Mostra Brasil VIII (Tecendo dramas de amor: raça e afeto) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Mostra Brasil VIII (Tecendo dramas de amor: raça e afeto) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Marcos Kenji

 

Na Mostra Brasil VIII, o amor é colocado no centro do conflito. Cada curta trata o tema sob óticas diferentes, dentro da ficção: as ansiedades, a sexualidade, os encontros e desencontros, as coincidências e a reciprocidade entre duas partes. O drama particular pode variar, mas as sensações são acessíveis, permitem a identificação. Por consequência, falar de amor é ter afeto e exercer empatia.

 

 

Tecer dramas de amor é uma prática fundamental do cinema. Desde o estabelecimento da noção de narrativa cinematográfica, ainda muito atrelada à literatura e ao teatro, os filmes buscam expressar o sentimento de se apaixonar. O gênero romance surge como um foco preciso neste objetivo, ainda que atrelado às limitações da indústria cultural. Daí em diante, a síntese entre movimentos de câmera, uma cenografia fechada, som direto de vozes e ruídos humanos e uma música romântica é o suficiente para comover audiências no mundo inteiro. A relação de dois seres humanos constitui uma linguagem universal, já que, segundo Edgar Morin, a identificação é a alma do cinema.       

 

Em questão de dramaturgia, esses sentimentos são evocados de maneira semelhante a das músicas românticas, com dissonâncias dramáticas fortemente demarcadas, e momentos muito bem delineados por emoções específicas. A antecipação de um toque na pele transforma um momento em puro romance e erotismo – por vezes, mais do que o sexo em si. E é nesse arranjo que os curtas se relacionam, na premissa de expressar formalmente algum conflito específico ao amor, como a insegurança de ser emocionalmente dependente de outra pessoa, a partilha da dor com a outra pessoa, o distanciamento provocado pelo vício na relação sexual mediada em estímulos externos e a ansiedade causada por um problema inerente a si mesmo. Pode até parecer que amar é só sobre sofrimento, porém - muito pelo contrário - é sobre sair de si e viver também pelo  outro.  

 

Avisa se voltar (2022, Jota Carmo) introduz de maneira latente seu conflito: Agatha não consegue respirar. Seus olhos expressam a dor de não conseguir inspirar ar, os seus pulmões estão sem contraindo. A música adiciona tensão com a mistura da cadência de um relógio com a sonoridade cortante de um sample. Du, a namorada de Agatha, atende o telefone. Ao perceber que Agatha não está respirando, Du conduz-a pela normalização da respiração. Quando Agatha volta a respirar, uma voz feminina exclama em um alívio melancólico. De imediato, fica clara a dicotomia entre a ansiedade de Agatha e a dependência emocional que ela tem de Du. E, nos melhores momentos de Avisa se voltar, esse conflito produz, com imagens e sons, fortes tensionamentos.

 

Todavia, diante dessa introdução, o filme se compromete com o docudrama. Não se sabe até que ponto não-atores foram utilizados, porém fica claro que há interesse em uma estrutura de depoimento. Agatha cria um ambiente de partilha das experiências amorosas de cada um dos amigos, como uma maneira de ajudá-la a entender suas inseguranças no relacionamento. Dito isso, por mais que esse segmento pareça concordar com a encenação do drama principal, o tom de espontaneidade advindo das experiências pessoais é incompatível com o restante da dramatização.

 

Em meio aos depoimentos, o filme propõe momentos de uma encenação mais direta, entrecortando cenas da relação entre Agatha e Du com outras de Agatha sofrendo sozinha. Isso posto, fica clara uma indecisão quanto à proposta dramática do filme. Assim como a cena inicial, os momentos mais cinematográficos, por assim dizer, permitem a expansão do conflito inicial do filme, com a expressão da dificuldade de Du para lidar com a ansiedade de Agatha. Em especial na cena que Agatha não acompanha Du em um compromisso com os amigos. No entanto, ao invés de seguir essa linha dramática, os momentos são prontamente interrompidos pelas experiências de outras pessoas, o que interrompe qualquer envolvimento emocional na relação central.

 

Como consequência, poucas são as cenas que, de fato, exploram a relação das duas personagens. E isso é levado às últimas consequências com a inserção de planos em que as elas olham diretamente para a câmera, como se estivessem posando. Parece que, em todos os sentidos formais, Avisa se voltar não consegue se desvincular de uma imobilidade cênica e dramática provocada pelos entrecortes dos depoimentos. Tanto é que há a hiper centralização sonora nos diálogos ocos, diante da limpeza profunda dos ruídos e da ocupação dos espaços de sons ambientes e da trilha musical. Por conseguinte, o filme como um todo expressa de maneira inevitável um sentimento de impotência, de inatividade quanto ao amor. A protagonista conduz sua história como uma ouvinte e não é capaz de transformar os depoimentos captados em alguma atividade para sua vida pessoal.

 

(Avisa se Voltar, Jota Carmo)

 

Contando aviões (2022, Fabio Rodrigo) é um título, no mínimo, intrigante. Estimula a especulação sobre o que se trata a imagem colocada pelo título. O título expressa uma ação, interna aos neurônios, de um raciocínio lógico capaz de contabilizar a quantidade de aviões no céu. No caso, contar aviões é algo para se fazer enquanto se está esperando.

 

(Contando aviões, Fabio Rodrigo)

 

Esse drama de expectativas está centralizado em Tereza e Maru, mãe e filho habitantes da cidade de Guarulhos. Maru voltou recentemente da França, onde usufruía de uma bolsa de estudos, cedida pelo governo brasileiro, e já estava estabelecendo sua vida com Anaya, sua namorada. No entanto, com o corte da sua bolsa, Maru é obrigado a abandonar sua vida na França, voltar ao Brasil e, ainda, ver que suas potencialidades não seriam aproveitadas aqui. Tereza observa todo esse retorno de Maru e sente dentro de si a decepção do seu filho. A todo custo, ela lhe quer dar a melhor vida possível.

 

O amor está aí, na reciprocidade entre uma mãe e seu filho, e vice-versa. A encenação favorece, mesmo com todas as turbulências do contexto geral do filme, as trocas singelas entre a Maru e Tereza. O menino cuida da mãe, a visita no trabalho para fazer um agrado; e a mãe cuida de seu filho, busca maneiras para que ele se reestabeleça no Brasil. E é nessa reciprocidade que está a simetria do filme. No começo, Tereza olha pela janela e, em silêncio, conta aviões, ao mesmo tempo que Maru descreve uma ação semelhante, de Anaya, em um voz over. Por outro lado, no fim, Maru conta aviões e planeja uma vida com Anaya na África. Esse paralelo é uma rima que aproxima essas pessoas, cada uma esperando nas suas janelas. Até dá para imaginar a Anaya fazendo a mesma coisa.

 

O avião é o signo plástico que pauta toda essa proposta formal, é o intermediário que liga as expectativas do passado e do futuro. É inerente às imagens do horizonte de Guarulhos e, de maneira ainda mais presente, às suas ambiências. Um som de turbina permeia boa parte da duração, é como se os personagens, estando esperando, estivessem em trânsito. Este movimento potencial não é mostrado em atividade, porém, o mais importante, é o foco neste momento específico do planejamento e na esperança de que um dia virará movimento.

 

(Os animais mais fofos e engraçados do mundo, Renato Sircilli)

 

Os animais mais fofos e engraçados do mundo (2023, Renato Sircilli) tem uma proposta formal contemporânea na maneira como utiliza a acoplagem de estímulos, com a colagem de sons de relações sexuais com imagens. Afinal, no enredo, Jorge é um zelador de um motel que grava o áudio de pessoas tendo relações sexuias e as vende para Alberto. As gravações mediam as relações sexuais de Jorge e Alberto. É uma posição semelhante ao hiper-estímulo visual e sonoro da pornografia, que soma a imagem do sexo explícito aos sons inflacionados dos gemidos dos atores, o que, de maneira inevitável, isola, por meio do som, o espectador do mundo e o entrega o explícito como o único foco de atenção. E é intuitivo concluir que isso entra em conflito com as relações humanas estabelecidas pelas pessoas, causa disfunções sexuais e, acima de tudo, cria a adicção a estímulos positivo do sistema de recompensa hormonal.

 

Juízos morais à parte, o filme dialoga diretamente com esse meio, ao colocar essas imagens e sons em xeque, com um drama por si só. Esse conceito formal expressa a relação entre os dois personagens como a dialética entre o naturalismo e o hiper-estímulo. De um lado, os planos, que lembram o aprisionamento dentro do quadro de filmes como Jeanne Dielman (1975, Chantal Akerman), utilizam da dicotomia entre o distanciamento da câmera de uma ação cotidiana e a proximidade claustrofóbica (intensificada pelo formato 4x3). Por outro lado, a mixagem de som sobrepõe os sons diretos do cotidiano com os exagerados sons de gemido. Por consequência, é criado um ambiente de tensão sexual, não como algo romântico, mas sim como uma agressão sensorial. 

 

Todo esse ambiente audiovisual criado é resolvido com facilidade pelo desenlace do filme: Jorge destrói o celular que poluía o ambiente. E é somente com essa ação que Jorge é capaz de respirar como ele mesmo. Talvez essa não seja a realização de uma história de amor, porém fundamentalmente destrói a barreira que segrega os corpos de Jorge e Alberto. 

 

O mineiro Lapso (2023, Caroline Cavalcanti) prova justamente isso: o amor não é um conflito de segregação dos corpos, mas sim, ao contrário, é um vetor de força que sonha com dois corpos ocupando o mesmo espaço ao mesmo tempo. O objetivo de um bom romance é esse, transformar duas pessoas em uma unidade, independente de qualquer conflito. O amor é consumado pelo simples fato de que os personagens querem estar juntos e, por consequência, a forma do filme acompanha o processo de aproximação de duas pessoas, no caso, Bel e Juliano.

 

Como em uma história de romance clássica, o que começa com dois atos de vandalismo não coordenados, mas simultâneos, termina com a consumação de um novo amor. E há um detalhe importante: Bel é deficiente auditiva. Contudo, a despeito de alguns momentos localizados, não interessa ao filme centralizar o conflito nessa característica da Bel, mas sim nas suas particularidades, motivações e características. Dito isso, Bel é uma personagem sempre em atividade, cujo desenvolvimento se prova o mais profundo do filme, com o estabelecimento das facetas da produção de sua arte, da sua paixão pelo skate e da sua relação com a irmã. Pode até ser que essas características estão dispersas na narrativa, porém, querendo ou não, essa é a maneira como Juliano vê Bel (Vide foto de capa).

 

Por outro lado, falando de Juliano, é dele que, na verdade, parte o conflito do filme: o lapso. Não fica claro o que é, porém esse lapso é alguma condição de saúde de Juliano – representado pelo efeito de sobreposição e um ruído quadrado (como algo arranhando) – que o impede momentaneamente de agir. É por isso que ele se assusta ao ver um policial revistando uma mulher parecida com Bel: seu medo é que seu lapso o separe dela. 

 

Apesar de esse ser o título do filme, o lapso não é o foco do curta, talvez não como se espera. Esse termo é comumente associado a, por exemplo, um lapso de personalidade, quer dizer quando se confunde a própria identidade. Quiçá seja este o real conflito do filme, não que Juliano queira proteger Bel, mas ele a vê como parte de si. Seu bem-estar e sua felicidade é determinante na vida dele. 

 

O amor é sobre isso: a perda de si. E é daí que o gênero romance parte, dessas experiências essencialmente individuais, ele dramatiza o movimento, arco, encenação, trajetória de sair de si. Transforma em som e imagem momentos íntimos, por vezes, confidenciados apenas aos amantes, e continuamente busca a expressão desse sentimento. O cinema é sobre isso

 

 

Biografia

Marcos Kenji é graduado em Cinema pela FAAP, onde realizou quatro curtas-metragens nas áreas de som, arte e assistência de direção. No momento, está se especializando na técnica de som, com o objetivo de atuar na área e escrever com autoridade sobre o assunto. Tem um texto publicado na edição no 4 da Mnemocine.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima