Estranho Caminho (2023, Guto Parente) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Estranho Caminho (2023, Guto Parente) - 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Felipe Palmieri

 

Morte e espaço são ideias atreladas por natureza. Ruas, bairros ou regiões perigosas sempre estiveram e estarão presentes na consciência coletiva. O que os anos de pandemia concretizaram é uma linha direta entre o âmbito público, o contato humano e o fim da vida. Em gesto universal de sobrevivência, voltamo-nos para o interno, para o distanciamento, e para tudo que havia sido guardado debaixo das camas. Estranho Caminho (2023) é a perspectiva do cineasta Guto Parente sobre o que todos vivenciaram em 2020, mas principalmente sobre as dores afloradas por um ato comunitário de introspecção. 

 

O autor cearense, natural de Fortaleza, atrai os olhos da crítica e da audiência já há alguns anos, com filmes como Inferninho (2018, co-dirigido por Pedro Diógenes) e Clube dos Canibais (2018). Estranho Caminho não é diferente ― aclamado no Festival de Tribeca, em Nova Iorque, o filme recebeu quatro prêmios na competição de filmes internacionais, além de compor a seleção do Festival de San Sebastián, do Festival do Rio e da 47ª Mostra de São Paulo. Parente construiu um filme de mistério bastante íntimo e pessoal, explicitando mais do que nunca a relação entre diretor e obra. 

 

Conta-se a história de David (Lucas Limeira), um jovem cineasta que retorna a Fortaleza, após morar em Portugal por muitos anos, para apresentar seu primeiro longa-metragem. O filme começa já com uma montagem em Super-8 — que eventualmente se revela análoga ao tipo de cinema experimental realizado por David —, composta de texturas táteis e cores fortes, retratando imagens pouco discerníveis. Neste uso da película, e na maneira como esta é frequentemente atrelada ao passado, reside a primeira pista de uma temática essencial ao filme: a memória. 

 

Os reencontros de David com pessoas e lugares são permeados por lembranças dúbias, mencionadas por todos mas cobertas por um invólucro de desconfiança. Alia-se, desde o início, essa noção de memória à desconfiança e ao estranhamento, como se houvesse um espectro do passado perturbando a realidade de David. Tal suspeita eventualmente recebe forma, corpo e rosto na figura do pai de David, Geraldo (Carlos Francisco). Sonhos e visões surrealistas permeiam as primeiras noites do jovem diretor em Fortaleza, deixando claro que há algumas pontas soltas entre pai e filho que precisam ser resolvidas. 

 

Ao mesmo tempo, Estranho Caminho é um filme muito engraçado. Na chegada de David ao Brasil, situações típicas do início da pandemia de Covid-19 são concebidas de forma cômica, em um tom que, apesar de soar conflituoso, acaba se complementando muito bem no decorrer do filme — principalmente a partir da inserção de Carlos Francisco, cuja interpretação está entre os maiores destaques do longa. O agravamento da pandemia é, eventualmente, o que força o protagonista a procurar outro lugar para se hospedar e, mais importante ainda, o que o leva a tomar coragem para retomar contato com o pai. 

 

O ato de adentrar a casa do pai é o estopim para a explicitação da relação entre pandemia e memória que o filme propõe. Esse ato de buscar respostas no passado, guardado em um quarto empoeirado ou em álbuns de fotos, é personificado no restabelecimento do contato entre David e Geraldo. O distanciamento dessa relação entre pai e filho, que há muito se separaram, e a tentativa de buscar pontos de encontro entre suas vidas, são processos que revelam as muitas camadas de poeira que enterraram os sentimentos de ambos. 

 

O filme formaliza tais sentimentos na própria linguagem, com um predomínio de zooms, que afastam ou aproximam nosso ponto de vista da subjetividade do protagonista — ao mesmo tempo que causam estranhamento por sua artificialidade estilística —, sempre remetendo ao leve incômodo que borbulha sob a superfície de Estranho Caminho. Tal inconveniência é firmada através do próprio filme de David, uma obra experimental inteiramente sobre a ideia da morte, inserido em trechos como uma espécie de prelúdio às questões que assombram o protagonista.

 

Dramaturgicamente, a paternidade é o eixo motivador adotado, encontrando nas tentativas de reconexão a progressão natural para a narrativa. No entanto, é também nesse aspecto que residem algumas inconsistências do filme, principalmente pelos sentimentos profundamente distantes que cada segmento parece impelir. Por vezes, o posicionamento dos conflitos acaba transparecendo demais, em uma estrutura cujos momentos individuais são mais engajantes que a soma das partes. 

 

Apesar disso, e de toda a atormentação, Parente constrói um coração muito forte no filme através da gentileza, ao permitir que David tenha a chance de recuperar seu tempo perdido. Em meio às ilusões mnemônicas vividas pelo protagonista, a realidade da destruição causada pela pandemia é um plano de fundo progressivamente menos sutil, que apenas fortalece esse esforço de desenterrar o amor escondido debaixo de tanta poeira. 

 


Biografia:

Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima