Orlando, Minha Biografia Política (2023, Paul B. Preciado) | 31º Festival MixBrasil

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Orlando, Minha Biografia Política (2023, Paul B. Preciado) | 31º Festival MixBrasil

Por Lucas Mazuquieri Reis

No ensaio biográfico que marca sua estreia como cineasta, o filósofo Paul B. Preciado reune 26 pessoas trans e não-binárias de diferentes gerações para reimaginar coletivamente Orlando, o clássico feminista de Virginia Woolf, como manifesto político para uma poética da existência queer. Vencedor do Prêmio Especial do Júri no 73º Festival de Berlim.

Há mais de 20 anos, a obra do filósofo e curador de arte espanhol Paul B. Preciado vem contribuindo profundamente para uma transformação nas formas de se pensar as políticas de gênero e as formas do texto filosófico. Os escritos de Preciado são marcados por uma confissão da corporeidade daquele que escreve, que se mistura a uma densa reflexão teórica e um olhar acurado para as transformações políticas e culturais do mundo vivido, apresentado a partir de um senso de humor ácido. 

 

Esse procedimento atravessa seu trabalho, dos exercícios de “dildotectonia” do Manifesto Contrassexual (2000) à provocante teratologia da psicanálise em Eu sou o monstro que vos fala (2020), passando pelo ensaio-diário Testo Junkie (2008) — um texto tocante e corrosivo que registra as reflexões do autor sobre a era “farmacopornográfica”, mediante à morte de um amigo e às injeções diárias de testosterona que modificavam o seu corpo. O primeiro esforço de Preciado como cineasta, Orlando, minha autobiografia política (2023), vem demonstrar como as mesmas qualidades que marcam a escritura verbal do autor podem ser traduzidas pela escritura espaço-temporal do cinema. 

 

O filme reúne 26 pessoas trans e não-binárias, de idades que variam entre 8 e 70 anos, para reimaginar coletivamente o romance Orlando: uma biografia (1928), de Virginia Woolf — clássico da literatura feminista, que narra a vida de um poeta que misteriosamente flui do gênero masculino para o feminino em plena era elizabetana, vivendo por mais de 300 anos e atravessando as diferenças entre esses dois pólos do regime binário de identidade de gênero.

 

Em textos escritos ao longo de seu processo de transição de gênero, Preciado mencionava o romance de Woolf como uma construção narrativa que fora fundamental no processo de "fabricação" que ele vivera nos últimos anos — inclusive, na abertura do longa-metragem, o cineasta narra que não poderia escrever sua própria biografia, pois ela já fora escrita em 1928. Há, portanto, uma conexão íntima entre a biografia daquela personagem ficcional, que viaja entre tempos históricos e políticas de gênero, e esta biografia-manifesto de personagens que sustentaram a mesma travessia na realidade extra-fílmica. Por isso, a introdução de cada um dos 26 atores-personagens é feita do mesmo modo: vestindo uma gorgeira, cada um olha para a câmera dizendo “meu nome é… e neste filme eu serei o Orlando de Virginia Woolf”. Pela polifonia de vozes, o Eu se apresenta desde o início como um Outro e a obra aponta para uma história queer coletiva, que atravessa os polos individuais da existência de cada um. 

 

Depoimentos, encenações ficcionais e imagens de arquivo são costurados pela narração off do filósofo-cineasta, que tece comentários sobre sua própria vida e a política de seu tempo a partir de materiais heterogêneos, à guisa das experimentações ensaísticas de Chris Marker e Jean-Luc Godard. A estruturação do filme segue a ordem dos capítulos do romance original, cujas situações narrativas — como a paixão de Orlando pela andrógina Sasha, a viagem à Constantinopla onde ocorre sua transição de gênero, o processo judicial da protagonista pelo direito à sua propriedade — servem como motivos temáticos para reflexões sobre diferentes aspectos da experiência LGBTQIA+. Se destacam aí o amor entre pessoas queer, as relações entre o colonialismo e as políticas de gênero, as limitações impostas pelo sistema legal sobre corpos trans, debates em que os testemunhos dos atores se misturam textualmente ao livro de Virginia Woolf.

 

A narração off é estruturada como uma carta aberta de Preciado à escritora, que é questionada, post mortem, sobre as tendências coloniais e racistas que marcam seu próprio trabalho, e simultaneamente é considerada ela própria uma figura queer, violentamente interpelada pelo discurso psiquiátrico de seu tempo. Os sentidos do texto e da vida de Woolf não são considerados objetos já acabados, materiais prontos para a adaptação cinematográfica, mas processos abertos à ressignificação no decurso da arqueologia de sujeitos e saberes que impulsiona o filme.

 

Preciado desenvolve, assim, uma reflexão sobre a ficção inerente ao ato de relatar o acontecimento vivido e as dificuldades de biografar a si e ao outro, sendo este o sentido da biografia política que dá subtítulo ao filme: é impossível, eticamente, contar a própria vida sem recorrer às experiências de uma alteridade. Trata-se, portanto, de uma obra híbrida ou, melhor dizendo, não-binária, que sustenta a habitação de limiares — entre o eu e o outro, o romance e a biografia, a experiência pessoal e a memória coletiva, o impulso documental e a ficção política — e retira sua potência dessa indefinição, gerando fissuras que possibilitam uma criação artística e política desviante. 

 

Em diferentes momentos, o filme adere a um modo de operação opaco, que assume sua própria construção discursiva e revela os diferentes procedimentos cinematográficos de encenação, enquadramento e montagem que produzem as imagens que vemos na tela — belamente sintetizado na sequência em que vemos se construir para as câmeras, com matte paintings e máquinas de chuva, o inverno artificial onde Orlando conheceria seu primeiro amor. Este desvelamento do aparato fílmico como dispositivo discursivo encarna uma ideia central do filme: a experiência queer como poética de si, um ato da criação da própria vida como obra de arte que pode reinventar como poesia a linguagem do mundo, deslocando e rompendo com sistemas de poder estabelecidos. Como uma vez fizera a literatura modernista de Woolf.

 

A noção de transexualidade que atravessa o filme não se resume à definição patologizante de “incongruência de gênero”, imposta pelo sistema de poder médico-legal. Quando a obra recria o início do romance, descrevendo a juventude do protagonista, ela encena um encontro de pessoas trans no consultório psiquiátrico que lhes dará o diagnóstico necessário para iniciar a hormonização. A sequência ironiza a busca do médico pela angústia do paciente “doente”, criticando a noção clínica de disforia como decalagem entre o sexo designado para o sujeito ao nascer e a identidade de gênero fixa que é vivenciada na sua experiência cotidiana. 

 

Ser trans, para Preciado, implica no trânsito entre regimes de desejo, travessia que se dá pela plasticidade sexual e pelas técnicas de si com as quais os sujeitos se modificam à revelia da ordem imposta. O cinema é uma das tecnologias que podem atuar nessa transformação — consultórios médicos e tribunais, espaços onde opera a repressão dos corpos, são reconvertidos, no filme, em lugares onde os atores-personagens festejam a potência de suas inadequações. 

 

Orlando é, assim, um elogio da inadequação política às formas normativas de subjetivação, celebração da resistência à reificação da vida cotidiana e à violência contra si que ela implica. A experiência queer não é considerada como uma essência do ser, fixidez de identidade, mas como uma ética, um gesto de coragem política no qual pessoas singulares escolhem sustentar a economia de seus desejos, apesar da dor que pode acompanhar o ato de se dizer a verdade sobre si. 

 

Revertendo o dispositivo biopolítico de saber sobre os corpos classificados como “anormais”, o filme constrói seus argumentos  em conjunto a essas subjetividades desviantes. O triunfo da obra reside justamente no senso de humor que a atravessa e na abertura para a experiência do Outro, reconhecido em sua alteridade radical — não como encarnação de uma ideia pré-concebida, nem como ícone que sintetiza uma experiência coletiva, mas como um polo experiencial e singular, uma vida imanente que está conectada a outras existências contemporâneas, tenham estas vindo antes ou depois. 

 

É significativo que, na sequência final do filme, o filósofo-cineasta escolha encadear depoimentos de pessoas trans de gerações mais velhas, que contam de suas lutas pelo reconhecimento político de suas existências, com as brincadeiras de crianças queer, que jogam livremente com a presença do aparato de filmagem. Aquelas participaram eticamente da construção de uma potência política que pode, hoje, ser vivenciada por estas como poética da existência.

 

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Biografia: Lucas Mazuquieri Reis é pesquisador de cinema e cultura visual, formado em Comunicação Social - Midialogia pela UNICAMP. Seu trabalho artístico e acadêmico é centrado em reflexões sobre os trabalhos da memória e os processos de subjetivação que se dão a ver nas imagens. É co-diretor do vídeo-ensaio Novas Vistas (IMS/UNICAMP, 2023).

 

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A cobertura do 31ª Festival Mix Brasil faz parte do programa Jovens Críticos, que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias, Marcio Miranda Perez e a toda equipe da Associação Cultural Mix Brasil por todo o apoio na cobertura do festival.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta e Assistente de Produção: e Rayane Lima