Ervas Secas (2023, Nuri Bilge Ceylan) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Ervas Secas (2023, Nuri Bilge Ceylan) - 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Felipe Palmieri

 

Ervas Secas (2023) inicia em um campo nevado, branco ao ponto da divisão entre céu e terra se extinguir. Um homem é deixado no descampado por um van, e segue caminho por uma pequena trilha. O caminhar do personagem evidencia familiaridade com o local, mas, logo em seguida, o primeiro pensamento vocalizado por Samet (Deniz Celiloglu) sintetiza a contradição do protagonista: ele quer, mais que qualquer coisa, ir embora novamente. Subverte-se a ideia base sobre o forasteiro no cinema: o personagem que batalha para ser aceito em um local que não quer recebê-lo, aqui é um professor respeitado que deseja fugir.

 

Através dessa inversão de expectativas, o filme traz à tona o distanciamento entre o forasteiro e o nativo. O protagonista se mantém distante de tudo: da tradição local, do comprometimento amoroso, da militância política e da religião. Tudo para que sua fuga seja facilitada, para que sua estadia seja de fato passageira. A progressão do filme, no entanto, complexifica o desejo de seu protagonista ao nos permitir enxergá-lo por diferentes perspectivas. 

 

Talvez seja esta a palavra que melhor descreve o novo longa de Nuri Bilge Ceylan: perspectiva. Em suas mais de três horas de duração — extensão comum para o corpo de trabalho do diretor —,  transita-se de forma analítica tanto pela estratificação sócio-espacial turca, quanto pela estruturação da narrativa cinematográfica. Em uma cena emblemática, no início do filme, Samet, que é professor de artes, conversa com seus alunos sobre a perspectiva na pintura. Pouco importa, tematicamente, o desenrolar da cena. Mas a menção literal da palavra planta a semente do trabalho de direção a ser exercido. 

 

Em meio à representação do ritmo cotidiano desse povoado, o conflito eventualmente se revela.  Em um primeiro momento, entende-se que o filme se tornará um arquétipo de Homem Errado —  tal qual o clássico filme de Hitchcock, em que um homem é indiciado por crimes que não cometeu —, em um jogo de acusações e ausência de evidências. E, de certa forma, é isso que acontece. A força de Ervas Secas se revela na maneira como tal paradigma é trabalhado, não se apoiando na diegese narrativa, mas sim na manipulação da linguagem cinematográfica. 

 

A narrativa prossegue na construção de uma espécie de Efeito Rashomon diluído, no qual, sutilmente, adota-se o ponto de vista de diferentes personagens, permitindo-nos outros olhares sobre a mesma situação. A câmera de Ceylan tende à objetividade, evitando a simpatia subjetiva, ao construir um filme que acontece, de fato, na cabeça do espectador. Essa abordagem estética ressalta a performance externa, a opacidade inquebrável de um personagem questionado, sem que as respostas surjam de um âmbito particular.  

 

A nível moral, o compasso introduzido pelo filme está na personagem Nuray, interpretada por Merve Dizdar — performance vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Também professora, ela estabelece uma relação de amizade superficial com Samet, a qual eventualmente culmina na cena mais importante de Ervas Secas: um jantar entre os dois. O comportamento do protagonista é colocado em xeque, não pelas mesmas acusações que teceram a trama, mas pela dissecção da maneira como ele encara o mundo. Tem-se aqui o embate entre isenção e ação, entre passividade e agitação, no momento em que o filme se desnuda, e tudo se torna exposto.

 

Em uma quebra de linguagem magistral, que sucede a esse ápice emocional do filme, Ceylan frustra completamente a expectativa que gerou. Encerra-se a narrativa em corrupção, invertendo-se bruscamente toda a dinâmica previamente estabelecida. Na conclusão, perde-se o apreço pela objetividade, pois se sujeita a audiência ao pensamento subjetivo, à memória e à visão do protagonista. O que antes era dúbio, agora é corrupto, vil. Porém, mesmo na nova dinâmica que o trecho derradeiro do filme adota, nada é respondido de forma concreta. Na verdade, os fatos se tornam ainda mais ambíguos.    

 

No esvaziamento da relação entre o indivíduo e o mundo, Ervas Secas demonstra a força da manipulação cinematográfica na construção e desconstrução de seu protagonista, em uma relação dialética direta com a audiência. Negações sucessivas formam um longa-metragem que, apesar de plenamente narrativo, é abstrato e encontra o equilíbrio em momentos esparsos de solidez. A fuga arquitetada pelo protagonista de Ceylan é imagética, em uma síntese entre filme e mundo. Ocorre no ponto de encontro que fica em algum lugar entre a tela e os olhos de quem assiste.

 

Biografia:

Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima