Identidade e suas formas na Mostra Competitiva Brasil de Curtas | 31º Festival Mix Brasil 2023


53219238507_2e0ecfdca6_c.jpg

Identidade e suas formas na Mostra Competitiva Brasil de Curtas | 31º Festival Mix Brasil 2023

 

por Giuli Gobbato

Na Mostra Competitiva Brasil de Curtas do 31º Festival Mix Brasil 2023, as discussões sobre identidade ganham evidência em novos contextos e temáticas, mas ainda paralelas às questões de gênero e sexualidade.

 

A Mostra Competitiva Brasil de Curtas é a maior em catálogo do Festival Mix Brasil, que propõe valorizar a pluralidade das narrativas, principalmente de vozes LGBTQIA+ no cinema. Com a intenção de quebrar paradigmas e rejeitar estereótipos, diversas linhas de discussão foram exploradas pelos cineastas, e a curadoria parece ter dado ênfase à identidade, presente como tema principal em várias obras da Mostra. 

 

A pergunta “Quem eu sou, exatamente?”, ressoa em contextos incomuns a essa discussão no cinema — com filmes que incluem protagonistas idosos, conflitos em meio à religião e questionamentos atrelados ao sexo, ao passo em que, historicamente, a grande maioria das discussões sobre identidade se dão com protagonistas jovens em filmes coming-of-age. Alguns protagonistas já sabem a resposta a respeito de sua identidade, outros nem sabem que a procuram. E a relação desses com esse questionamento é explorada nos cinco curtas brasileiros a seguir, celebrados no Mix e internacionalmente.

 

53220481294_65d924b1fc_c.jpg

Ave Maria (2022, Pê Moreira) e Sereia (2023, Estevan de la Fuente) apresentam a discussão da identidade de gênero de uma forma mais familiar ao público, referente à aceitação ou rejeição dessa. No primeiro, é a aceitação que surge, através do luto vivenciado por Maria, uma mulher trans, quando volta para casa pela primeira vez após a perda do pai. O diretor traça um paralelo entre o luto vivido pela família em relação à perda do pai e o luto pelo passado da garota antes da transição. O relacionamento entre os parentes é discutido com respeito à morte paterna, mas podem também ser entendidas como sentimentos nutridos pela emancipação da identidade de Maria. Com planos lentos e predominantemente estáticos, a câmera nos convida a sermos pacientes com a família tal como Maria o é, abraçando as mudanças do ambiente conforme o possível.

 

53220622745_5218483068_c.jpg

Sereia nos insere numa casa cheia de rejeição, onde vivem o pequeno Lúcio e sua família. A criança é obcecada por sereias, quebrando estereótipos de gênero perpetuados pelo pai. A mãe é a única que declara respeito por sua identidade diferente, buscando evitar que Lúcio se desconecte ainda mais da realidade em que vivem. Mesmo quando Lúcio suprime seu verdadeiro eu, para se proteger, o canto da sereia está presente na trilha sonora de forma quase lúdica, reforçando a sua permanência. E do início ao fim, os movimentos de câmera se soltam lentamente, reiterando a lentidão do processo de libertação da identidade, impossível de se controlar quando já dominante, mesmo que o pai da criança não tenha aceitado sua identidade de gênero.

 

 

53220643684_9a62286f95_c.jpg

Quando alguém rejeita sua própria identidade, o testemunho daqueles ao redor é doloroso. No documentário Deus não deixa (2022, Marçal Vianna) conhecemos Miguel, um jovem fluminense que rejeitou sua identidade de gênero e orientação sexual “por escolha”, nas palavras dele, e buscou a Igreja Evangélica como forma de pertencimento social. Para ele, confiar em Cristo seria abdicar da responsabilidade de tomar decisões sozinho — por isso o título, que alude a essa abdicação da responsabilidade por si próprio. O filme responde à afirmação do título apresentando várias pessoas que aceitam a diversidade na Igreja e no trabalho, argumentando que Deus deixa, sim, ser quem se é. O documentário deixa clara a ausência de rejeição por parte de outras pessoas à sua verdadeira identidade; no máximo, condenam a atitude do rapaz em ir contra seu verdadeiro eu, em abraçar a confusão em vez da certeza e felicidade plena de ser ele mesmo. Até o ambiente da Igreja é apresentado de forma neutra, e só conhecemos a voz de Miguel e a sua leitura da situação. E é em meio à angústia de testemunhar a rejeição de um eu-próprio que conhecemos sua identidade abandonada, Mika Sapequinha, que retorna brevemente para uma aparição no final do filme, como ele deseja. O filme é concluído com uma tentativa de amenizar a culpa que ele sente, por meio de um ritual de limpeza do rapaz feito pelos colegas de Igreja.

 

53220111866_81b1383c3b_c.jpg

Em contraponto à rejeição de si próprio, Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo (2023, Renato Sircilli) apresenta um protagonista alheio à própria sexualidade. Faxineiro de um motel, Jorge tem 70 anos e é rodeado por prazer, o tempo todo — vindo de todos os lados, menos para si mesmo. Seu único pequeno prazer talvez seja o de gravar áudios dos hóspedes dos quartos, que ouve sozinho na cama ou vende para um conhecido, com o qual faz sexo sem obter prazer nenhum. Para quem o observa, é nítida a sua fome de prazer e conexão. Mas ele nem percebe o que quer, e perde o desejo próprio em meio aos prazeres alheios, exagerados e explícitos, muito bem apresentados numa direção de som alta e presente. 


O som diegético e muitas vezes off screen conta boa parte da história, ao mesmo tempo cômica e triste. A direção se aproveita da potência narrativa da dimensão sonora e foca em tornar aconchegante a solidão do homem, pois é cômodo não fazer perguntas, não pedir nada. Quando ele está sozinho, está entretido com alguma tarefa ou os sons de prazer (seja do celular ou do motel) estão ao seu redor e o acompanham. É só no final que o silêncio chega, quando Jorge recusa o prazer de terceiros de forma catártica e toma uma atitude ativa em nome de si.

 

53220485174_b3fbb1fe42_c.jpg

Por fim, temos um último conflito de identidades, dessa vez históricas e terceirizadas no discurso onisciente de quem deseja opinar. A identidade coletiva de Dom Pedro II é questionada no curta O Cavalo de Pedro (2023, Daniel Nolasco), que critica o mecanismo de imortalização de figuras reais da História. Nesse caso, se opõem as duas opiniões a respeito da vida pessoal de Dom Pedro II nas vozes de Pedro Américo (pintor do quadro Independência ou Morte, 1888) e Paulo Setúbal, autor do texto que é inspiração para o filme As Maluquices do Imperador (1927), a partir do qual se declara que Dom Pedro II não era heterossexual.

 

Logo são rebatidas as acusações sobre a sexualidade não heteronormativa do Imperador, alegando pouca importância do tópico em perfis históricos. Mas a discussão só foi invalidada porque diz respeito à a homossexualidade, como se a sexualidade de uma figura pública fosse irrelevante para a História, apenas por ser fora do padrão esperado — então o filme nos reforça essa contradição citando diversos textos históricos que apresentam Dom Pedro II como obcecado por mulheres. Paulo Setúbal também é o narrador principal, carregando o curta em um tom documental, ainda que debochado, já que o objetivo é criticar todas as narrativas falsas criadas, incluindo o quadro que abre o filme. Os letreiros indicam o século XIX, mas as imagens mostram celulares, relógios modernos, óculos escuros e Rio de Janeiro no século XXI — visitado por um Dom Pedro moderno e seu parceiro, um golpista que trabalha com apostas em cavalos, suposto amante do imperador nas horas vagas. E, assim, seguimos com uma direção e roteiro metalinguísticos, cuja montagem paralela, aliada a planos centralizados, deixa esses sérios personagens mais cômicos e permite o questionamento de uma ideia a respeito de uma figura nobre enraizada em um imaginário popular tão distante. 

 

Este é apenas um recorte possível do diverso catálogo da Mostra Competitiva Brasil de Curtas do 31º Festival Mix Brasil. O festival - e os cineastas participantes - propõe uma revisão do espaço de filmes LGBTQIA+ no cinema, não só como presença, mas também como forma e símbolo, como claro nestas cinco obras discutidas. Os curtas são exibidos de forma totalmente gratuita nas plataformas online Sesc Digital, Spcine Play, Itaucultural Play e CultSP Play; e também presencialmente em diversos espaços culturais em São Paulo, com destaque para o Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), onde o festival nasceu, em 1993. E a pluralidade de oferta dessas discussões nos convida a explorar diversos caminhos durante o festival, revisitando nós mesmos e o espaço ao nosso redor.

 

Biografia:

Giuli Gobbato é cineasta, comunicadora audiovisual e escritora. Formada em Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), sempre explorou o som de todas as formas, inclusive na música. Foi montadora e diretora de som em diversos curta-metragens, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Atualmente pesquisa a acessibilidade na comunicação.

 

– 

A cobertura do 31ª Festival Mix Brasil faz parte do programa Jovens Críticos, que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

 

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias, Marcio Miranda Perez e a toda equipe da Associação Cultural Mix Brasil por todo o apoio na cobertura do festival.

 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta e Assistente de Produção: e Rayane Lima