Leme do Destino (2023, Júlio Bressane) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

 

LEME DO DESTINO_Still088-min (1).jpgLeme do Destino (2023, Júlio Bressane) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

por Felipe Palmieri

 

Entender. Frequentemente este é o propósito de muitos ao se colocarem diante de uma tela de cinema. A disseminação de interpretações nunca foi tão simples e direta: como em teia, todos podem compartilhar suas visões lógicas sobre quaisquer obras. Em contraponto, negando a racionalidade, a coerência e a convenção, tem-se Júlio Bressane. Tal postura é análoga à obra do cineasta brasileiro, atuante desde a década de 60, que está na 47ª Mostra com dois filmes inéditos — A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (2023, co-dirigido por Rodrigo Lima) e Leme do Destino (2023), enfoque deste texto. 

 

Bressane é também um cineasta assombrado por uma contradição essencial: como evitar a racionalização de seus filmes, se estes são concebidos em erudição? Apesar de ser considerado um dos mais importantes diretores brasileiros ainda em atividade, é impossível negar a fama de difícil que Bressane sustenta. Desde seus primeiros longas, o formalismo adotado pelo autor acaba compondo obras que incitam a interpretação justamente pelo desafio de entendê-las. O processo de sua carreira, prolífica durante praticamente todas as décadas de trabalho, é de caminhar rumo à feitura de filmes indecifráveis. 

Como tese, Leme do Destino adota a ausência de uma tese. Inteiramente fragmentado, seja do ponto de vista narrativo ou temático, a estrutura empregada funciona através de associações. Porém, ao invés da lógica associativa tradicional, Bressane se distancia da objetividade e de relações diretas. É como se o filme repetidamente fizesse digressões de si mesmo, enquanto transita pelos mundos da linguagem, do amor e do tempo. A ideia de amor é a única constante no filme, mas é abordada por tantas perspectivas diferentes que não se pode definir uma concepção temática unitária. 

Outra imagem recorrente é o Morro do Leme, que abre e fecha o filme, e tem seu peso histórico e simbólico explorado ao máximo. O Leme, tal qual em um navio, pode ser encarado como um guia para o filme — não em termos explicativos, mas sensoriais. Como locação, o morro circundado pelo mar se faz ausente durante muito tempo do filme, mas ganha potência ao ser associado à vida interna das protagonistas, interpretadas por Josie Antello, rosto recorrente nas obras do diretor, e Simone Spoladore, em sua primeira colaboração com Bressane.

Ambas as protagonistas são escritoras, de modo que outro veio temático ao qual podemos nos apegar é a linguagem. Na primeira porção da narrativa, tem-se longos diálogos sobre a tentativa de definir o mundo através das palavras. Apesar dessa vocalização desaparecer ao longo do filme, como é recorrente na obra de Bressane, a presença da literatura é profundamente sentida nos cenários e nas ações das personagens: sempre lendo, imersas em bibliotecas pessoais extensas e intermináveis.  

A noção de performance, tal qual se vê através dessas personagens vivendo como em um livro ou em uma apresentação cênica, estabelece uma relação de proximidade com outro aspecto do filme: a teatralidade. Fixa-se na relação entre câmera e atrizes regularmente, por vezes acentuada pela direção de arte na espetacularização das locações, como se o espaço transitado pelas personagens simulasse um palco. 

Esse destaque dado ao lado performático é mais sentido no miolo do filme, no qual ambas as personagens adentram uma espécie de relacionamento. O amor aqui é representado como uma experiência sensorial fortíssima, atravessando elementos surrealistas que brincam com a temporalidade, com o espaço e com os próprios corpos em tela. Essa exaltação do amor entre duas mulheres é oposta ao relacionamento heterossexual que adentra a narrativa mais à frente, envolvendo a personagem de Spoladore e um homem desconhecido, quando a emancipação formal é substituída por uma sobriedade absoluta e dominante. 

O segundo relacionamento apresentado é talvez o único ganho narrativo mais tradicional proposto, pois, ao início do filme, ao tentarem definir o amor, a personagem de Antello sugere que a tragédia do amor pode apenas ser entendida por aqueles que traem — e é isso que se dá no filme, um sentimento formal de tragédia. No entanto, como citado anteriormente, a ligação entre tais pontos é intermediada por uma infinidade de digressões que impedem — propositalmente — a completude da experiência. 

A desconexão extrema é o mote de Leme do Destino, encontrando nos pontos de maior distanciamento a maior proximidade com a verdade. Não há, de fato, sentido nas associações livres que o filme realiza ao longo de sua progressão, mas sentimento e sensação, semelhantes a um fluxo ininterrupto de pensamento. O novo longa de Bressane vai bem ao tangenciar amor, performance e linguagem como ideias, mas se encontra de fato na manifestação de um propósito: contradizer a lógica. 

Susan Sontag, no início de Contra a interpretação, sintetiza: 

“O nosso é um tempo em que o projeto da interpretação é em grande parte reacionário, asfixiante. Como os gases expelidos pelo automóvel e pela indústria pesada que empestam a atmosfera das cidades, a efusão das interpretações da arte hoje envenena nossa sensibilidade. Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte”.

 

BIOGRAFIA: Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

 

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima