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O livro das letras luminosas: Humberto Mauro e o Instituto Nacional de Cinema Educativo

Humberto Mauro participou da primeira experiência nacional de educação através da imagem. Dirigiu 357 filmes curtos do Instituto Nacional de Cinema Educativo, órgão criado em 1936 por Edgar Roquette Pinto. Nessa "escola dos que não tiveram escola", segundo seu idealizador, Mauro filmou descobertas científicas, biografias de heróis da nação, as riquezas da natureza e da cultura e ensinamentos técnicos, entre outros assuntos.

Este texto analisa a criação do INCE, sua relação com a instituição de uma censura unificada em 1932 desaguando por fim na criação de um órgão autônomo que se encarrega da tarefa de dar aos brasileiros o que deviam ver.

ENQUADRANDO O FILME NATURAL: A CENSURA E O CINEMA EDUCATIVO

Desde o seu surgimento no Brasil, o cinema chamou a atenção de políticos, religiosos, militares, médicos e educadores que em seus escritos falam com fascínio deste instrumento capaz de ver e aproximar o desconhecido, ensinando qualquer coisa sem que se perceba, e por essa possibilidade desavisada, mostrando o que não se espera que mostre, gerando temores profundos de ordem moral, sobretudo em relação as crianças.

Na realidade, até 1932, quando se institui a censura nacional, muitas das opiniões sobre o cinema passam pelo viés da moral. Impõe-se um controle que impeça a divulgação indiscriminada de mensagens, sejam elas perniciosas às crianças, ou à imagem do país, e por outro lado medidas que incentivem a produção e exibição de um "bom" cinema nacional, como pleiteavam, Adhemar Gonzaga ou intelectuais e educadores como Roquette-Pinto e Jonathas Serrano, favoráveis à produção nacional de filmes educativos como parte de uma estratégia de transformação cultural e modernização de forma massiva e que atingisse eficazmente os iletrados. Nessa mesma linha, em 1935 Getúlio Vargas dirá que o cinema é "o livro das imagens luminosas"
(1).

A edição do decreto 21.240, em 1932 vem ao encontro desta preocupação: incentiva a exibição de filmes educativos, a censura antes local e policial é unificada e são criados mecanismos de incentivo à produção cinematográfica com a redução das taxas alfandegárias sobre o filme virgem.

Essas duas posturas: a preocupação com a qualidade e o teor dos filmes e a necessidade de produzir obras adequadas, como insiste Canuto Mendes de Almeida
(2), onde estivessem refletidos de maneira honesta, moral e cívica a realidade nacional explicam o movimento de reivindicações que une educadores e médicos legistas a produtores de cinema nacional, estrangeiro e representantes do Ministério da Educação e Saúde.

A preocupação com estas posturas já aparecia em "Cinema Escolar", de Venerando da Graça, inspetor escolar do Distrito Federal, de 1916 onde o autor realiza "4 fitas pedagógicas" com os próprios alunos, onde transmite emoções "puras e sãs''. Iniciativas semelhantes onde que entende o cinema educativo como um cinema feito na escola, para a escola e sobre a escola, se repetiram também em São Paulo a partir de 1931
(3).

Portanto, pelas incipientes ações de produção de filmes educativos que vão se realizando, percebemos que o viés da censura reclamado por educadores e intelectuais está associado à criação do que virá a ser o cinema educativo nacional. Por outro lado, nesse Decreto que nacionaliza a censura, o governo provisório vai também "dar favores aos importadores e aos produtores de filmes brasileiros"
(4).O que explica essa conjunção de interesses?

Desde o final dos anos 20 os produtores cinematográficos vinham tentando não só conseguir o reconhecimento de sua atividade perante o público e o Estado, mas sobretudo definir o como seria o cinema nacional a que aspiravam. Ao lado disso, conviviam mal com a ininterrupta e lucrativa atividade dos documentais, ditos de cavação. Produtores como Adhemar Gonzaga acreditavam que muitos desses filmes que mostravam índios ou o interior primitivo denegriam a imagem do Brasil, que seria moderna, desenvolvida e urbana.

Adhemar Gonzaga estava no centro de um grupo de diretores que de pontos diferentes do país vinha realizando um incipiente mas bem aceito cinema regional e buscavam reconhecimento de sua atividade, e o espaço de exibição nos cinemas, controlado inteiramente pela produção e influência das companhias estrangeiras, já nessa época em sua maioria americanas. Assim, discutia-se a natureza da industria cinematográfica a surgir: se deveria se dedicar aos filmes naturais, ou aos posados, filmes de enredo. Participantes ativos dessa discussão, educadores e intelectuais querem aproveitar o cinema como instrumento de modernização, controlando as mensagens veiculadas, e na falta delas, produzindo aquilo que entendiam, deveria ser visto.

Interessava aos produtores, por seu lado, incentivar a exibição de filmes e facilidades de produção, como o barateamento do filme virgem, sobre o qual incidiam pesadas taxas de importação. Por outro lado, como se viam como verdadeiros representantes da nacionalidade - porque entre os cavadores havia muitos imigrantes - bradavam pelo depuramento do bom cinema nacional, eliminando as cavações.

É portanto pelo viés da classificação da qualidade e dos propósitos sinceramente nacionais que se pode entender a junção de demandas de incentivo de produtores com a demanda de censura. E é aí que tem o seu papel a censura cultural
(5). Ela é que vai dar a chancela de exibição a qualquer filme, e sobretudo aos curtas nacionais, que serão produzidos para exibição obrigatória em todo o território nacional. É aí que encontra o seu papel como censor o antropólogo Edgard Roquette-Pinto (futuro diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo), na medida em que nesse papel, acredita ele, e acreditam os educadores, poderia participar de forma mais ativa da seleção do que era apresentado aos brasileiros, influindo em sua formação e regeneração.

Apesar do incentivo à produção privada de filmes educativos através do decreto 21.240 de 1932, em 1936 o Estado cria o Instituto Nacional de Cinema Educativo e passa a produzir diretamente os filmes que julga necessários para suas platéias: transferia a si a atividade desordenada dos cavadores, mesmo que o trabalho desses persistisse. Humberto Mauro que começara sua carreira negando o valor do cinema documental, em meados dos anos 30, com as dificuldades das produções ficcionais, adere ao projeto educativo sob controle do Estado. Caberá a ele, junto com Roquette Pinto, transformar aspirações e utopias salvacionistas que buscavam modelar um povo tido como informe, em cinema.

Natureza do cinema educativo e suas transformações

O surgimento do Instituto Nacional de Cinema Educativo vem da necessidade de controlar as imagens que se produziam sobre o país, instrumentalizando-as para as mudanças sociais, econômicas e políticas que viriam, dirigidas por aqueles que detinham o poder e o saber, e definiriam a sua direção. A instrumentalização política do cinema é parte instrínseca de suas possibilidades. Isso já é visível nos filmes soviéticos dos anos 20, e nos anos 30, com o fim do liberalismo em grande parte dos países ocidentais, o formato educativo se consolida na Itália e na Alemanha, e também em países como o Brasil.

Entretanto, nos países europeus, com a iminência da guerra, o cinema educativo foi absorvido pela propaganda No Brasil, se houve essa tensão muito clara, nos momentos em que Lourival Fontes tentou encampar o INCE ao DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda
(6)- , a encampação não chegou a se consolidar: o papel modelador da educação aliado às desconfianças de Vargas em relação às pretensões de Lourival Fontes, permitiram resguardar a autonomia do INCE.

OS FILMES DE HUMBERTO MAURO NO INCE

Mauro realizou 357 filmes no INCE entre 1936 e 1964 . Deste material, nota-se dois momentos distintos :

- um primeiro período entre 1936 e 1947
(7)que coincide basicamente com o Estado Novo e a influência de Roquette Pinto na definição dos temas e no papel do cinema na educação. Graças a essa crença e à influência do diretor junto ao regime, são realizados 239 filmes;
- um segundo período entre 1947, momento da aposentadoria de Roquette Pinto até 1964 ano do último filme de Mauro no INCE, onde as premissas educacionais se esgarçam e o diretor tem maior autonomia. O esvaziamento da instituição é visível na diminuição do número de filmes, 118, e na mudança de ênfase nas temáticas. O caráter pedagógico é substituído pela preocupação documental.

1º INCE - 1936/1947

Dos 239 filmes realizados neste período, predominam os temas de caráter científico: são 95 filmes divididos entre temas como 'divulgação técnica e científica' (40) Alvancas e Magnetismo por exemplo; ´pesquisa científica nacional' (32) O Puraquê; 'preventivo- sanitário' (23) O Combate à lepra no Brasil
(8). A ciência permeia as 'riquezas naturais do Brasil'(15), onde a Vitória Régia, o João de Barro, ou Peixes do Rio de Janeiro são descritos e exaltados em sua configuração morfológica única. A recorrência desses assuntos monstra o empenho com a atualização e modernização técnica e científica, procurando ressaltar a contribuição e as descobertas dos cientistas brasileiros, as soluções técnicas engenhosas ou a excepcionalidade de espécies da flora ou fauna - demonstrações da natureza pródiga que conforma o território nacional. Demonstram ainda o peso da influência positivista na conformação do imaginário do período e do INCE em particular.

Se a natureza brasileira é pródiga, os homens de quem se fala são invariavelmente 'Vultos' (12 filmes): os Bandeirantes, Os Inconfidentes, Barão do Rio Branco, escritores, músicos, ou pensadores como Machado de Assis, Carlos Gomes e Euclides da Cunha. Heróis cultos, dados como responsáveis pela grandeza espiritual ou territorial do país.

Cultura Popular e Folclore', tomados sob um viés erudito, também se convertem em filmes (11). Ponteio (1941) mostra a apreensão erudita de temas musicais populares do Nordeste pelo maestro Heckel Tavares. A encenação de Mauro é clara a esse respeito: o maestro aparece fumando cachimbo, trajando botas e bombacha, a observar com atenção um violeiro com seu chinelo e seu chapéu de couro. Em seguida, Tavares transforma os sons da viola numa pauta e aparece depois vestido de fraque, regendo a orquestra, tendo como fundo monumental o órgão do palco da Escola Nacional de Música. A cultura popular de "raiz" se legitima pela apreensão erudita. O pitoresco e o regional saem do foco local e ganham, na tradução erudita, os foros de representação nacional.

Se outros assuntos como a 'Educação Física' (8 filmes) também mobilizaram as câmeras do INCE, foi grande o número de filmes 'Oficiais' (23) sobre eventos cívicos e políticos, realizados em sua maioria entre 1936 e 1940, e interrompidos por determinação do DIP de Lourival Fontes.

Os filmes são pensados para o aprendizado, mas não como extensão estruturada de um programa que as escolas cumpriam ou como material didático e pedagógico, e sim para uma audiência maior, que variava de filme a filme, já que, o Instituto procurava suprir desde carências básicas de estudantes e analfabetos adultos até a documentação da pesquisa de ponta. Não raro eram realizados filmes 'populares", numa primeira versão em 16 mm para escolas, mas destinados também "aos centros operários, agremiações esportivas e sociedades culturais"
(9), posteriormente copiados em 35mm para exibição nos cinemas, como complemento nacional: Dia da Pátria, Lição de Taxidermia, Vacina contra Raiva, O Despertar da Redentora, Céu do Brasil, Os Inconfidentes, Bandeirantes; ou os filmes propriamente educativos: Laboratório de Física, Músculos Superficiais do Corpo Humano, Balanças, Alavancas, Morfogênse das Bactérias, Museu Imperial de Petrópolis, O Papel, Visitando São Paulo, Coreografia Brasileira entre outros. Não se pode dizer, portanto, que seu caráter seja estritamente educativo.

A estruturação dos filmes obedecia quase sempre à mesma continuidade: a introdução; o desenvolvimento e a conclusão pontuados por música clássica. Os filmes se iniciam com uma narração didática de cunho histórico, ilustrada com mapas, gravuras, bustos, monumentos dos personagens em pauta: inventores ou benfeitores que introduziram aquilo de que se fala. A locução é feita muitas vezes por Roquette-Pinto, num tom claro, técnico e grandiloquente. A imagem ilustra o texto. O desenvolvimento posterior do tema fica a cargo de Mauro. Na conclusão de muitos dos filmes a música e a narração enunciam esperanças de aprendizado e mudanças, com o qual vêm rimar bandeiras, nuvens radiosas, crianças que sorriem. Mesmo num filme técnico, como O Telégrafo, no final mostra-se o aparelho em primeiríssimo plano, de onde surgem as letras que vão compondo a mensagem: "O B R A S I L E S P E R A QUE C A D A U M C U M P RA O S EU D E V E R!"

Do ponto de vista da encenação, todos os filmes, todos, enfocam prioritariamente o assunto em apreço, sem que a presença do técnico ou do professor se faça notar. O máximo que se vê são mãos, braços, ou o corpo da pessoa que conduz a demonstração, nunca o seu rosto.

O sujeito dos filmes é a Alavanca, a Balança, o sapo e seus músculos, que adquirem vida própria, autônoma em Músculos Superficiais do Homem. Não há interesse no gesto de quem faz o experimento ou a demonstração, mas o aporte científico em si. Se isso por um lado reitera a intervenção do artifício cinematográfico, por outro provoca o efeito contrário. Tudo emana da imagem, como se a filmagem e seus responsáveis não existissem. O mundo da ciência se naturaliza uma vez mais por esse efeito de transparência criado pela câmera.

Vejamos alguns exemplo de encenação de temáticas exemplares:

Filmes oficiais

Dia da Pátria mostra o desfile de 7 de Setembro de 1936 na Praça Paris, com a presença do Presidente da República e autoridades. O desfile foi filmado em panorâmica e planos gerais, com a câmera parada na lateral, mostrando a passagem da tropa de soldados, e os populares que assistem. É um registro genérico do evento, sem uma idéia preconcebida de encenação, como se o objeto filmado - a parada militar - se esgotasse nas imagens reproduzidas conforme aconteciam.

A filmagem feita com uma só câmera restringe o registro de diferentes ângulos - o público e o palanque, o público e o desfile. O ponto de vista da câmera é o de um espectador postado na calçada: ela registra, mas não constrói o acontecimento, recusando o contracampo. O presidente da República é uma figura distante, vista no palanque oficial com seu fraque e cartola, em meio a outras autoridades. A imagem não mostra adesão do público. A câmera e o público são espectadores. A câmera, seguramente, um espectador indiferente.

O patriotismo e a identificação entre a Nação e o presidente, que deveria vir dessas grandes comemorações, não mobilizam Humberto Mauro, nem sugerem uma forma particular de encenação, como se pode ver nos filmes do DIP, cujas cenas de abertura fundiam o mapa ou a bandeira nacional com a imagem de Getúlio Vargas.

Nesse sentido, podemos contrapor Céu do Brasil, de 1936, filme de "ciências naturais" que, ao contrário de Dia da Pátria, é muito mais vincado pela noção de pátria. Ao mostrar a posição das estrelas no céu, se fala do lugar do Brasil no universo, mas também de um símbolo nacional inscrito na bandeira, cuja imagem, acompanhada do Hino à Bandeira, encerra um filme cujo tema central é a astronomia.

Manifestações desse tipo são recorrentes em muitos outros filmes, mas certamente estava ausente deste que era, por definição, o seu lugar. Mauro não está nas paradas como um ideólogo. A Pátria estava em outro lugar.

A natureza portentosa

É a ciência que confere valor à natureza nos filmes do INCE. O foco está voltado para seus aspectos utilitários, esclarecedores e de qualidades excepcionais. Conhecida e submetida pelo homem. Elemento de decifração e caução desse patrimônio.

Lagoa Santa, de 1940, é dedicado ao naturalista dinamarquês Peter Lund, que em meados do século XIX, liderou a exploração de aproximadamente 800 cavernas calcárias em Minas Gerais. Na Lapa do Sumidouro descobriu o crânio do Homem da Lagoa Santa, considerado então o mais antigo ancestral do homem americano.

Há inúmeros registros e tons dentro do filme, que se abre com a canção popular preferida de Lund, "um sábio romântico". Ao ilustrar a música com aspectos das regiões percorridas por Lund, Mauro produziu sua primeira Brasiliana
(10)"avant la lettre": árvores, rochas, um lago com a paisagem refletida, mulheres lavando roupa e meninos pescando, o casario, a igreja, animais pastando, um carro de bois. A biografia de Lund, na locução de Roquette-Pinto, interrompe a observação meditativa da paisagem. O retrato tirado de livro e imagens do monumento funerário compõem o personagem histórico.

A seguir, a câmera se detém em panorâmica e planos gerais sobre exteriores de várias cavernas, até que câmera penetra no seu interior. A imagem composta por Mauro é sintomática: vista de dentro para fora, a abertura da caverna tem uma semelhança que nada leva a supor ocasional com o órgão sexual feminino. Na caverna, em meio ao magma fecundo, estão as estalactites e estalagmites. As imagens escultóricas sombreadas, que fazem pensar na imagem arquetípica ameaçadora de uma vagina dentada, conduzem o espectador a uma viagem no tempo e no espaço: na imaginação das origem. As sombras vão sendo iluminadas por pequenos fachos de luz, cujo progressivo aparecimento é cadenciado pela música de Prokofieff e fogos de artifício levados por vários figurantes. A cena torna-se cada vez mais luminosa e movimentada, até se encerrar subitamente, após o clímax marcado pela música.

Nesses poucos minutos, Mauro impõe ao filme um andamento e idéias que parecem pertencer exclusivamente a ele, já que retira o filme do seu registro especificamente educativo e/ou informativo. A idéia que as imagens acrescentam ao pensamento de Roquette-Pinto é a de uma cópula entre claro e escuro, luz e sombra. O homem da Lagoa Santa, o primeiro homem, já não é apenas um fóssil, mas matéria viva, irrupção, nascimento da própria natureza e do próprio homem, ou antes, surgimento do homem a partir de um encontro entre luz e treva.

Dessa alegoria extremamente inventiva - e especificamente cinematográfica -, que arrebata do interior da terra o momento primeiro, a partir de um artifício de iluminação da caverna, passamos à imagem do crânio do homem da Lagoa Santa e fósseis de diferentes animais em primeiríssimo plano, para que Roquette-Pinto explique suas características.

A fachada e a sala do Museu Nacional dedicada ao paleontólogo encerram o filme. Lá estão devidamente depositadas e monumentalizados os sinais da origem. Poucas imagens sintetizam tão bem os registros e imaginários diversos de Mauro e Roquette-Pinto como as alternâncias de tom, de tratamento e de preocupações que se observam nesse filme. O homem da Lagoa Santa é a marca da origem, e a caverna o seu ventre. Das trevas da caverna prenhe de história passamos à luz do exterior, onde o conhecimento se consagra e conserva. Do fóssil na caverna até o Museu, a história é detida e esquadrinhada: a descoberta de Lund atribui ao Novo Continente uma pré-história e coloca-o, portanto, em pé de igualdade com o Velho Continente. Da mesma forma que as estrelas de "O Céu do Brasil", o fóssil paleo-americano inscreve a nação na ordem da história universal.

Para um país que em 1930 pretendia estar se reinventando, o simbolismo dessa inscrição é crucial: não somos apenas uma beirada do Ocidente. A natureza garante nossa originalidade e nossa especificidade. Temos o céu e a Vitória Régia, o peixe elétrico. o homem primitivo. Temos também uma pré-história: filme após filme, o INCE organiza uma ordem natural, uma cosmogonia da qual o Brasil emerge como nação cuja independência e grandeza seja incontestável. O passado pré-histórico cauciona o presente, e entre um e outro abre-se um fosso em que pousam os grandes homens e seus feitos, a natureza exuberante e a eternidade do céu. Apenas a história - lugar dos conflitos humanos - não tem lugar nessa empreitada. Do Cabral de "O Descobrimento do Brasil" até 1940, o que se desenha é a imagem de um país naturalmente harmônico e equilibrado no cosmos.

O Despertar da Redentora, de 1942, consagra a visão caritativa sobre a escravidão, comum no período, agregando à redenção um despertar. Maria Eugênia Celso, a autora do conto em que se baseia essa narrativa, institui a origem para a ação que se configura em 1888: a Abolição é o cumprimento de um pacto entre Isabel e Deus ocorrido em 1862, quando a princesa tinha 16 anos, destinado a pôr fim àquela "coisa horrorosa" que era a escravidão. Como Jesus e Moisés, ela é escolhida pela providência.

O gesto inspirado de Isabel é a chance de mostrar a monarquia, a partir do Museu Imperial de Petrópolis. A escritora, que apresenta o filme, informa que as imagens respeitaram com fidelidade a vida e os modos daquela época. A câmera percorre lentamente a sala do trono, o quadro da coroação de D. Pedro II, e se detém cerimoniosamente no quarto do Imperador, focalizando demoradamente a sua cama. A câmera vai saindo lentamente em plano médio de recuo, como a reproduzir o próprio caminho de um espectador diante das majestades que ali estariam. A câmera só muda de ângulo quando enfoca um crucifixo e abaixo dela a cama de Isabel, que em fusão surge magicamente na imagem. Entramos no mundo do faz de conta da encenação.

A princesa (Lídia Mattos) é graciosa e tem ares de levada e muito curiosa. Junto com a irmã Leopoldina, prepara-se para uma aventura, procurando sair sem chamar a atenção das amas que viam distraidamente um livro com gravuras de Rugendas. A câmera mostra no livro a imagem de um engenho de açúcar e um carro de bois, onde se vê escravos trabalhando.

No bosque as irmãs desfrutam de liberdade. Observam a natureza: Isabel mostra para a irmã a reação de uma planta carnívora que se fecha ao toque de um graveto. Admiram-se com a altura e a beleza de uma árvore, até que um barulho estranho interrompe a expedição. Em seu passeio, as princesas não se detêm na beleza das flores, como seria natural em moças. Isabel é caracterizada como uma observadora atenta da natureza e suas características excepcionais, com as quais se maravilha. Em meio a essa expedição das jovens naturalistas, surge a cativa perdida, e Isabel se enternece com sua triste história, contada por meio de inserções onde vemos a sua fuga e a mãe sendo vendida e separada da filha, história cantada por uma canção de Heckel Tavares em tom lacrimoso, que exila os negros à condição de piedade, exaltando o seu sofrimento, como se esse fosse resultado não de um sistema social implantado e vigente por séculos, mas uma maldade com "aquela pobre gente" a quem somos tão devedores.

Isabel espanta-se com o relato da fome e dos castigos, como se na redoma em que vivesse a escravidão não existisse. Mas eis que surge o feitor e a senhora que reclamam à moça desconhecida a devolução de sua propriedade. São interrompidos pela ama de Isabel aflita que procurava pelas princesas e que arrogante avisa que aquela era a filha de sua alteza imperial. Isabel intercede em favor da menina, quer levá-la ao pai. Diante da recusa da proprietária, a ama lembra-lhe que D. Pedro II é a "justiça personificada" e pagará à senhora a indenização devida. A mulher cede e a menina é levada ao palácio no colo do feitor.

Diante da cena tocante que presenciara, Isabel, cercada pelas acompanhantes e rodeada pelas árvores altas que formam em torno dela algo que se aparenta a um verdadeiro templo natural, dirige o seu olhar para o alto, e pede a Deus que lhe dê o poder de fazer algo por 'aquela gente'. Na cena seguinte, a mão de uma mulher assina a Lei Áurea, e do seu texto saem imagens dos negros arrancando seus grilhões, troncos e correntes. Os escravos estavam enfim, livres daqueles horríveis sofrimentos que seres malvados como os feitores lhes impunham.

É com essa fábula providencial que o INCE explica o fim da escravidão e o novo estatuto dos negros. A escravidão é a ausência de liberdade, os castigos, filhos separados de seus pais, mas não existe a exploração do trabalho, salvo se a sua referência estiver contida na rápida imagem de Rugendas. A escravidão é sobretudo uma maldade, maldade que a jovem princesa parecia desconhecer, mas que jura corrigir. Afora esse viés providencial e caritativo, de que o próprio trabalho dos negros é excluído, há ainda outro aspecto fabulatório. O imperador pagaria uma indenização. Ora, a indenização foi um dos principais pontos que dificultaram a abolição e dividiram os próprios abolicionistas.

Diante da predestinação de Isabel, todos os embates da escravidão e da abolição se dissolvem. A encenação do filme, que trabalha todo o tempo sobre as linhas verticais das árvores, com inúmeras plongées e contra-plongées, cria a imagem de elevação espiritual que contamina e desperta Isabel, da qual o contato com a natureza é parte fundamental. É ali que se manifestam os sinais da transcendência, a elevação divina, a anunciação. No filme, a abolição é um fenômeno restrito à consciência moral, e não da ordem de um processo histórico, por isso mesmo o gesto redentor redime todas as culpas. Ali, a libertação dos escravos é uma tarefa individual, inspirada por Deus, da qual os próprios negros estão ausentes como agentes. Nesse sentido, o filme não se distingue da própria idéia que norteou a criação do feriado de 13 de Maio: é uma homenagem à Princesa Isabel e apenas a ela.

O Despertar subverte e harmoniza os conflitos da Abolição. O Império é uma instância acima do bem e do mal, da mesma forma que a escravidão é uma injustiça, e não um sistema que permeia e organiza a sociedade brasileira por séculos. Da mesma forma, o seu fim se efetivará pelas mesmas circunstâncias mágicas. É necessário observar que nesse filme não há uma introdução histórica, como na grande maioria deles. A parte não ficcional ficou apenas por conta da caracterização da vida no palácio como se a abolição da escravatura fosse um assunto do âmbito exclusivo da Princesa. Na verdade, aqui a fabulação substitui a história, aos fatos da Abolição superpõe-se uma ficção.

A fabulação transporta os escravos para o âmbito da piedade cristã ao qual ficou indelevelmente associada a figura da princesa que com seu gesto redime não apenas os escravos, mas sobretudo a culpa de todos os outros brasileiros, no passado e no presente. Os manuais de História do Brasil do período, como o de Otávio Tarquinio de Sousa ou de Jonathas Serrano no entanto já tratavam a questão de forma distinta. Portanto, a recorrência do viés redentor parece mais necessário à imagem do Estado que comemorava o fim da escravidão na figura da Princesa ou na Erma de Castro Alves
(11). Pelo acolhimento piedoso se insere o negro pelas portas do fundo da sociedade. Eles não são dignos de admiração ou respeito por sua contribuição como trabalhadores ou como portadores de uma cultura própria, como já propusera Gilberto Freyre, mesmo que ensejando como ideal a mestiçagem, mas como vítimas tratadas com especial deferência, sinal mais do que evidente de sua exclusão.

Nesse sentido é interessante lembrar que em 1938 o governo Vargas criou a comemoração do 13 de Maio, em 1940 o Museu Imperial de Petrópolis
(12)e tornou a História do Brasil uma disciplina autônoma da "História da Civilização" (13). O cinquentenário da Abolição, marcado pela criação do feriado nacional, foi festejado no Teatro Municipal, com a presença do Presidente e autoridades, discurso de abertura de Roquette-Pinto, a execução de Lo Schiavo de Carlos Gomes, bailados que evocavam ritmos africanos, como "No Terreiro de Umbanda-Macumba", dança por Eros Volusia, assim como composições musicais de Alberto Nepomuceno e Capiba referentes ao tema. A cultura erudita branca tomava a si o encargo de homenagear e assimilar, segundo os seus padrões, a contribuição negra (14). Nelas, como em O Despertar da Redentora, o negativo torna-se positivo. A "mancha histórica" da escravatura é sublimada, convertida em cultura. A evocação do monarca "justo" sugere que a autoridade, mesmo que discricionária, justifica-se, desde que voltada à prática do bem. A menção à sua filha "inspirada" sugere não a fidelidade aos costumes do fim do império - postulada por Maria Eugenia Celso - mas uma aliança entre poder temporal e poder divino, o segundo dando caução ao primeiro.

Em 1940, a antiga Fazenda Imperial de Petrópolis fora convertida no Museu Imperial de Petrópolis, que foi documentado pelo INCE também em 1942 (Museu Imperial de Petrópolis). Em todas essas celebrações, a história dobra-se sobre si mesma, como que a procurar precursores para o Estado Novo.

O Despertar da Redentora, filme de "educação popular" produzido em 35 mm, custou 36 contos, quantia alta e criticada pela imprensa da época, foi exibido em 96 salas de cinema de 7 estados brasileiros entre junho de 1943 e maio de 1944 e chegou a arrecadar mais de 4 contos de réis de renda
(15).

Neste filme Mauro deixa clara a sua ligação panteísta com a natureza, lugar e fruto da manifestação divina. No mesmo ano, e usando o mesmo recurso, Mauro filma a Invocação dos Aimorés, d'O Guarani em Carlos Gomes, onde de novo usa a verticalidade das árvores no cenário natural para criar a idéia de elevação que a grande cerimônia indígena do conflito entre os Aimorés, Peri acorrentado e a suplicante Ceci sugerem. Uma ária de ópera filmada no meio da floresta da Tijuca, feita basicamente da sabedoria da encenação, que coaduna admiravelmente o ritmo e o fraseado da música com o enquadramento das imagens ordenadas pelas linhas verticais das árvores e do corpo dos cantores, que formam massas de forma, luz e movimento e linhas horizontais que se contrapõem, demarcando os conflitos.

Os dez primeiros anos de atividades do INCE foram dedicados a construir a imagem de um país portentoso, dotado de uma natureza pródiga, uma ciência capaz de decifrá-la contendo e reparando as dificuldades, e grandes homens aptos a conduzir a nação ao grande destino inscrito nas promessas da natureza. Forjou-se na tela um país excepcional.


* Sheila Schvarzman é Professora visitante do Instituto de Artes da UNICAMP


Data de publicação: 05/08/2002