Santino (2023, Cao Guimarães) - É Tudo Verdade 2023

Santino (2023, Cao Guimarães) - É Tudo Verdade 2023

Por Davi Krasilchik

 

Ao escolher o naturalismo para registrar um guardião da natureza, Cao Guimarães retrata um caloroso guardião da Veredas e faz de “Santino” sua declaração de orgulho às raízes culturais.

 

A cultura brasileira possui uma forte relação com o Sertão. De suas condições geográficas à literatura de Guimarães Rosa - rica em seus elementos de realismo fantástico -, a complexidade da região já originou diversas narrativas, derivadas de seus fenômenos sociais. Esse processo foi responsável pelo surgimento de ícones que transcenderam a individualidade para representar mitologicamente agrupamentos do sertanejo brasileiro. 

 

Vindo de uma reconhecida trajetória no campo da videoarte, o diretor Cao Guimarães visita esse espaço com a intenção de acompanhar outra personagem em potencial. Menos investido em uma exploração sociológica do Cerrado, mas nem por isso inibindo, por exemplo, um forte discurso de proteção ambiental, ele dirige a sua lente ao simpático Santino, retratado em uma dimensão quase mitológica.

 

Habitante de uma bacia próxima a Bonito de Minas, Santino Lopes Araújo não demora a demonstrar sua forte conexão com a natureza, exímio conhecedor da fauna e flora de seus arredores. Descrito como um verdadeiro ativista, o filme exibe sua grande afinidade com a defesa daquele habitat, que o veredeiro desvenda de maneira física e espiritual.

 

Habilidoso nos rituais à luz de velas e confiante na própria capacidade de comunicação com os animais, ele assume uma postura quase inconcebível pela brutalidade de registros anteriores. Isso o separa dos traços de um Fabiano ou Severino - protagonistas dos clássicos literários, Vidas Secas (1938, de Graciliano Ramos) e Morte e Vida Severina (1955, de João Cabral de Melo Neto) - no aproveitamento de uma personalidade lúdica, destacada das cores frias com as quais o filme foi finalizado.

 

É interessante que a escolha brinca com os choques entre o verdadeiro e o fictício - típico da fragmentação da realidade que a câmera documental realiza - de modo até inconsciente. Em entrevistas, Guimarães revelou que o direcionamento do projeto surgiu por acaso, e o romance sertanejo que planejava fazer inicialmente foi totalmente substituído quando descoberto esse protagonista.

 

Ele ainda comenta sobre a praticidade com a qual, dispondo de uma equipe e duração reduzidas, o projeto foi concebido, distante de um modo de produção mais industrial. Essa margem de abertura preserva a naturalidade com a qual Santino expõe as suas visões de mundo, que mesmo retratadas em entrevistas não parecem encenadas. É como se ele existisse em um plano isolado, saído diretamente das páginas de Guimarães e dono de particularidades incompreendidas até pela própria família. Isso se desdobra não como algo negativo, mas como uma narrativa especialmente interessante, calcada na diversidade do legado brasileiro deixado pelo Nordeste.

 

Embora a composição fria dos planos apareça como um contraponto a essa vivacidade - e que em seu protagonista tenta se manifestar da maneira mais pura e espontânea possível -, é nítido também como a fotografia tenta trabalhar o misticismo  daquele ambiente. Dos planos-detalhe que destacam a espuma da água em que encontra a terra ao destaque das faíscas de uma fogueira, existe uma relação simbólica entre as próprias imagens e a representação da natureza.

 

Guimarães ressalta, assim, o reconhecimento de Santino como uma lenda, um salvador que desafia os tratores que destroem as terras vizinhas e permanece ali para transmitir o conhecimento aos mais jovens. É a forma que a direção encontra de flertar com a cultura da criação simbólica, olhando para elementos ali inseridos com lentes íntimas ou angulações lúdicas, prontas para arquitetar uma aura mágica.

 

Desse modo, tem-se a criação de uma figura que se afasta da origem por obrigação sociológica, mas nem por isso se exime totalmente dessa responsabilidade. Direto (e até didático, em certo ponto) Santino é um guardião das Veredas, moldado por suas raízes. Ele é a representação de um Brasil intocado pela crueldade humana, tão vivo quanto um cineasta que esbanja orgulho ao explorar outros territórios de sua própria nação.

 

Biografia:

Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema e Jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde já roteirizou e dirigiu dois curtas-metragens. Ele também já fotografou dois projetos curriculares, além de produções por fora, e escreve críticas e reportagens para meios como a revista universitária Vertovina e o site Nosso Cinema. A sua paixão pela Sétima Arte se manifesta desde a infância, e atualmente ele trabalha na Filmoteca da TV Cultura, onde ajuda a preservar esse material por qual tem tanta paixão.