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"De olhos bem fechados" de Stanley Kubrick

Olhos Cerrados
Por Prof. Dr. Lucio Agra 
 

E eu era feliz; quanto mais chafurdava na obscenidade e na infâmia,
mais a minha imaginação ardia em luxúria."
Marquês de Sade.

 
Este filme reavivou em mim uma lembrança que talvez tenha sido a que mais ficou de um curso que fiz uma vez ainda no Mestrado de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, ainda no início dessa década, com o Prof. Arthur Nestrovsky. Ele apresentava o trecho inicial de uma certa Sonata para piano de Beethoven na qual uma nota se repetia até a exaustão.

A despeito da minha crassa ignorância musical, não pude deixar de associar essa passagem àquela que marca, na trilha de De olhos bem fechados, também um piano, os momentos de maior tensão do filme.

Neste que o acaso decidiu ser o réquiem cinematográfico de Kubrick, a função da nota solitária é bem outra, no entanto. Está longe da magnitude de Beethoven, embora seja de outra ordem de ousadia. Parece destinada a criar um estado de exasperação no público. Não consigo imaginar outro cineasta que consiga fazer isso com tanta personalidade como Kubrick, o que faz com que saibamos de cara se tratar do dedo do gigante. Talvez isso seja um lugar-comum: ele fazia filmes que usavam a música com rara estratégia dramática. Mas De olhos bem fechados começa otimamente nesse sentido, trazendo de volta a valsa, gênero musical que causou tanta surpresa ao espectador de 2001, Odisséia no espaço (1968), espectador já aparvalhado com a Lux Aeterna de Gyorgy Ligeti combinada com Strauss. As surpresas prosseguem nesse caminho, com Wendy Carlos na trilha com sintetizador de Laranja Mecânica.

Novamente, porém, nada daquela grandiosidade, senão o gênero musical. Essa valsa de agora é sem nobreza, um tanto anacrônica, com um indisfarçável sabor de classe média e, portanto, desde já perfeita para a cena que se inicia com "madame" Nicole Kidman (Alice) despindo-se "a caráter" para depois ressurgir na prosaica cena doméstica na qual ela acaba de fazer xixi enquanto seu marido Tom Cruise (Bill) procura sua carteira. Estamos diante de Mr. e Mrs. America: ele, um médico de clientela chique, ela meio desempregada, meio ensaiando para "locomotiva" da sociedade. Os dois vão a uma festa de Natal na qual não conhecem ninguém. Não é para menos: são convidados por um dos clientes bilionário de Bill (interpretado por Sidney Pollack) e ninguém recusa uma boca rica dessas, sobretudo tratando-se de um casal emergente-bem-sucedido morador de Central Park West (Nova York, pertinho da Madonna). Ciosos da clientela do cabeça do casal (Bill, é claro), garantem o leitinho e os sucrilhos da filhinha que escreve cartas a Papai-Noel. E, como reza o ditado: nos Estados Unidos assunto-tabu é sexo, não dinheiro (o contrário na Europa). O personagem vivido por Pollack organiza sua tradicional festa natalina, convidando os tradicionais amigos de Wall Street, empresários, políticos, militares, etc., dá seu tradicional espetáculo de cafonice e sua tradicional trepada no banheiro com mais uma modelo viciada em drogas. "Guess what?" É claro que ela toma algo além da conta e quem socorre é o velho Bill que está ali justamente para isso: resolver os pepinos do chefão, quando necessário. E só. Mas acontece que o tabu vira totem, depois de algumas doses (afinal como é que Alice agüentaria aquela chatice sem umas biritas?) e aí começa: um finório húngaro lhe arrasta para dançar e tenta uma escapadela para a coleção privada de esculturas do anfitrião. E Bill só não é arrastado também por uma dupla de modelos a fim de diversão porque é chamado às pressas para consertar mais uma do chefe (uma outra modelo com overdose, como já visto).

Esses inocentes flertes viram assunto de um bate-papo casual no dia seguinte, entre o casal feliz (nem ele e nem ela pularam a cerca), fumando um baseado antes de dormir. Mas oh, a droga da classe média abre os corações e Alice declara que quase estivera para trocar o estafermo do Bill por um oficial da marinha (ou Aeronáutica, pouco importa). Decididamente Bill e Alice não têm muita classe porque o jovem já se vê corno e sai à caça de sua "vingadinha", a mente povoada por imagens em preto-e-branco de sua esposa dando para o marinheiro.

Quem está aqui a imaginar que ironizo o filme, está muito enganado: o monólogo de Alice faz qualquer audiência, tanto quanto o de Molly Bloom em Ulisses de Joyce (mesmo a classe média-média de um Shopping, onde assisti o filme) porque é tão bem concatenado, tão bem dirigido, tão bem tudo que quem conhece Kubrick não duvida, nesse momento, como disse antes, do dedo do gigante.

Vai começar o terror. Vai começar a luta de um "barnabé" qualquer contra as forças do mal: suaves, sutis, cruéis ao extremo, as mesmas que programaram Hal para matar toda a tripulação em 2001, que capturam o moleque de Laranja Mecânica e o reeducam, que são comandadas pelo Dr. Fantástico, que, finalmente, compõem a Aristocracia fantasma e sanguinária de O Iluminado, filme que atingiu o ápice no uso simbólico do vermelho, a meu ver de forma mais claustrofóbica e eficiente que o Gritos e Sussurros de Bergman.

Tudo é óbvio nesse filme de Kubrick, menos o fato de que, por isso mesmo, é genial: deve-se ler "entre" os diálogos. As pausas milimetricamente estudadas, os "big closes" dos personagens, como se a vontade fosse penetrar em seus cérebros de minhoca, tudo é uma orquestração de efeitos para que, junto com o grão estourado da película, estejamos sobrevoando a ação "à flor da pele" por assim dizer.

Levado pela curiosidade infantil de saber como a alta burguesia se diverte, Bill imagina que comprando uma fantasia numa lojinha do Village ele não será notado numa festa de zilionários, orgia barra pesada, não pela orgia em si, mas pelo clima de maçonaria kitsch, pastiche de ritual satânico, no qual os convivas posam de Marquês de Sade de cacaracá, embuçados em ridículas máscaras do Carnaval de Veneza. Quando, de tanto "dar bandeira", Bill é descoberto e conduzido à presença do Mestre, um ridículo Cardeal Richelieu que põe e dispõe da vida das putas contratadas para festinha, não lhe ocorre ter a coragem de se lançar em cima do homem e lhe arrancar a máscara, mesmo sob risco de levar um tiro. Não. Ele prefere aceitar a ordem daquela grotesca missa negra musicada por seu amigo pianista de botequim. Ele sabe que a moça que se oferece no seu lugar, em sacrifício, há de morrer para preservar aquela iniqüidade toda.

Tirei a epígrafe desse texto do capítulo XV do genial livro de Otto Friedrich Antes do dilúvio: um retrato de Berlim nos anos 20 (Ed. Record, 1997). O capítulo se chama "Não posso me controlar" e se refere ao crime no período que aborda, tomando para título um trecho da fala do personagem principal de M, o Vampiro de Düsseldorf (1931) de Fritz Lang. Também nesse capítulo ele menciona rapidamente Arthur Schnitzler, autor de Traumnovelle ("Sonhonovela", numa tradução algo livre) que, como sabemos, é a base do filme de Kubrick. Não li o livro, mas Otto Maria Carpeaux, em seu excelente A literatura alemã (Nova Alexandria, 1994) refere-se ao austríaco Schnitzler (1862-1931) à pág. 197, dizendo ter sido ele médico (como o Alfred Döblin de Berlim Alexanderplatz, provavelmente um escritor superior), ligado ao simbolismo, narrador da atmosfera decadente da Aristocracia Austro-Húngara, interessado na psicologia da sexualidade, como atesta a sua peça mais famosa, La Ronde, proibida ainda durante os anos 20. A mesma compaixão com as prostitutas pobres e o mesmo asco para com os ricaços que compram e vendem seres humanos, passam no filme de Kubrick. Bill, novo-rico tedioso, arranca notas de 100 dólares da carteira com naturalidade (a mesma que procura na cena doméstica, no início do filme), além de usá-la a todo instante como se fosse um distintivo para mostrar sua licença de médico. Um médico pé-de-chinelo, capacho da Alta Burguesia, que livra as barras do chefão mas é incapaz de evitar a morte de pessoas - por sua causa! - incapaz de evitar que seu amigo pianista tome uns cascudos (se é que não morreu) e que paga 150 dólares, sem chiar, para a prostituta com quem não transou por causa do telefonema da esposa (ele também fica chocado quando a amiga dela lhe diz que ela é HIV positiva e ele não pode fazer nada).

É que Bill não serve à sua profissão, mas àqueles que mandam. Um velho rico morre e sua filha, diante do cadáver, e prestes a se casar, de um histeria comovente, resolve dizer a Bill que sempre fora apaixonada por ele. Bill não entende a lógica dos que lhe estão acima, mas já sabe de cor as fórmulas verbais para lidar com eles. "Eles" são o que Otto Friedrich , em outro contexto, assim qualifica: "Os criminosos governariam e os inocentes seriam punidos" (pg. 343) Friedrich se refere (fala de 1931) à ascensão nazista. Será que, diante do filme de Kubrick, não podemos trocar os verbos da frase de Friedrich para o presente do indicativo?
Quando Bill, depois de ver no necrotério, a modelo que morrera por sua causa, é chamado à casa do chefão, lá fica sabendo que, claro, o chefão também estava na orgia. Ele, um penetra inexperiente, havia sido descoberto com facilidade. Em uma sala de jogos enorme, diante de uma mesa de bilhar (sinuca?) cujo pano verde misteriosamente dá lugar a um vermelho-claro de sangue, Bill é massacrado: como eles descobriram? A resposta é simples: Um pé-de-chinelo que chega de táxi, atrasado, esquece a nota da loja de fantasias no sobretudo, fala a senha correta mas acredita que há outra para ir embora (hilário!) se comporta como imbecil e até leva um bom tempo para sacar que está sendo seguido por um capanga.

Bill, o perfeito palerma, no fim das contas, morrendo de medo da esposa, não consegue resistir e esquece que foi quase-corno: conta a Alice tudo o que aconteceu. Ela, bem mais viva que ele (grande Kubrick, no trato com as personagens femininas) acaba, no final do filme, dizendo o que realmente seria possível dizer. Em uma loja de brinquedos, comprando o "papai-noel" da filhinha, como toda classe média consumidora, ela faz a conta. Vão-se os anéis, ficam os dedos e bola pra frente. Ela lhe diz, alto e bom som, qual é a função de seu marido: Fuck. É como se Kubrick dissesse isso a todos nós que assistimos diariamente ao espetáculo degradante do escrotismo social.

O filme não podia ser menos exasperante. Ele tem a medida certa, magnífico na precisão. Sem dar um tiro, sem uma gota de sangue, Kubrick fez um dos mais violentos protestos contra a lama desse fim de milênio. E o que é melhor: sendo, até o fim, o exímio cineasta que sempre foi. Tenho certeza que Schnitzler, meio esquecido de todos como notou Carpeaux, agradeceria penhoradamente.