Mostra Brasil X (Tensões no Campo e no Asfalto) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Mostra X (Tensões no Campo e no Asfalto) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Gabriela Saragosa

 

Intitulada “Tensões no Campo e no Asfalto”, a Mostra Brasil X apresenta cinco filmes que contemplam as relações entre terra, identidade e liberdade

 

A Mostra Brasil X do 34º Curta Kinoforum levanta questões milenares do Brasil. Retratando a resistência contra a opressão aos povos originários e a destruição da flora e da fauna, os filmes selecionados são um poderoso lembrete da urgência de seus temas e de sua relação intrínseca com a identidade brasileira.

 

Fala da Terra (2023), dirigido por Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, abre a mostra apresentando o tema da reforma agrária. Com o coletivo de teatro Banzeiros, formado por membros do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), é apresentada uma teatralização do conflito entre o agronegócio e os povos indígenas e trabalhadores rurais: vemos a peça, a plateia e seus bastidores. O momento de maior provocação do curta, no entanto, é a cena em que é mostrada a réplica da Estátua da Liberdade da rede Havan com o discurso do MST em voz off. A simultaneidade desses elementos ilustra perfeitamente o contraste entre a genuína luta dos trabalhadores brasileiros e o falso patriotismo vira-lata que tão intensamente tomou o país nos últimos anos.


Em seguida, O Itinerário de Cicatrizes (2022), dirigido por Glória Albues, ilustra o horror e a melancolia resultantes do maior incêndio da história do Pantanal, em 2020. No início do filme, ouve-se, na língua bororo: “o que acontece com a natureza acontece com o ser humano”. A força da frase é potencializada ao longo do curta pela alternância entre planos de retratos e imagens da fauna e da flora em cinzas, completamente consumidas pelo fogo. O desenho sonoro do filme desperta uma grande sensação de proximidade com a tragédia: encarar a vastidão da natureza em cinzas enquanto se ouve o crepitar do fogo e o sopro do vento e ficar diante da imagem dos restos de um animal incinerado enquanto se ouve os sons que faziam em vida são mecanismos poderosos quando se pretende enfatizar a dimensão de uma devastação.

 

(O Itinerário de Cicatrizes, Glória Albues)

 

Solos (2023), dirigido por Pedro Vargas, trabalha o contraste entre a terra e o asfalto. Em um canteiro de obras, Leonardo, um jovem trabalhador, ouve um barulho que vem do fundo da terra. Em meio aos inúmeros ruídos típicos de uma obra, ninguém mais ouve os sons a que Leonardo se refere. O barulho não cessa e ele começa a vivenciar “teletransportes” involuntários até a floresta. Perturbado e reprimido por seu chefe, Leonardo não encontra solução. Através dos barulhos que vêm do fundo, debaixo do asfalto e das grandes construções, é impossível não pensar no soterramento da natureza que constrói tudo em que pisamos e que nos cerca ― e que raramente alguém é capaz de ver ou ouvir. A construção do campo sonoro em Solos é fundamental à construção do contraste entre o artificial e o natural, com destaque para o último plano, em que vemos a personagem pressionar o ouvido contra o concreto e escutar tranquilos sons de pássaros. 

 

Vão das Almas (2023), dirigido por Edileuza Penha de Souza e Santiago Dellape, é um filme de terror ambientado no vilarejo quilombola Kalunga, com figuras folclóricas que têm como cenário o conflito entre trabalhador e coronel a respeito da posse da terra. Bastião, sua esposa e seu filho, são ameaçados pelos coronéis e mandados embora de seu lar. A mulher, assustada, quer ir embora, mas Bastião recusa: a terra é dos Kalungas e seu filho será batizado lá. Então, através do canto de Matinta, ele invoca a entidade e sua mulher o alerta. À beira do rio, Bastião ouve o saci-saçurá ― que, o filme elucida logo em sua introdução, faz maldades, diferente do saci-pererê, que somente prega peças ― dizer: “me solta que eu te solto também”. A relação entre folclore e conflitos sociais se completa com harmonia e a proposta do terror é muito bem-vinda.


Encerrando a Mostra Brasil X, Habitar (2023), dirigido por Antonio Fargoni, introduz o cotidiano pacato de uma família no interior de São Paulo. “Existir é habitar o território, resistir é sobreviver ao tempo” é a frase que abre o filme. Em seguida, a mãe acorda o filho enquanto prepara o café da manhã, o pai ordenha as vacas, o filho se arruma para ir à escola. Quando ele encontra um colar de dentes soterrado na terra de seu sítio, leva a peça ao museu de paleontologia de Marília, cidade famosa pela descoberta de fósseis de dinossauros. No museu, é esclarecido a ele que o artefato é objeto de estudo da arqueologia ou da antropologia, não da paleontologia. Através de imagens de uma rotina familiar tão simples, Habitar ilustra o próprio tempo, irrefreável, cuja passagem é por vezes imperceptível por nós. O filme, por fim, aponta que a região de Marília era habitada pelos Kaingang, que se opunham à colonização ― sua própria existência foi resistência e sobrevivência ao tempo.

 

A curadoria da Mostra Brasil X oferece um mergulho em algumas das questões mais profundas do país através de cinco abordagens únicas, permitindo perceber como a geração atual de cineastas tem expressado manifestações políticas através da arte.

 

 

Biografia

Gabriela Saragosa é estudante de Cinema no Centro Universitário Armando Alvares Penteado (FAAP), com experiência nas áreas de pesquisa, roteiro, direção, produção e direção de arte.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima