Trilogia da Guerra é uma das melhores obras “partidárias” já realizadas.

Outro motivo para o geral fracasso desse tipo de filme apologético é porque se tudo deve convergir para a fonte, e não sair dela, o resultado será uma rasa experiência fílmica, como as que constatamos na maioria das biografias ou das comédias escrachadas que hoje proliferam tanto em Hollywood quanto em diversos cinemas nacionais. Se um filme se destina a uma abordagem específica e fechada, ele deve ser, acima de tudo, autêntico com o objeto que retrata, atitude adotada de maneira estupenda por John Cameron Mitchell em seu filme Shortbus (2006).

Shortbus não é (mais) um filme sobre o universo (homo) sexual e tudo o que o cerca e acomete. Tampouco é uma apologia ao sexo descompromissado ou à pulsão, ao suicídio, ao voyeurismo. Shortbus é antes de tudo, um filme sobre as crises humanas com base em seus instintos vitais, e, tendo em vista e o modo narrativo e a temática, é um dos melhores da atualidade.


   Basicamente o filme limita-se a um grupo de pessoas de diversas inclinações sexuais, da cidade de Nova York após o atentado ao WTC, em 2001. Mas ao invés de levar para a tela a nudez apelativa ou o “dramalhão dos excluídos”, o filme avança o sinal do convencional e parte para a formação estético-realista de um tema que transita entre a sensibilidade e o grotesco. Toda a burguesia novaiorquina é retratada entre o atípico e o estereótipo das personagens da obra e seus espaços fuga/opressão: um apartamento, uma clínica, a boate Shortbus, um banco em frente ao mar, uma sauna, e, raramente, a rua. Ao se propor fazer um filme sobre instintos e neuroses, sobre relacionamentos complexos e a dificuldade de relacionar-se (com o outro e com o mundo, uma espécie de inaptidão social que culmina na autoexclusão do anti-social ou, em grau menor, na opção por não encaixar-se, dos mais críticos), Mitchell privilegiou os espaços internos, imprimindo uma aura claustrofóbica à película, um uso formal para a reafirmação de um estado de espírito das personagens.


   A partir da abertura do filme observamos o caminho nada usual que o diretor escolhe para plasmar a trama: a cidade de Nova York, em aquarela, é percorrida por uma câmera aérea, e revela, pouco a pouco, o que se passa atrás das janelas e das portas. A invasão da privacidade das personagens coloca o espectador em diálogo imediato com a diegese fílmica, formando a primeira impressão de atitude: a de cumplicidade ociosa. O espectador é cúmplice e refém das atitudes eróticas nada comuns que se passam nos diferentes bairros da cidade. Em uma primeira impressão, as taras, o sexo e a nudez são o mote de Shortbus, o que talvez pode ter reduzido o potencial narrativo-analítico do filme frente a espectadores que atentaram apenas para este viés da trama. É uma daquelas armadilhas que alguns roteiros carregam, e que podem forçar o filme a se auto-minimizar em favor de uma situação-destaque sem a qual não existiria filme (como acontece em Pecado da Carne, de Haim Tabakman). Apensar da predominância dos deleites dionisíacos, que em certas cenas, convenhamos, são completamente dispensáveis, o que impera desde a abertura do filme, é o desespero. A busca pelo prazer é mais uma fuga da realidade do que uma libido em potencial, tanto que a “solidão” das personagens e as constantes crises de consciência que culminam em choro ou tentativa de suicídio, correm paralelas a toda libertinagem de Shortbus.


   Já citamos que a exposição do nu e do sexo em algumas sequências poderiam ter sido cortadas na edição de Brian A. Kates, que não afetariam o núcleo do sentido narrativo do filme. Entretanto, ver isso como um ingrediente da exposição do “mundo íntimo” das personagens (mais uma vez, a fuga), pode ajudar a não condenar de todo os excessos. Contudo, de forma bem simples, sem pender para o politicamente correto e o escracho total, o roteiro desenrola partículas de histórias que se juntam e se dissipam e voltam a se juntar, sempre com a ausência da esperança. A mácula do desespero social, a guerra no Iraque, a opressão purista imposta pelos valores sociais são problemas estruturais que massacram a levam as personagens de Shortbus a refugiarem-se nos fluídos do outro, embora o desalento posterior mostre que a “cura” é apenas temporária, o que leva a história para um ciclo vicioso. Apenas um elemento dramático se resolve em Shortbus: o da terapeuta que nunca tivera um orgasmo. O último take do filme é um primeiríssimo plano de seu rosto em êxtase, que dá lugar a uma explosão de luz, um fade-out branco que em seguida reafirma a ideia de que ela (a terapeuta) “conseguira”: as luzes voltam a se acender na cidade inteira, após horas de blackout. Todo o resto dos problemas apontados permanecem na linha da possibilidade de voltarem a acontecer. O clímax final de Shortbus é o mais puro clímax-melancolia felliniano: uma drag queen canta, uma fanfarra toca e todos festejam, apesar da melancolia da música; alguns, se “encontram” naquele momento, mas como em Fellini, fica a dubiedade: nada do que acontece entre as personagens ao fim do filme não tinha acontecido antes. Apesar da festa, do baile, do “freak desfile” final (que lembra a sequência final de 8 ½), a desesperança permeia a felicidade.


A firmeza e a verossimilhança do roteiro não seria tão expressiva e corrente sem o papel criador da montagem, que neste filme, serve como um laço que lentamente se aperta em torno de pequenas peças-personalidades. Na última sequência, parecemos presenciar a teoria da grande rede: todos se conhecem, já se viram em algum lugar ou possuem uma rede de amigos que os podem ligar a qualquer pessoa do filme, já que todos fluem para o mesmo lugar, em busca da mesma coisa. Mais uma vez, indivíduos doentes, vítimas de uma sociedade doente (como em Deserto Vermelho de Michelangelo Antonioni).

A fotografia de Frank G. DeMarco é um espetáculo à parte. O predomínio quase monocromático da cor e textura fotográfica em ambientes específicos (o verde, os tons térreos, o vermelho, o branco) incita o clima claustrofóbico e intensifica a emoção da mise-en-scéne. A narrativa da câmera é muito bem executada, todos os enquadramentos se enlaçam – atenção especial para toda a sequência final do filme.

Além do apuro técnico, há ainda a adição de outros formatos e uso de tecnologia para a “ligação” das personagens, na forma interna do filme. A película produzida pela personagem de Paul Dawson (James) é outro elemento que funciona fuga, já que se trata dos momentos felizes passados ao lado de Jamie ou da infância, uma ação genuinamente romântica, no sentido literário da palavra. A isso se somam um figurino personalístico e uma fenomenal trilha sonora, que serve de metáfora e complemento cênico. Não é a toa que as duas músicas finais, apesar de irem do clássico de câmara ao circense cheio de melancolia (à la Nino Rota), falam mais e melhor do que se houvessem páginas e páginas de texto.

Em um tempo onde o sexo e a sexualidade perpassam pelo conservador e o liberal, em Hollywood, John Cameron Mitchell toma um atalho e apresenta um trabalho que agrada tanto aos mais preocupados com questões de aparência e amenidades fúteis, quanto aos que se importam com algo que vai além do nu no formato áudio-visual. Shortbus é o grito de uma geração em busca da perfeita Pasárgada. Shortbus é a faceta que mostra o reverso do desejo e da atitude, um filme que explora e disseca o prazer da solidão em grupo. 

 

 

* Sobre o autor: Luiz Santiago é Historiador e Crítico de Cinema. Atualmente ministra aulas para os alunos do Ensino Médio e curso Pré-Vestibular, palestras sobre cinema, e escreve críticas e artigos para sites especializados.

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